terça-feira, 13 de setembro de 2016

EPISÓDIO 1


Episódio 01


A HORA DAS SOMBRAS

Luiz Antonio Aguiar



Úgui já quase não conseguia correr.  Seu corpo inteiro doía. Mas, não tinha alternativa. Se fosse alcançado, não escaparia. Seria linchado. Chefe deposto tinha de morrer. Era a lei da sobrevivência do bando.
                O pior para o garoto era estar descalço e atravessar os monturos de escombros e lixo, repletos de cacos de vidro, pontas de metal e de madeira. As solas dos seus pés estavam em tiras, deixando um rastro de sangue. Cada passo, agora, era mais uma ferida aberta.  
                Náique e seu grupo haviam caído de surpresa em cima dele. Úgui não tivera tempo de pegar nem seu furador, nem a socadeira, nem os preciosos tênis que ele próprio havia reforçado. Já fora sorte escapar com vida.
                “Como foi que não desconfiei que iam me pegar? O Náique! Claro, tinha que ser ele! Tava na cara!  Cochichos! Olhares de lado! E eu, bobão! Estava quase dormindo quando vieram pra cima de mim! Bobalhão, eu! E bobalhão morre!”...
                Não adiantava mais irritar-se consigo mesmo. Tinha é que aguentar os rasgões nos pés. E a dor das pancadas e dos golpes que sofrera. E a fraqueza, cada vez maior. Respirar doía! Tudo doía.
                E tinha de correr. Esquecer que doía. Correr!
                Por momentos, afundava até acima das canelas em fossas daquela lama descorada e gosmenta que recobria a paisagem. Parou, sem fôlego. O fedor azedo de lixo velho e a névoa ácida que embaçava o ar penetraram profundamente nos seus pulmões. Seu peito ardeu. Pensou na possibilidade de  se esconder. Esperar de tocaia. Agarrar um dos garotos e tomar os tênis dele.
                Mas, não ia dar certo...
                Havia treinado seu bando muito bem. Dificilmente, algum deles ia ser idiota de se afastar dos outros, sozinho. Daí, bastava um grito de alerta e viriam todos. Úgui estaria perdido.
                Tentou escolher onde pisava. Mais difícil ainda. A escuridão das ruas não o deixava ver quase nada. E ele já perdia terreno. De longe, chegavam os berros dos garotos, procurando seus rastros na massa de lixo.
                Úgui precisava encontrar um esconderijo onde os garotos não iriam procurá-lo! ...
                - Vocês têm de parar de ir no Roxy! Tem um vampiro morando nas ruínas.
                - Um vampíro! – admiraram-se os garotos. A palavra lembrava alguma coisa: dava medo. –  O que é um vampiro?
                - É... uma sombra! – arriscara Úgui. – Se alguém chega perto, ele pega ... e transforma o cara em sombra também.
                - Você está inventando, Úgui! Isso não existe! – desafiou Náique, cada vez mais atrevido.
                - O  pessoal de antigamente acreditava em vampiros, Faziam até filmes sobre eles, para todo mundo ter cuidado. Eles sabiam das coisas. Vi um cartaz lá na parede do Roxy e consegui ler... VAMPIRO! Vocês precisavam ver o retrato dele. Estava com fome! Muita fome! E vampiros não morrem. Nunca. Ele ainda está lá!
                Úgui era um dos únicos garotos do bando que sabia soletrar. Havia aprendido com o chefe que o antecedera. Com ele, aprendera também histórias de como a cidade fora. E de como vivia o pessoal de antigamente. Algumas dessas histórias, ele sabia repetir. Outras, lembrava mais ou menos, meio misturadas, faltando pedaços.
                Mas,  nunca confessava quando não sabia . Ia inventando. Uma das habilidades de que um chefe de bando precisava era saber contar histórias. Principalmente sobre como fora a vida antes. Por isso, ele sempre arrumava um jeito de contar a história. De explicar, de dizer o que era o quê, de responder as dezenas de perguntas que o bando trazia, todas as noites para as reuniões em volta da fogueira, sobre o que tinham encontrado e descoberto em suas explorações.
                - Como foi que esse vampiro nunca pegou ninguém até hoje? – insistiu Náique.

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(01/continuação...)

                - Quem disse? –  replicou, Úgui. –  E a Bárbi, que sumiu lá naquelas ruínas? Só deram pela falta dela no caminho de volta. A gente nunca descobriu o que aconteceu.
                - Ela deve ter se perdido dos outros! Daí, um bicho-blindado pegou ela.
                - Não foi isso! É o que tô querendo contar pra vocês! – Úgui tomou fôlego e fechou a cara. – Vi a sombra da Bárbi passeando na parede junto do cartaz. – Todos os garotos tiveram um arrepio. – Foi o que aconteceu com ela. Vai ver, entrou lá sozinha. Agora, virou sombra. Eu vi! Acho que ela estava tentando avisar a gente de que o vampiro esteve dormindo, mas agora acordou. Daí, uma coisa gelada chegou perto de mim. Parecia vento. Mas,  estava viva. Tive de correr pra conseguir escapar. Tô avisando...! Quem não quiser virar sombra, não deve voltar lá.
                Úgui pretendia somente impedir que os garotos menores se metessem dentro do velho cinema, que estava ameaçando desabar de vez. Costumavam afastar os destroços de concreto que bloqueavam a entrada e abrir buracos para chegar à plateia. Então, ficavam o dia inteiro sentados nas poltronas arrebentadas, no meio do mofo e da poeira. Contavam histórias uns para os outros, que imaginavam estarem passando na tela que já não existia, havia tempos.  E brincavam de ser garotos de antigamente, como os que Úgui contara que costumavam ir ali. Para “verem coisas”...
“Coisas animadas, engraçadas, coloridas...” Até mesmo quando a cidade já havia se tornado quase totalmente cinzenta. Havia algo ali que os garotos não compreendiam, mas gostavam de sentir.
                Muita coisa ainda podia ser encontrada no interior de prédios que nunca haviam sido explorados nem pelos bandos, nem pelos mendigos. Por isso, os garotos viviam procurando fendas, buracos, entradas. Mas, era difícil encontrar uma passagem, através das fachadas desmoronadas. Precisavam procurar muito, e contar com a sorte.
Foi assim que descobriram o cinema. E foi Úgui quem explicou o que era aquilo, o que acontecia ali.  Lembrava-se de seu antigo chefe contando algo sobre lugares assim.
 Daí voltou sozinho, noutra noite. Percebeu que o interior tinha um andar de cima. Era difícil alcançá-lo. As infiltrações e infestações de cupins haviam feito os degraus da escadaria ruírem anos antes.  Algumas vigas do teto tinham enormes rachaduras. O garoto precisou escalar os escombros para chegar lá.
Então, viu na parede  o caxilho, com o vidro quebrado, faltando pedaços. Por baixo da poeira, Úgui enxergou dois pontos brilhantes. Vermelhos, parecendo pequenas chamas. Fogo gelado. Os olhos do vampiro.
 Eram estranhos. Quando limpou a poeira, parecia que aqueles olhos se cravaram nele. Acompanhando-o, sempre.
E havia sangue escorrendo dos cantos da boca do monstro. Úgui se lembrava dessa palavra, monstro. Soube imediatamente que a palavra dava nome àquilo que estava vendo. Monstro.

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(01/continuação...)
 Os olhos do monstro ainda o perseguiam. Famintos. Úgui precisou olhar para trás e dar uma espiada em volta para se assegurar que nada estava se aproximando dele pelas costas. A luz da sua vela desenhava compridos dedos nas paredes, querendo agarrá-lo. Lá do meio da escuridão, vinham ruídos de goteiras, estalidos de dentro das paredes, lascas de teto sempre despencando. Ratos.
Úgui fugiu dali o mais depressa que pôde, naquela noite. 
Sobre seu medo, não contou nada ao bando. Mas, o estado do prédio o preocupou. O garoto que era chefe do bando antes de Úgui fora esmagado num desabamento, quando explorava um prédio desmoronado.
Mas, agora, graças áquela história, tinha um lugar para passar a noite.
Com medo de serem pegos pelo vampiro, a maioria dos garotos não entraria no Roxy. Mas, e se Náique lhes desse coragem?
Precisava arriscar. Talvez, excitados como estavam, não se lembrassem de procurá-lo ali.
“Mas... e o vampiro?...” O pensamento atravessou sua mente. Intruso. Intrometido. “Bobalhão!”, xingou-se. “Com medo da minha própria mentira...!...  Mas bem que eu queria... saber o que é um vampiro!”.
Úgui se enfiou por entre os destroços e vergalhões enferrujados, e conseguiu encontrar a passagem.
“Não importa... melhor do que morrer linchado!”.
A gritaria do bando anunciava que eles já estavam bem perto dali.

(fim do episódio 01...  
... EPISÓDIO 02 ...   dia 14/12)


7 comentários:

  1. Muito bom! Aguardo o próximo episódio com curiosidade.

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  2. Muito bom! Aguardo o próximo episódio com curiosidade.

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  3. Acabei de ler e adorei o cenário pós apocalíptico. Muito interessante... Dia 14/12 tem que chegar logo pra matar uma curiosidade e provavelmente acender outra. Obrigada sr Luiz Antônio Aguiar.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Luiz, o "problema" agora é esperar pelo dia 14... Você já me pegou! beijos

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