EPISÓDIO 12
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Úgui estendeu a mão e acariciou os
cabelos da garota. Os dois foram se aproximando um do outro. A garota fechou os
olhos. E, inseguro, cheio de cuidados, contido, o beijo do garoto tocou os
lábios dela.
Foi tão rápido!
Liana prontamente recuou de novo,
sentindo-se confusa. Desde que perdera o pai, era a primeira vez que sentia que
havia mesmo alguém mais no seu mundo.
E estaria tudo bem, se não fosse por
uma dor em sua cabeça. Um zumbido que não sabia de onde vinha...
- Você... está... tão quente. Liana! –
Úgui apalpou a testa dela, preocupado. – Isso é febre. A água do mar! Aquela
água suja! Você ... ficou doente!
No
Condomínio Fortificado Atlântica Sereia, era conhecido como Mauboro. Ele próprio
adotara o nome , para esquecer o que fora antes. Mas, não adiantou. Lembrava-se
de tudo, principalmente quando percorria a cidade em ruínas.
Fora
um arquiteto.
Às
vezes, o chamavam também de “o velho do pulmão estourado”. Ou de “aquele
motoboy que tem uma fornecedora que é bordadeira”.
Para
ele, não fazia diferença nenhuma de como o chamassem. Ele próprio não guardava
o nome de ninguém.
Fora
arquiteto, sim, fazia tempos. E nada importava além da obsessão de apagar suas
lembranças.
Devia
andar pela casa dos sessenta anos, agora. Estava no auge da carreira quando as
construções que dirigia começaram a ser interrompidas e os magníficos prédios,
de linhas tão elegantes, que projetava, começara a ser invadidos e pilhados pela multidão
enlouquecida. Isso, até que a polícia, que cercava os invasores com granadas e
disparos de bazuca, transformou seus prédios monumentais em fornalhas. Com toda
aquela gente lá dentro.
Era
uma das lembranças que queria apagar.
Construíra
edifícios pensando que neles germinassem empregos, incubadoras de negócios, centros
de tecnologia, de conhecimento, arte e criatividade. Era o seu sonho. Era o que
costumava dizer nas cerimônias de inauguração e na apresentação de projetos. E
sonhava também em ver seus prédios habitados, com residências que tornassem a
vida mais humana, afetiva, calorosa... Também fizera discursos, anunciando esse
futuro. Prometendo isso a todos.
Então,
a catástrofe. Recessão. Décadas de recessão. E tudo se destruíra. Os prédios,
as pessoas, o sentido da vida. Naquela cidade em ruínas, não restara nada do
que sonhara. E as lembranças viraram
amargura. Assistira a muitos dos seus edifícios queimarem, desabarem,
soterrarem aqueles a quem se destinavam.
Agora, lá
estava ele. Lembrando sempre... atravessando sem vontade a tarde de névoa
escura, grossa, fedorenta. Tinha somente um pouco mais de sujeira no ar do que
de costume, mas tornava mais difícil enxergar alguns metros à frente.
Ele parou no alto de um monturo de lixo e puxou um
cigarro. Acendeu-o. A tosse acompanhou sua primeira tragada. Não tinha mais
ninguém em sua vida para lhe dizer que aquilo ainda iria mata-lo. E não se
importava mais. Tudo o que lhe importava era apagar as lembranças. Lembranças
mortas. Enterrá-las.
Estava próximo
ao ponto de encontro com a bordadeira. Então, escutou um estalido. Seco e
letal. Riu consigo mesmo. Puxou mais uma tragada do cigarro, antes de tombar.
- Mirou na
brasa do cigarro? – perguntou em voz alta, debochado.
E na sua
cabeça a ironia ressoou. Sim, fumar iria mata-lo, afinal.
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[12 ... continua]
Naqueles dias,
quanto tempo durara a loucura nas ruas? Veio chegando aos poucos. Ainda era
arquiteto quando, certa noite, teve de pisar com toda força no freio do seu
carro porque uma senhora havia se despido, se ajoelhado no meio da pista, e
estava agora de braços abertos, olhando para o chão, mexendo os lábios,
conversando com o invisível. Lá se largara, esperando a morte... Ou não
esperando coisa nenhuma. Fora mais ou menos um mês antes de começar a matança
nas ruas.
Atrás dele. Outro estalido. Atingiu-o já
no chão. O cigarro voou de suas
mãos. As imagens, as lembranças, se aceleraram. Ele sorria, quando o impacto
arrombou suas costas. E se lembrava de que fora um leitor apaixonado de livros
de ficção científica. Seus autores prediletos imaginavam destruição do mundo ou por invasão de
seres extraterrenos, ou pela colisão de um asteroide, talvez por um vírus
infeccioso... O mundo não fora destruído, fora o país, apenas o país que
deixara de existir. Pelo que sabia, em alguns outros lugares, a vida continuava
próspera e orgulhosos. Arranha-céus de concreto desafiavam cada vez mais
ousadamente os limites da arte e da ciência da construção. O que se acabara
fora o mundo que lhe era familiar. E não foi um cataclismo que o arrasou.
Recessão, desemprego, fome, loucura... Hordas desvairadas na rua. Autoridades que
se recusavam a reconhecer que haviam sobrado somente pessoas desesperadas sob
seu poder. Que não havia mais de quem arrancar mais e mais impostos. Que
ninguém mais, submetido ao desvario das ruas, sequer entendia do que, do alto
do seus tronos, eles insistiam, teimavam em continuar falando.
A bordadeira
apontava ao longe, e ele já estava caído, de cara afundada no lixo. A última
tragada de fumaça era exalada de seus pulmões. E ele continuava a rir consigo
mesmo. Ria. Ria. Então, haviam lhe armado uma tocaia. Então, alguém, ao custo
da vida dele, garantira sua
sobrevivência neste mundo. Ele ria. E ria. E ria.
O motoboy que
antes tivera como fornecedor um encadernador surgiu da névoa amarronzada. A
bordadeira assustou-se quando o viu. Mas, ele lhe estendeu uma caixa de
suprimentos. Poucos instantes de hesitação, e o negócio foi fechado. Novo ponto
de encontro combinado. E ambos, bordadeira e o motoboy que agora a controlava
foram, cada qual para seu lado.
Ninguém quis
saber se ele estava vivo ou morto. Nem porque ele ria. Começou a se sufocar. Sabia que o tiro
inundara seus pulmões de sangue, e que iria se afogar em seu próprio fluído.
Mas, ainda ria. Foi então que escutou um ruído. Outro, e bem perto. E uivos.
Uma pequena multidão de uivos.
- Não, isso
não! – gemeu.
Os mendigos o
cercaram. Examinavam, curiosos, o corpo caído. Ele murmurou:
- Por favor...
estou morrendo!
<<<>>>
[12 ... continua]
No tempo em
que fora um homem bem-sucedido, em que sorria ao pensar o que lhe reservava a
vida à frente, sentia nojo da imundície dos mendigos. Nojo e medo das infecções
que se espalhavam, esverdeadas, pela pele deles. Isso, quando os enxergava.
Isso, quando, sob seu olhar, eles não sumiam nos cantos escuros das ruas.
Desprezava suas bebedeiras. Tinha horror ao seus olhares alucinados, aos
esgares desconexos, ao andar trôpego, os gestos sem sentido, às vezes em que os
vira dançarem, solitários, desapegados de tudo e de todos em volta, numa festa só deles.
Mas, o
desprezo de antigamente fora substituído por pavor. Agora, todos estavam na
rua: os desabrigados de sempre e ex-respeitáveis. Talvez, encontrasse antigos
colegas entre eles. Mas, as histórias que contavam sobre o que as tribos de
mendigos faziam com as pessoas que capturavam... com quem não participava da
dança deles...com quem não se comunicava com uivos, nem tinha aquele olhar fora
do mundo. Essas histórias eram horrendas.
Tanto quanto
achar que seria apenas questão de tempo, tornar-se um deles.
- Eu já vou
morrer. Estou morrendo! Por favor...! – gemeu.
A dor se
espalhava do peito e das costas para o corpo inteiro. Ele expeliu uma golfada
de sangue vivo, escuro. Os mendigos se aproximaram, formando um anel em torno
dele.
- Por favor...
Fizeram menção
de agarrá-lo. Ele não conseguiria se mover. Nem mesmo erguer um braço, uma mão,
nada...
Uma mulher
desgrenhada rugiu e os mendigos abriram caminho. Ela se ajoelhou junto a ele
e tomou sua mão. Fazia anos que o
ex-arquiteto não era tocado. Ela apertou a mão dele lentamente. E ele conseguiu
pelo menos olhar nos olhos dela e sorrir. Ela sorriu de volta. E lambeu a mão
dele, meigamente. Era tudo o que podia fazer por ele. E fazia muitos anos também
que ninguém fazia por ele pelo menos o que podia fazer. Com as forças que lhe
restavam, apertou os dedos em torno da mão que o confortava.
Foi o que ele
guardou, afinal. E ainda teve tempo de se sentir livre das antigas lembranças
antes de morrer.
[Episódio 13... 29 de fevereiro]
No próximo Episódio
Úgui passara o último dia
sentindo tonturas fortes e vomitando. Mas, começava a reagir. Seu organismo
estava acostumado àquele tipo de briga. Já o de Liana, não tinha as mesmas
defesas.
- Aquele mar é envenenado, Liana. Tudo que é porcaria
pára lá. Eu devia ter segurado você na hora, mas nem pensei. E eu fui chefe de bando. Eu não podia ter
deixado você entrar na água.
Liana não parecia escutá-lo. Os olhos cerrados,
tremendo incessantemente, a garota estava queimando de febre. Não aceitava
comer nem beber nada.
E Úgui percebeu que pouco a pouco a estava perdendo.
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