EPISÓDIO 11
No Episódio Anterior
- Sabia que o pessoal de antigamente vinha pra cá tomar banho... e sol? E
deitavam na areia. Não era areia suja, naquele tempo.
Nem
entrando na água, Úgui parava de falar. Mas, Liana não queria saber de
histórias. Empurrou-o e o garoto caiu de costas. Uma onda bateu sobre ele,
cobrindo-o. Úgui voltou à tona, cuspindo água. E saltou sobre a garota,
derrubando-a.
Os
dois caíram na água, rindo. Rindo juntos.
Liana
não entendeu o que havia perturbado Úgui. O rapaz estava tão contente, rindo
com ela. Daí, a Lua saiu detrás de uma nuvem. Estavam deitados na areia, com a
água chegando, por vezes, aos seus pés. Então, a Lua os iluminou em cheio –
suas roupas molhadas, coladas ao corpo. E foi quando a expressão do rosto do
garoto se transformou.
Úgui
puxou-a pela mão com força – machucando mesmo – para ela se levantar. A
brincadeira havia terminado.
Ele
permaneceu calado por todo o trajeto de volta. Liana quase pressentia o que
Úgui iria fazer, logo que chegassem ao shopping. E foi isso mesmo. Mal
descarregaram suas latas de água, ele se fechou naquela loja do segundo andar.
A loja onde ele a proibira de entrar.
Liana
sentiu medo. Era como se os fantasmas com que Úgui a ameaçara morassem ali
dentro. E como se ele saísse de lá transformado também em fantasma.
O
pai de Liana nunca havia falado de fantasmas. A história de Úgui – gente
morta retornando ao shopping para catar
pedaços que faltavam em seus corpos – parecia até engraçada, com alguma luz
acesa por perto. Mas, o brilho dos olhos de Úgui quando saía da tal loja...
Isso sim era o pesadelo de Liana com fantasmas.
Quando
Úgui, finalmente, deixou a loja, Liana já estava dormindo, no seu canto, no
refúgio, cercada das suas bugigangas. Em sono, escutou-o chamar por ela e deu
um pulo, no leito, despertando. A seguir, o olhar feroz do garoto pesou sobre
ela, e Liana se encolheu toda. Ele se debruçou sobre a garota.
Úgui
trazia um maço de revistas amassadas. E disse, oferecendo-as a Liana:
- Você não vive querendo saber o que tem na
minha loja secreta? Olha aqui! Trouxe para você ver!
<<<>>>
A
garota sentiu maldade na voz dele. Uma maldade que ela não conhecia.
Sacudiu
a cabeça, recusando-se a olhar as revistas. Não quis nem mesmo tocá-las. Úgui
agarrou-a pelos cabelos:
-
Disse pra você olhar! Olhe! – e abriu uma das revistas bem na cara dela. – Tem
muitas outras coisas lá. Cartazes. Tudo assim, como aqui... Você vai gostar!
A
foto, na revista, aquelas pessoas despidas, coladas umas nas outras. Homens e
mulheres. Liana sentiu vergonha de estar olhando aquilo. Quis tapar os olhos...
-
Todo mundo faz isso, você não sabia? Eu ensino pra você. As garotas lá do bando
faziam também.
Liana
mandou um chute bem no estômago de Úgui. Ele se recuperou logo e pulou sobre
ela, imobilizando-a. Falava junto da boca de Liana, caçando seus lábios. As
mãos iam arrancando as roupas da garota, enquanto rolavam pelo chão, lutando.
-
Não adianta! Sou mais forte do que você!
Das
roupas da garota, só restavam trapos. Liana agarrava-se a eles em desespero.
Então, seus dedos encontraram algo no chão. Um cinzeiro de metal, que havia
recolhido de alguma vitrine.
A
pancada atingiu Úgui em cheio no nariz. O sangue espirrou, e Liana bateu de
novo, dessa vez na testa do garoto. Sentiu
os músculos dele afrouxarem. Úgui largou-a, tentou se levantar, cambaleando...
Os olhos dele reviraram-se.
Liana
correu de gatinhas de volta para seu leito, onde se encolheu, como se ali fosse
uma toca. Viu Úgui desabar de costas no chão, como se algo nele tivesse sido
desligado de repente. Ficou alguns segundos imóvel. A garota, do seu canto, aos
soluços, observava-o apavorada, os olhos arregalados. Então, ele ergueu a
cabeça, procurando-a...
De
relance os olhos de ambos se cruzaram. E os olhos de Úgui já não tinham aquele
brilho de fantasmas. Havia muita surpresa nos olhos dele. E dor. E vergonha. O
sangue escorria por suas faces. Ele tentou falar, mas no início conseguiu
somente gemer. Então, balbuciou:
-
Desculpe... É que ... Não... desculpe!
Então,
desabou novamente. E por muito tempo, não se mexeu. Liana chegou a deixar seu
abrigo, preocupada. Temerosa, hesitante, colocou a mão na testa dele. Estava
fria. Ela se apavorou, recuou... Então, viu o peito dele dar um solavanco, como
se o ar entrasse de novo, de repente, nos pulmões. O peito dele continuou subindo
e descendo aos pulos. Percebeu então que ele estava chorando.
Com raiva,
agora, Liana correu até o maço de revistas, juntou-as e atirou-as sobre
Úgui. Ao contrário do que esperava, ele
não reagiu. Somente ergueu a cabeça para ela. Seu rosto estava sujo de sangue,
inchava rapidamente – o nariz estava quebrado. E havia tristeza nos olhos dele
agora.
- Você não vai
embora, vai? – ele perguntou, entre soluços.
<<<>>>
Liana
aproximou-se, sempre segurando os trapos de roupa que a cobriam, e examinou de
alguma distância o rosto dele. A seguir,
foi até outro canto, onde havia uma lata com água, embebeu um pedaço de pano
nela, e retornou, ajoelhando-se junto de Úgui. Suavemente, limpou o sangue do
rosto dele, enquanto o choro do garoto ia se tornando mais manso. As lágrimas
continuavam a rolar por suas faces, mas ele já não soluçava.
- Só queria
que a gente fosse namorado de verdade – disse.
Não conseguia
encarar a garota. Liana comprimiu o nariz de Úgui, de leve, com o pano
molhado... Lembrava-se como seu pai lhe ensinara que deveria proceder para
estancar hemorragias. Úgui gritou, tentou escapar – a garota reteve-o pelo
braço. A água do mar penetrou-lhe nas narinas rompidas por dentro e o sal fez
todo o seu rosto arder.
- Se quiser,
levo você para ver a loja. Você não está
mais proibida de entrar lá. Não vai ser mais só minha... Mostro todas as coisas
para você.
Liana lhe deu
um chute. Mas, teve cuidado de não acertar no rosto.
- Coisas
sujas! – ela disse.
E era a
primeira vez que Úgui escutava a sua voz.
O garoto
sobressaltou-se. Só conseguiu gaguejar:
- Então,
prometo a você... juro... que não entro mais lá. Eu juro, Liana!
Liana assentiu
de cabeça, satisfeita. Sorriu. Úgui estendeu a mão e acariciou os cabelos da
garota. Os dois foram se aproximando um do outro. A garota fechou os olhos. E,
inseguro, cheio de cuidados, contido, o beijo do garoto tocou os lábios dela.
Foi tão
rápido!
Liana
prontamente recuou de novo, sentindo-se confusa. Desde que perdera o pai, era a
primeira vez que sentia que havia mesmo alguém mais no seu mundo.
E estaria tudo
bem, se não fosse por uma dor em sua cabeça. Um zumbido que não sabia de onde vinha...
- Você...
está... tão quente. Liana! – Úgui apalpou a testa dela, preocupado. – Isso é
febre. A água do mar! Aquela água suja! Você ... ficou doente!
[Episódio 12... 22 de fevereiro]
No Próximo Episódio
Fora
um arquiteto.
Fazia tempos. E nada importava além da obsessão de apagar suas
lembranças.
Devia
andar pela casa dos sessenta anos, agora. Estava no auge da carreira quando as
construções que dirigia começaram a ser interrompidas e os magníficos prédios,
de linhas tão elegantes, que projetava, começara a ser invadidos e pilhados pela multidão
enlouquecida. Isso, até que a polícia, que cercava os invasores com granadas e
disparos de bazuca, transformou seus prédios monumentais em fornalhas. Com toda
aquela gente lá dentro.
Era
uma das lembranças que queria apagar.
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