EPISÓDIO 04
(No final do Episódio Anterior... )
(No final do Episódio Anterior... )
As paredes começaram a rachar.
Poeira e fumaça negra, espessa preencheram tudo. Mal enxergando em volta, Úgui
lançou-se pelo monturo abaixo, pronto para enfrentar seus perseguidores. Mas,
não havia mais nem sinal de Náique e dos outros garotos. Já previra isso. Só
que não tinha alternativa. Precisaria sair do prédio. Mesmo sabendo que Naique
e todo o bando estavam aguardando, do lado de fora, para cair sobre ele e espancá-lo até a morte.
EPISÓDIO 04
A
marquise do velho cinema ruiu com enorme estrondo e muita poeira, sobre as
colunas que a sustentavam e que foram pintadas de vermelho, um dia. Enormes pedaços
da fachada se desprendiam, enquanto o prédio de cerca de quinze andares vinha
abaixo em meio a uma inacreditável nuvem de destroços. Tudo desabou de repente,
cedendo de podre, depois de anos e anos de deterioração. O incêndio só fizera
enfraquecer de vez as estruturas. Bolas de fogo foram projetadas à distância. A
destruição era tanta que foi como se um
míssil tivesse acabado de ser lançado sobre quarteirão.
Atentos,
os garotos do bando abriram bem o cerco para evitar os destroços chamejantes,
mas sem permitir que Úgui escapasse. Uma espantosa multidão de ratos de todos
os tamanhos emergiu em pânico e dispersou-se rapidamente, encontrando novos
abrigos por entre as valas fedorentas e as fossas de lixo azedo acumulado nas
crateras no calçamento, que indicavam as inúmeras explosões nos encanamentos de
gás e tubos de fiação elétrica que antes existiam nos túneis do subsolo.
Crateras e
monturos eram o que predominava no que havia sido, duas décadas antes, uma
movimentada avenida. Nada, agora,
poderia dar aos garotos a ideia do que fora a organização espacial do que se
costumava chamar de cidade. Os esgotos haviam sido expostos, como artérias
rasgadas sob o calçamento. O ar era doentio.
Uma
ferocidade febril tomou conta dos garotos. Tanto barulho, explosões, movimento,
nada disso era comum. Náique não previra que o fogo que haviam ateado nas
poltronas da plateia causasse tanta destruição. Teve certeza de que atrairia os bichos-blindados, e agora
tentava calculava quanto tempo ainda tinha, antes de ordenar a debandada. E
talvez Úgui tivesse sido morto, soterrado, dentro do prédio. Se não, por que
ainda não saíra?
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(04... continuação)
Os bandos
somente circulavam à noite. Faziam de tudo para evitar chamar atenção. Nas escavações para tentar penetrar nos edifícios – quando conseguiam identificar o que fora um
prédio nas ruínas desabadas - , esbarravam, na maioria das vezes, em paredes instransponíveis, ou em massas de
destroços que não conseguiriam ultrapassar. Era uma festa quando encontravam
uma passagem para o interior de um prédio. Isso significava roupas, calçados,
ferramentas, armas, comida enlatada – com a validade já vencida havia anos, mas
eles não sabiam o que era “validade”. Além disso, sempre se poderia achar algum
lugar que servisse de esconderijo contra a polícia e os demais bandos.
Náique ainda não
havia nascido quando o bando, certa vez, atingiu um túnel de metrô. Ainda eram comandados pelo
chefe anterior a Úgui. Fora ele que explicara o que era aquilo. Pretendia
avançar pelo túnel e procurar a “estação”. E, na estação, talvez houvesse
comida, coisas úteis... Chegaram a encontrá-la, sim, mas, logo a seguir, ocorreu um desabamento e tiveram de escapar
às presas. Muitos garotos haviam morrido, naquela noite.
Procediam com
um sentido instintivo de organização para as explorações e fugas. A qualquer
sinal de perigo, espalhavam-se em pequenos grupos, cada qual com seu guia.
Enfiavam-se então em algum buraco e esperavam.
A polícia
circulava menos à noite. Os mendigos, com seu olhar alucinado, seus uivos e
suas infecções, já estavam amontoados, à
beira do mar, gemendo, ressonando, embriagados – sem que ninguém desvendasse
como ainda conseguiam encontrar bebida. O lixo já não lhes fornecia nada que
prestasse havia anos. E não tinham braços nem pernas para escavações. Mal
comiam. A não ser que se alimentassem de
churrasco de roedores. Mas, bebida, sempre tinham.
Um bando só
penetrava no território de outro bando quando estava passando fome. Evitavam
isso ao máximo. Uma guerra de bandos começava por qualquer coisa, e podia
terminar com muitos mortos, e os demais arrastados pelas redes dos bichos-blindados.
Assim, quando
não havia alimentos, preferiam mandar um grupo aos morros caçar pequenos
animais. Dos apinhados de barracos abandonados – os que já não haviam sido
carregados pelas enxurradas de lama, morro abaixo - , traziam pombos e bichos
cujos ancestrais haviam sido parte de criações
domésticas. Claro que, por lá, havia sempre o risco de serem atacados por
matilhas de cães selvagens. Os morros eram uma selva.
Os garotos
tinham sonhos bons e pesadelos.
Pesadelos com
as histórias que os mais velhos contavam. Histórias que haviam aprendido com os
que haviam sido mais velhos nos bandos, antes deles. De como a cidade fora se
tornando escura e assustadora. Com multidões que vagavam sem ver para onde iam.
Ou de pessoas que simplesmente ficavam paradas, tapando o rosto com as mãos.
Inertes. Cada vez mais gente assim. Até que um dia a cidade enlouqueceu de vez.
A guerra nas
ruas: tiros, explosões, gritos, muito, muito sangue. Cadáveres amontoados. Teve
gente que conseguiu escapar, e abandonou as cidades. Não havia mais nada ali,
para quem quisesse continuar existindo minimamente em paz. Mas, ao mesmo tempo,
ninguém sabia se o que havia fora das cidades não se tornara um terror ainda maior.
Ainda mais voraz. Como os pesadelos.
Mas, os garotos dos bandos também tinham sonhos
bons. Com aquelas ruas retornando a uma vida que eles não haviam conhecido.
Como se, de um instante para o outro, pudessem ganhar de volta o mundo, as
delícias das lojas, e adultos voltassem a protegê-los. E pudessem passear nas
ruas. À luz do dia. Ver gente entrando e saindo dos prédios. Circulando. Rindo.
Gente ocupada. Gente trabalhando. Encontrando amigos. Comprando coisas.
Agora, o que
restava dos prédios era o silêncio. Como tumbas e lápides. Criptas. Cemitérios.
Fedor de decomposição. E mijo azedo. Ressecadoi, velho. Com suas lembranças
em estado terminal. Janelas sem vidraças, despencadas, e olhos lá dentro, de
quem somente sobrevivia ocultando-se na escuridão. Os garotos evitavam entrar
nos prédios residenciais – ossadas demais, de quem se deitou na cama para
esperar a morte. Fantasmas.
Enfim, entre
sonhos e pesadelos, os garotos dormiam durante o dia, com vigias de guarda, no
perímetro do esconderijo. E saíam à noite. A noite os acobertava. Era quando se esgueiravam pelos monturos. À
noite era quando os bandos dominavam a cidade. Era a hora deles.
A hora das
sombras.
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(04... continuação)
- Ou ele sai,
agora, ou morre torrado! – anunciou
Náique para os garotos que o cercavam, os mais próximos. O resto do bando
varria a destruição e a fumaça, correndo de um lado para o outro, numa
brincadeira frenética. As labaredas os fascinavam. Era como se assistissem aos
fantasmas sendo queimados.
- A gente
devia ir embora daqui... – murmurou um dos garotos.
E Náique sabia
que ele tinha razão. Já passara do momento de dar a ordem de retirada. Mesmo
assim, disse:
- Ele já vai
aparecer! Atenção!
- Pode ter
morrido...
- Não morreu!
– retrucou Náique.
Lá dentro,
Úgui estava quase sufocado. Milhares de ratos continuavam passando sobre ele,
escorrendo suas caudas úmidas e pegajosas por sobre seu corpo. O garoto odiava
ratos. Mas, precisava suportá-los. Encolhido na boca da fenda que dava para
fora, observava o movimento do bando. A
fumaça o protegia. Ao mesmo tempo, sabia que Náique não se deixaria enganar.
Era um jogo. O que aconteceria antes? Náique ordenaria a retirada do bando, temendo
a chegada dos bichos-blindados, ou as paredes já ruindo assariam as carnes de Úgui? O sangue frio de um ou a
tolerância à dor do outro?
Finalmente,
Úgui arrastou-se para fora. Sabia que estava somente escolhendo a morte menos
assustadora.
Era a lei do
bando! Um chefe conhecia os locais onde a comida de reserva ficava escondida.
Sabia onde o bando conseguia água
potável. Conhecia os esconderijos de cada guia, usados nas emergências. E,
principalmente, melhor do que ninguém, conhecia a rotina do bando. Fora quem
criara essa rotina, suas trilhas, as armas que possuíam, a maneira como
distribuíam os vigias, os alarmes de perigo.
Se as
informações fossem arrancadas, ou pelos policiais, ou por bandos rivais, era o
fim. Ou se o líder deposto virasse um traidor, para se vingar de quem o tinha
derrubado.
Quando Úgui
emergiu dos destroços em chamas, todo o bando vibrou, numa algazarra raivosa.
Em resposta, ele se deteve, desafiador, esticando sua altura o quanto pôde, e
brandiu o cano. Por um rápido instante, cruzou os olhos com Náique, que, no que
o viu, soltou um berro:
- Agora!
Acabem com ele!
Então, antes
mesmo que o bando reagisse, um dos vigias gritou, a alguma distância. Os bichos-blindados
se aproximavam, e logo cairiam sobre eles. Naique hesitou.
- Se perder
tempo para me matar – berrou Úgui, debochado –, vai pôr em risco o bando
inteiro! Não foi isso que ensinei a você!
Já era
possível enxergar, vazando por cima dos
enormes monturos de lixo, o clarão dos holofotes dos bichos-blindados. Os
vigias chegaram em disparada, trêmulos de medo.
Náique socou o
ar. Sua ordem de debandada foi um rugido de frustração. Imediatamente, o bando
se dispersou em pequenos grupos. Mas, nem todos se salvaram. Atraídos pelo
incêndio e pelo desabamento, os blindados vieram de todos os lados. Já desceram as montanhas de destroços ejetando
suas redes, com as sirenes abertas num volume altíssimo, alucinado.
Ninguém
conseguia evitar o pânico, quando os blindados davam o bote. Era comum alguns garotos
ficarem tão apavorados que não conseguiam nem sequer se mexer.
Muitos seriam
aprisionados, naquela noite. Não estariam ao redor da fogueira, mais tarde,
pedindo explicações sobre o que haviam encontrado pela cidade. A caçada seria
boa para os tiras.
Úgui mergulhou
nos escombros e arrastou-se, ofegante, a testa latejando, o peito quase para
estourar. Foi seguido de perto pelo concerto de gritos de choro, de raiva,
tiros, rangidos de esteiras dos blindados e mais uma confusão aterradora de
barulhos estridentes, como se fossem garras de metal trinchando ossos e carne
feitos de lata.
A metralha
comeu o lixo junto dele. Estavam atirando às cegas, agora. Um garoto e uma
garota passaram por ele, arrastados pela rede,
se debatendo e berrando, até que o blindado os tragou. Úgui os conhecia
bem...
Tantas
madrugadas passara em claro, repetindo para si mesmo o nome dos garotos
capturados. Pensando o que deveria ter
feito para salvá-los. Para conseguir arrancá-los dos bichos-blindados.
A metralhadora ainda não tinha matado a fome.
Continuava a disparar. Estavam vendo se desentocavam mais alguém. Úgui mordeu a
mão até sangrar para espantar a paralisia. Não podia perder o controle. Não
podia sair correndo. Não podia.
Sentiu-se
pequeno. Um menino. Como a lembrança que tivera de Náique: “Para onde a gente
vai quando o bicho-blindado pega a gente?”...
Dessa vez, não
havia ninguém de olhos postos nele, obrigando-o a fingir que sabia a resposta.
Lembrou então do seu antigo chefe, cuidando dele, explicando... Depois, Úgui
foi escolhido chefe. E sempre desejara tanto não ser o único que tinha de saber
as respostas. Nunca conseguiu salvar ninguém capturado pelo bicho-blindado. E,
nessa noite, mesmo que ainda fosse chefe, também não teria conseguido.
Úgui se arrastou
para longe dos holofotes e da metralha, que não se cansava de morder a noite.
Seu chefe bem que lhe dissera que um dia ia precisar de um lugar só seu. “Pra
ver como é sem o bando, entendeu?”. Não, não entendera. Nascera e vivera sempre
no bando. Na época, não conseguia imaginar sendo qualquer coisa sem o bando.
Agora, ia ter de aprender.
“ E se... meu
chefe não sabia todas as respostas? Eu tive de fingir que sabia. Vai ver, ele
fingiu também... ”
(Uma provinha do Próximo Episódio)
Frequentemente,
os demais tiras da Delegacia 12 pediam a Bazu para controlar seu parceiro. Mas,
o veterano se limitava a dar gargalhadas. Não via nada de errado com Zuca. Se
ele dava calafrios em seus colegas, “era porque aqueles moleirões não estavam
nas ruas nos velhos tempos, quando a
coisa pegou pra valer!”.
E exigia:
- Deixem o garoto em paz! E daí se ele
cantarola, quando está disparando sua metralhadora. É um cara feliz! Que tem de
mal nisso?
(Episódio 05 no ar dia 04/01/2016)
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