terça-feira, 13 de setembro de 2016

               

EPISÓDIO 11

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                ­ - Sabia que o pessoal de antigamente vinha pra cá tomar banho... e sol? E deitavam na areia. Não era areia suja, naquele tempo.
                Nem entrando na água, Úgui parava de falar. Mas, Liana não queria saber de histórias. Empurrou-o e o garoto caiu de costas. Uma onda bateu sobre ele, cobrindo-o. Úgui voltou à tona, cuspindo água. E saltou sobre a garota, derrubando-a.
Os dois caíram na água, rindo. Rindo juntos. 






                Liana não entendeu o que havia perturbado Úgui. O rapaz estava tão contente, rindo com ela. Daí, a Lua saiu detrás de uma nuvem. Estavam deitados na areia, com a água chegando, por vezes, aos seus pés. Então, a Lua os iluminou em cheio – suas roupas molhadas, coladas ao corpo. E foi quando a expressão do rosto do garoto se transformou.
                Úgui puxou-a pela mão com força – machucando mesmo – para ela se levantar. A brincadeira havia terminado.
                Ele permaneceu calado por todo o trajeto de volta. Liana quase pressentia o que Úgui iria fazer, logo que chegassem ao shopping. E foi isso mesmo. Mal descarregaram suas latas de água, ele se fechou naquela loja do segundo andar. A loja onde ele a proibira de entrar.
                Liana sentiu medo. Era como se os fantasmas com que Úgui a ameaçara morassem ali dentro. E como se ele saísse de lá transformado também em fantasma.
                O pai de Liana nunca havia falado de fantasmas. A história de Úgui – gente morta  retornando ao shopping para catar pedaços que faltavam em seus corpos – parecia até engraçada, com alguma luz acesa por perto. Mas, o brilho dos olhos de Úgui quando saía da tal loja... Isso sim era o pesadelo de Liana com fantasmas.
                Quando Úgui, finalmente, deixou a loja, Liana já estava dormindo, no seu canto, no refúgio, cercada das suas bugigangas. Em sono, escutou-o chamar por ela e deu um pulo, no leito, despertando. A seguir, o olhar feroz do garoto pesou sobre ela, e Liana se encolheu toda. Ele se debruçou sobre a garota.
                Úgui trazia um maço de revistas amassadas. E disse, oferecendo-as a Liana:
                 - Você não vive querendo saber o que tem na minha loja secreta? Olha aqui! Trouxe para você ver!
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 [11...continua]

                A garota sentiu maldade na voz dele. Uma maldade que ela não conhecia.
                Sacudiu a cabeça, recusando-se a olhar as revistas. Não quis nem mesmo tocá-las. Úgui agarrou-a pelos cabelos:
                - Disse pra você olhar! Olhe! – e abriu uma das revistas bem na cara dela. – Tem muitas outras coisas lá. Cartazes. Tudo assim, como aqui... Você vai gostar!
                A foto, na revista, aquelas pessoas despidas, coladas umas nas outras. Homens e mulheres. Liana sentiu vergonha de estar olhando aquilo.  Quis tapar os olhos...
                - Todo mundo faz isso, você não sabia? Eu ensino pra você. As garotas lá do bando faziam também.
                Liana mandou um chute bem no estômago de Úgui. Ele se recuperou logo e pulou sobre ela, imobilizando-a. Falava junto da boca de Liana, caçando seus lábios. As mãos iam arrancando as roupas da garota, enquanto rolavam pelo chão, lutando.
                - Não adianta! Sou mais forte do que você!
                Das roupas da garota, só restavam trapos. Liana agarrava-se a eles em desespero. Então, seus dedos encontraram algo no chão. Um cinzeiro de metal, que havia recolhido de alguma vitrine.
                A pancada atingiu Úgui em cheio no nariz. O sangue espirrou, e Liana bateu de novo, dessa vez na testa do garoto.  Sentiu os músculos dele afrouxarem. Úgui largou-a, tentou se levantar, cambaleando... Os olhos dele reviraram-se.
                Liana correu de gatinhas de volta para seu leito, onde se encolheu, como se ali fosse uma toca. Viu Úgui desabar de costas no chão, como se algo nele tivesse sido desligado de repente. Ficou alguns segundos imóvel. A garota, do seu canto, aos soluços, observava-o apavorada, os olhos arregalados. Então, ele ergueu a cabeça, procurando-a...
                De relance os olhos de ambos se cruzaram. E os olhos de Úgui já não tinham aquele brilho de fantasmas. Havia muita surpresa nos olhos dele. E dor. E vergonha. O sangue escorria por suas faces. Ele tentou falar, mas no início conseguiu somente gemer. Então, balbuciou:
                - Desculpe... É que ... Não...  desculpe!
                Então, desabou novamente. E por muito tempo, não se mexeu. Liana chegou a deixar seu abrigo, preocupada. Temerosa, hesitante, colocou a mão na testa dele. Estava fria. Ela se apavorou, recuou... Então, viu o peito dele dar um solavanco, como se o ar entrasse de novo, de repente, nos pulmões. O peito dele continuou subindo e descendo aos pulos. Percebeu então que ele estava chorando.
Com raiva, agora, Liana correu até o maço de revistas, juntou-as e atirou-as sobre Úgui.  Ao contrário do que esperava, ele não reagiu. Somente ergueu a cabeça para ela. Seu rosto estava sujo de sangue, inchava rapidamente – o nariz estava quebrado. E havia tristeza nos olhos dele agora.
- Você não vai embora, vai? – ele perguntou, entre soluços.

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[11...continua] 

Liana aproximou-se, sempre segurando os trapos de roupa que a cobriam, e examinou de alguma distância o rosto dele.  A seguir, foi até outro canto, onde havia uma lata com água, embebeu um pedaço de pano nela, e retornou, ajoelhando-se junto de Úgui. Suavemente, limpou o sangue do rosto dele, enquanto o choro do garoto ia se tornando mais manso. As lágrimas continuavam a rolar por suas faces, mas ele já não soluçava.
- Só queria que a gente fosse namorado de verdade – disse.
Não conseguia encarar a garota. Liana comprimiu o nariz de Úgui, de leve, com o pano molhado... Lembrava-se como seu pai lhe ensinara que deveria proceder para estancar hemorragias. Úgui gritou, tentou escapar – a garota reteve-o pelo braço. A água do mar penetrou-lhe nas narinas rompidas por dentro e o sal fez todo o seu rosto arder.
- Se quiser, levo você para ver  a loja. Você não está mais proibida de entrar lá. Não vai ser mais só minha... Mostro todas as coisas para você.
Liana lhe deu um chute. Mas, teve cuidado de não acertar no rosto.
- Coisas sujas! – ela disse.
E era a primeira vez que Úgui escutava a sua voz.
O garoto sobressaltou-se. Só conseguiu gaguejar:
- Então, prometo a você... juro... que não entro mais lá. Eu juro, Liana!
Liana assentiu de cabeça, satisfeita. Sorriu. Úgui estendeu a mão e acariciou os cabelos da garota. Os dois foram se aproximando um do outro. A garota fechou os olhos. E, inseguro, cheio de cuidados, contido, o beijo do garoto tocou os lábios dela.
Foi tão rápido!
Liana prontamente recuou de novo, sentindo-se confusa. Desde que perdera o pai, era a primeira vez que sentia que havia mesmo alguém mais no seu mundo.
E estaria tudo bem, se não fosse por uma dor em sua cabeça. Um zumbido que não sabia de onde vinha...
- Você... está... tão quente. Liana! – Úgui apalpou a testa dela, preocupado. – Isso é febre. A água do mar! Aquela água suja! Você ... ficou doente!

[Episódio 12... 22 de fevereiro]

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                Fora um arquiteto.
               Fazia tempos. E nada importava além da obsessão de apagar suas lembranças.
                Devia andar pela casa dos sessenta anos, agora. Estava no auge da carreira quando as construções que dirigia começaram a ser interrompidas e os magníficos prédios, de linhas tão elegantes, que projetava, começara a ser  invadidos e pilhados pela multidão enlouquecida. Isso, até que a polícia, que cercava os invasores com granadas e disparos de bazuca, transformou seus prédios monumentais em fornalhas. Com toda aquela gente lá dentro.
                Era uma das lembranças que queria apagar. 

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