terça-feira, 13 de setembro de 2016

EPISÓDIO 12


No Episódio Anterior...

Úgui estendeu a mão e acariciou os cabelos da garota. Os dois foram se aproximando um do outro. A garota fechou os olhos. E, inseguro, cheio de cuidados, contido, o beijo do garoto tocou os lábios dela.
Foi tão rápido!
Liana prontamente recuou de novo, sentindo-se confusa. Desde que perdera o pai, era a primeira vez que sentia que havia mesmo alguém mais no seu mundo.
E estaria tudo bem, se não fosse por uma dor em sua cabeça. Um zumbido que não sabia de onde vinha...
- Você... está... tão quente. Liana! – Úgui apalpou a testa dela, preocupado. – Isso é febre. A água do mar! Aquela água suja! Você ... ficou doente!




                No Condomínio Fortificado Atlântica Sereia, era conhecido como Mauboro. Ele próprio adotara o nome , para esquecer o que fora antes. Mas, não adiantou. Lembrava-se de tudo, principalmente quando percorria a cidade em ruínas.
                Fora um arquiteto.
                Às vezes, o chamavam também de “o velho do pulmão estourado”. Ou de “aquele motoboy que tem uma fornecedora que é bordadeira”.
                Para ele, não fazia diferença nenhuma de como o chamassem. Ele próprio não guardava o nome de ninguém.
                Fora arquiteto, sim, fazia tempos. E nada importava além da obsessão de apagar suas lembranças.
                Devia andar pela casa dos sessenta anos, agora. Estava no auge da carreira quando as construções que dirigia começaram a ser interrompidas e os magníficos prédios, de linhas tão elegantes, que projetava, começara a ser  invadidos e pilhados pela multidão enlouquecida. Isso, até que a polícia, que cercava os invasores com granadas e disparos de bazuca, transformou seus prédios monumentais em fornalhas. Com toda aquela gente lá dentro.
                Era uma das lembranças que queria apagar.
                Construíra edifícios pensando que neles germinassem empregos, incubadoras de negócios, centros de tecnologia, de conhecimento, arte e criatividade. Era o seu sonho. Era o que costumava dizer nas cerimônias de inauguração e na apresentação de projetos. E sonhava também em ver seus prédios habitados, com residências que tornassem a vida mais humana, afetiva, calorosa... Também fizera discursos, anunciando esse futuro. Prometendo isso a todos.
                Então, a catástrofe. Recessão. Décadas de recessão. E tudo se destruíra. Os prédios, as pessoas, o sentido da vida. Naquela cidade em ruínas, não restara nada do que sonhara.  E as lembranças viraram amargura. Assistira a muitos dos seus edifícios queimarem, desabarem, soterrarem aqueles a quem se destinavam.
Agora, lá estava ele. Lembrando sempre... atravessando sem vontade a tarde de névoa escura, grossa, fedorenta. Tinha somente um pouco mais de sujeira no ar do que de costume, mas tornava mais difícil enxergar alguns metros à frente.
Ele parou  no alto de um monturo de lixo e puxou um cigarro. Acendeu-o. A tosse acompanhou sua primeira tragada. Não tinha mais ninguém em sua vida para lhe dizer que aquilo ainda iria mata-lo. E não se importava mais. Tudo o que lhe importava era apagar as lembranças. Lembranças mortas. Enterrá-las.
Estava próximo ao ponto de encontro com a bordadeira. Então, escutou um estalido. Seco e letal. Riu consigo mesmo. Puxou mais uma tragada do cigarro, antes de tombar.
- Mirou na brasa do cigarro? – perguntou em voz alta, debochado.
E na sua cabeça a ironia ressoou. Sim, fumar iria mata-lo, afinal.

<<<>>> 
[12 ... continua]

Naqueles dias, quanto tempo durara a loucura nas ruas? Veio chegando aos poucos. Ainda era arquiteto quando, certa noite, teve de pisar com toda força no freio do seu carro porque uma senhora havia se despido, se ajoelhado no meio da pista, e estava agora de braços abertos, olhando para o chão, mexendo os lábios, conversando com o invisível. Lá se largara, esperando a morte... Ou não esperando coisa nenhuma. Fora mais ou menos um mês antes de começar a matança nas ruas.
Atrás dele.  Outro estalido.  Atingiu-o já  no chão.  O cigarro voou de suas mãos. As imagens, as lembranças, se aceleraram. Ele sorria, quando o impacto arrombou suas costas. E se lembrava de que fora um leitor apaixonado de livros de ficção científica. Seus autores prediletos imaginavam          destruição do mundo ou por invasão de seres extraterrenos, ou pela colisão de um asteroide, talvez por um vírus infeccioso... O mundo não fora destruído, fora o país, apenas o país que deixara de existir. Pelo que sabia, em alguns outros lugares, a vida continuava próspera e orgulhosos. Arranha-céus de concreto desafiavam cada vez mais ousadamente os limites da arte e da ciência da construção. O que se acabara fora o mundo que lhe era familiar. E não foi um cataclismo que o arrasou. Recessão, desemprego, fome, loucura... Hordas desvairadas na rua. Autoridades que se recusavam a reconhecer que haviam sobrado somente pessoas desesperadas sob seu poder. Que não havia mais de quem arrancar mais e mais impostos. Que ninguém mais, submetido ao desvario das ruas, sequer entendia do que, do alto do seus tronos, eles insistiam, teimavam em continuar falando.
A bordadeira apontava ao longe, e ele já estava caído, de cara afundada no lixo. A última tragada de fumaça era exalada de seus pulmões. E ele continuava a rir consigo mesmo. Ria. Ria. Então, haviam lhe armado uma tocaia. Então, alguém, ao custo da vida dele,  garantira sua sobrevivência neste mundo. Ele ria. E ria. E ria.
O motoboy que antes tivera como fornecedor um encadernador surgiu da névoa amarronzada. A bordadeira assustou-se quando o viu. Mas, ele lhe estendeu uma caixa de suprimentos. Poucos instantes de hesitação, e o negócio foi fechado. Novo ponto de encontro combinado. E ambos, bordadeira e o motoboy que agora a controlava foram, cada qual para seu lado.
Ninguém quis saber se ele estava vivo ou morto. Nem porque ele ria.  Começou a se sufocar. Sabia que o tiro inundara seus pulmões de sangue, e que iria se afogar em seu próprio fluído. Mas, ainda ria. Foi então que escutou um ruído. Outro, e bem perto. E uivos. Uma pequena multidão de uivos.
- Não, isso não! – gemeu.
Os mendigos o cercaram. Examinavam, curiosos, o corpo caído. Ele murmurou:
- Por favor... estou morrendo!

<<<>>> 
[12 ... continua]


No tempo em que fora um homem bem-sucedido, em que sorria ao pensar o que lhe reservava a vida à frente, sentia nojo da imundície dos mendigos. Nojo e medo das infecções que se espalhavam, esverdeadas, pela pele deles. Isso, quando os enxergava. Isso, quando, sob seu olhar,   eles não sumiam nos cantos escuros das ruas. Desprezava suas bebedeiras. Tinha horror ao seus olhares alucinados, aos esgares desconexos, ao andar trôpego, os gestos sem sentido, às vezes em que os vira dançarem, solitários, desapegados de tudo e de todos em volta, numa festa  só deles.
Mas, o desprezo de antigamente fora substituído por pavor. Agora, todos estavam na rua: os desabrigados de sempre e ex-respeitáveis. Talvez, encontrasse antigos colegas entre eles. Mas, as histórias que contavam sobre o que as tribos de mendigos faziam com as pessoas que capturavam... com quem não participava da dança deles...com quem não se comunicava com uivos, nem tinha aquele olhar fora do mundo. Essas histórias eram horrendas.
Tanto quanto achar que seria apenas questão de tempo, tornar-se um deles. 
- Eu já vou morrer. Estou morrendo! Por favor...! – gemeu.
A dor se espalhava do peito e das costas para o corpo inteiro. Ele expeliu uma golfada de sangue vivo, escuro. Os mendigos se aproximaram, formando um anel em torno dele.
- Por favor...
Fizeram menção de agarrá-lo. Ele não conseguiria se mover. Nem mesmo erguer um braço, uma mão, nada...
Uma mulher desgrenhada rugiu e os mendigos abriram caminho. Ela se ajoelhou junto a ele e  tomou sua mão. Fazia anos que o ex-arquiteto não era tocado. Ela apertou a mão dele lentamente. E ele conseguiu pelo menos olhar nos olhos dela e sorrir. Ela sorriu de volta. E lambeu a mão dele, meigamente. Era tudo o que podia fazer por ele. E fazia muitos anos também que ninguém fazia por ele pelo menos o que podia fazer. Com as forças que lhe restavam, apertou os dedos em torno da mão que o confortava.
Foi o que ele guardou, afinal. E ainda teve tempo de se sentir livre das antigas lembranças antes de morrer.

[Episódio 13... 29 de fevereiro]



No próximo Episódio

Úgui passara o último dia sentindo tonturas fortes e vomitando. Mas, começava a reagir. Seu organismo estava acostumado àquele tipo de briga. Já o de Liana, não tinha as mesmas defesas.
                - Aquele mar é envenenado, Liana. Tudo que é porcaria pára lá. Eu devia ter segurado você na hora, mas nem pensei.  E eu fui chefe de bando. Eu não podia ter deixado você entrar na água. 
                Liana não parecia escutá-lo. Os olhos cerrados, tremendo incessantemente, a garota estava queimando de febre. Não aceitava comer nem beber nada.
                E Úgui percebeu que pouco a pouco a estava perdendo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário