terça-feira, 13 de setembro de 2016

EPISÓDIO 04

(No final do Episódio Anterior... )

As paredes começaram a rachar. Poeira e fumaça negra, espessa preencheram tudo. Mal enxergando em volta, Úgui lançou-se pelo monturo abaixo, pronto para enfrentar seus perseguidores. Mas, não havia mais nem sinal de Náique e dos outros garotos. Já previra isso. Só que não tinha alternativa. Precisaria sair do prédio. Mesmo sabendo que Naique e todo o bando estavam aguardando, do lado de fora,  para cair sobre ele e espancá-lo até a morte.



EPISÓDIO 04



                A marquise do velho cinema ruiu com enorme estrondo e muita poeira, sobre as colunas que a sustentavam e que foram pintadas de vermelho, um dia. Enormes pedaços da fachada se desprendiam, enquanto o prédio de cerca de quinze andares vinha abaixo em meio a uma inacreditável nuvem de destroços. Tudo desabou de repente, cedendo de podre, depois de anos e anos de deterioração. O incêndio só fizera enfraquecer de vez as estruturas. Bolas de fogo foram projetadas à distância. A destruição era tanta que foi como se  um míssil tivesse acabado de ser lançado sobre quarteirão.
                Atentos, os garotos do bando abriram bem o cerco para evitar os destroços chamejantes, mas sem permitir que Úgui escapasse. Uma espantosa multidão de ratos de todos os tamanhos emergiu em pânico e dispersou-se rapidamente, encontrando novos abrigos por entre as valas fedorentas e as fossas de lixo azedo acumulado nas crateras no calçamento, que indicavam as inúmeras explosões nos encanamentos de gás e tubos de fiação elétrica que antes existiam nos túneis do subsolo.
Crateras e monturos eram o que predominava no que havia sido, duas décadas antes, uma movimentada avenida.  Nada, agora, poderia dar aos garotos a ideia do que fora a organização espacial do que se costumava chamar de cidade. Os esgotos haviam sido expostos, como artérias rasgadas sob o calçamento. O ar era doentio.
                Uma ferocidade febril tomou conta dos garotos. Tanto barulho, explosões, movimento, nada disso era comum. Náique não previra que o fogo que haviam ateado nas poltronas da plateia causasse tanta destruição. Teve certeza de  que atrairia os bichos-blindados, e agora tentava calculava quanto tempo ainda tinha, antes de ordenar a debandada. E talvez Úgui tivesse sido morto, soterrado, dentro do prédio. Se não, por que ainda não saíra?
               
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(04... continuação)

Os bandos somente circulavam à noite. Faziam de tudo para evitar chamar atenção.  Nas escavações  para tentar penetrar nos edifícios  – quando conseguiam identificar o que fora um prédio nas ruínas desabadas - , esbarravam, na maioria das vezes,  em paredes instransponíveis, ou em massas de destroços que não conseguiriam ultrapassar. Era uma festa quando encontravam uma passagem para o interior de um prédio. Isso significava roupas, calçados, ferramentas, armas, comida enlatada – com a validade já vencida havia anos, mas eles não sabiam o que era “validade”. Além disso, sempre se poderia achar algum lugar que servisse de esconderijo contra a polícia e os demais bandos.
Náique ainda não havia nascido quando o bando, certa vez, atingiu  um túnel de metrô. Ainda eram comandados pelo chefe anterior a Úgui. Fora ele que explicara o que era aquilo. Pretendia avançar pelo túnel e procurar a “estação”. E, na estação, talvez houvesse comida, coisas úteis... Chegaram a encontrá-la, sim, mas, logo a seguir,  ocorreu um desabamento e tiveram de escapar às presas. Muitos garotos haviam morrido, naquela noite.
Procediam com um sentido instintivo de organização para as explorações e fugas. A qualquer sinal de perigo, espalhavam-se em pequenos grupos, cada qual com seu guia. Enfiavam-se então em algum buraco e esperavam.
A polícia circulava menos à noite. Os mendigos, com seu olhar alucinado, seus uivos e suas infecções, já estavam amontoados,  à beira do mar, gemendo, ressonando, embriagados – sem que ninguém desvendasse como ainda conseguiam encontrar bebida. O lixo já não lhes fornecia nada que prestasse havia anos. E não tinham braços nem pernas para escavações. Mal comiam. A não ser que  se alimentassem de churrasco de roedores. Mas, bebida, sempre tinham.
Um bando só penetrava no território de outro bando quando estava passando fome. Evitavam isso ao máximo. Uma guerra de bandos começava por qualquer coisa, e podia terminar com muitos mortos, e os demais arrastados pelas redes dos bichos-blindados.
Assim, quando não havia alimentos, preferiam mandar um grupo aos morros caçar pequenos animais. Dos apinhados de barracos abandonados – os que já não haviam sido carregados pelas enxurradas de lama, morro abaixo - , traziam pombos e bichos cujos ancestrais haviam sido parte de  criações domésticas. Claro que, por lá, havia sempre o risco de serem atacados por matilhas de cães selvagens. Os morros eram uma selva.
Os garotos tinham sonhos bons e pesadelos.
Pesadelos com as histórias que os mais velhos contavam. Histórias que haviam aprendido com os que haviam sido mais velhos nos bandos, antes deles. De como a cidade fora se tornando escura e assustadora. Com multidões que vagavam sem ver para onde iam. Ou de pessoas que simplesmente ficavam paradas, tapando o rosto com as mãos. Inertes. Cada vez mais gente assim. Até que um dia a cidade enlouqueceu de vez.
A guerra nas ruas: tiros, explosões, gritos, muito, muito sangue. Cadáveres amontoados. Teve gente que conseguiu escapar, e abandonou as cidades. Não havia mais nada ali, para quem quisesse continuar existindo minimamente em paz. Mas, ao mesmo tempo, ninguém sabia se o que havia fora das cidades não se tornara um terror ainda maior. Ainda mais voraz.  Como os pesadelos.
Mas,  os garotos dos bandos também tinham sonhos bons. Com aquelas ruas retornando a uma vida que eles não haviam conhecido. Como se, de um instante para o outro, pudessem ganhar de volta o mundo, as delícias das lojas, e adultos voltassem a protegê-los. E pudessem passear nas ruas. À luz do dia. Ver gente entrando e saindo dos prédios. Circulando. Rindo. Gente ocupada. Gente trabalhando. Encontrando amigos. Comprando coisas.
Agora, o que restava dos prédios era o silêncio. Como tumbas e lápides. Criptas. Cemitérios. Fedor de decomposição.  E mijo azedo. Ressecadoi, velho. Com suas lembranças em estado terminal. Janelas sem vidraças, despencadas, e olhos lá dentro, de quem somente sobrevivia ocultando-se na escuridão. Os garotos evitavam entrar nos prédios residenciais – ossadas demais, de quem se deitou na cama para esperar a morte. Fantasmas. 
Enfim, entre sonhos e pesadelos, os garotos dormiam durante o dia, com vigias de guarda, no perímetro do esconderijo. E saíam à noite. A noite os acobertava.  Era quando se esgueiravam pelos monturos. À noite era quando os bandos dominavam a cidade. Era a hora deles.
A hora das sombras.

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(04... continuação)

- Ou ele sai, agora, ou  morre torrado! – anunciou Náique para os garotos que o cercavam, os mais próximos. O resto do bando varria a destruição e a fumaça, correndo de um lado para o outro, numa brincadeira frenética. As labaredas os fascinavam. Era como se assistissem aos fantasmas sendo queimados.
- A gente devia ir embora daqui... – murmurou um dos garotos.
E Náique sabia que ele tinha razão. Já passara do momento de dar a ordem de retirada. Mesmo assim, disse:
- Ele já vai aparecer! Atenção!
- Pode ter morrido...
- Não morreu! – retrucou Náique.
Lá dentro, Úgui estava quase sufocado. Milhares de ratos continuavam passando sobre ele, escorrendo suas caudas úmidas e pegajosas por sobre seu corpo. O garoto odiava ratos. Mas, precisava suportá-los. Encolhido na boca da fenda que dava para fora,  observava o movimento do bando. A fumaça o protegia. Ao mesmo tempo, sabia que Náique não se deixaria enganar. Era um jogo. O que aconteceria antes? Náique ordenaria a retirada do bando, temendo a chegada dos bichos-blindados, ou as paredes já ruindo assariam as  carnes de Úgui? O sangue frio de um ou a tolerância à dor do outro?
Finalmente, Úgui arrastou-se para fora. Sabia que estava somente escolhendo a morte menos assustadora.
Era a lei do bando! Um chefe conhecia os locais onde a comida de reserva ficava escondida. Sabia onde o bando  conseguia água potável. Conhecia os esconderijos de cada guia, usados nas emergências. E, principalmente, melhor do que ninguém, conhecia a rotina do bando. Fora quem criara essa rotina, suas trilhas, as armas que possuíam, a maneira como distribuíam os vigias, os alarmes de perigo.
Se as informações fossem arrancadas, ou pelos policiais, ou por bandos rivais, era o fim. Ou se o líder deposto virasse um traidor, para se vingar de quem o tinha derrubado.
Quando Úgui emergiu dos destroços em chamas, todo o bando vibrou, numa algazarra raivosa. Em resposta, ele se deteve, desafiador, esticando sua altura o quanto pôde, e brandiu o cano. Por um rápido instante, cruzou os olhos com Náique, que, no que o viu, soltou um berro:
- Agora! Acabem com ele!
Então, antes mesmo que o bando reagisse, um dos vigias gritou, a alguma distância. Os bichos-blindados se aproximavam, e logo cairiam sobre eles. Naique hesitou.
- Se perder tempo para me matar – berrou Úgui, debochado –, vai pôr em risco o bando inteiro! Não foi isso que ensinei a você!  
Já era possível enxergar, vazando por cima  dos enormes monturos de lixo, o clarão dos holofotes dos bichos-blindados. Os vigias chegaram em disparada, trêmulos de medo.
Náique socou o ar. Sua ordem de debandada foi um rugido de frustração. Imediatamente, o bando se dispersou em pequenos grupos. Mas, nem todos se salvaram. Atraídos pelo incêndio e pelo desabamento, os blindados vieram de todos os  lados. Já desceram as montanhas de destroços ejetando suas redes, com as sirenes abertas num volume altíssimo, alucinado.
Ninguém conseguia evitar o pânico, quando os blindados davam o bote. Era comum alguns garotos ficarem tão apavorados que não conseguiam nem sequer se mexer.
Muitos seriam aprisionados, naquela noite. Não estariam ao redor da fogueira, mais tarde, pedindo explicações sobre o que haviam encontrado pela cidade. A caçada seria boa para os tiras.
Úgui mergulhou nos escombros e arrastou-se, ofegante, a testa latejando, o peito quase para estourar. Foi seguido de perto pelo concerto de gritos de choro, de raiva, tiros, rangidos de esteiras dos blindados e mais uma confusão aterradora de barulhos estridentes, como se fossem garras de metal trinchando ossos e carne feitos de lata.
A metralha comeu o lixo junto dele. Estavam atirando às cegas, agora. Um garoto e uma garota passaram por ele, arrastados pela rede,  se debatendo e berrando, até que o blindado os tragou. Úgui os conhecia bem...
Tantas madrugadas passara em claro, repetindo para si mesmo o nome dos garotos capturados.  Pensando o que deveria ter feito para salvá-los. Para conseguir arrancá-los dos bichos-blindados.
 A metralhadora ainda não tinha matado a fome. Continuava a disparar. Estavam vendo se desentocavam mais alguém. Úgui mordeu a mão até sangrar para espantar a paralisia. Não podia perder o controle. Não podia sair correndo. Não podia.
Sentiu-se pequeno. Um menino. Como a lembrança que tivera de Náique: “Para onde a gente vai quando o bicho-blindado pega a gente?”...
Dessa vez, não havia ninguém de olhos postos nele, obrigando-o a fingir que sabia a resposta. Lembrou então do seu antigo chefe, cuidando dele, explicando... Depois, Úgui foi escolhido chefe. E sempre desejara tanto não ser o único que tinha de saber as respostas. Nunca conseguiu salvar ninguém capturado pelo bicho-blindado. E, nessa noite, mesmo que ainda fosse chefe,  também não teria conseguido.
Úgui se arrastou para longe dos holofotes e da metralha, que não se cansava de morder a noite. Seu chefe bem que lhe dissera que um dia ia precisar de um lugar só seu. “Pra ver como é sem o bando, entendeu?”. Não, não entendera. Nascera e vivera sempre no bando. Na época, não conseguia imaginar sendo qualquer coisa sem o bando. Agora, ia ter de aprender.
“ E se... meu chefe não sabia todas as respostas? Eu tive de fingir que sabia. Vai ver, ele fingiu também... ”



(Uma provinha do Próximo  Episódio)

                Frequentemente, os demais tiras da Delegacia 12 pediam a Bazu para controlar seu parceiro. Mas, o veterano se limitava a dar gargalhadas. Não via nada de errado com Zuca. Se ele dava calafrios em seus colegas, “era porque aqueles moleirões não estavam nas ruas nos velhos tempos,  quando a coisa pegou pra valer!”.
                 E exigia:
                 - Deixem o garoto em paz! E daí se ele cantarola, quando está disparando sua metralhadora. É um cara feliz! Que tem de mal nisso?


(Episódio 05 no ar dia 04/01/2016)

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