EPISÓDIO 07
NO FINAL DO EPISÓDIO ANTERIOR ...
NO FINAL DO EPISÓDIO ANTERIOR ...
Foi quando ele saltou de um dos cantos mais escuros e
derrubou-a, fazendo-a bater com força no piso.
Nem assim Liana gritou. Seus braços, então, foram rudemente torcidos
para trás, enquanto algo era berrado nos seus ouvidos. Mas, não conseguia
entender o que ele lhe perguntava. Ainda
mais daquela maneira, tão assustadora. Teve certeza de que o garoto a mataria logo
em seguida, e se debatia, tentando fugir.
- Seu bando, onde está? – repetiu Úgui aos berros,
sacudindo a garota. – Estão vindo aí? Pare de se remexer! Parece um cachorro
louco! Fica quieta e responda, ou vai se arrepender!
O
mensageiro mordia os dedos de aflição. A tarde já avançava pela metade e nada
de o encadernador de livros aparecer.
-
O velho teve um enfarte. Eu o via ofegante, quando tinha de escalar um lixão. E
essa lama, prendendo o pé... Cansa demais! Ou então, afundou numa fossa de lixo
movediço. Mas só pode ter morrido. É a segunda vez que fura comigo!
Mediu
outra vez a altura do sol, descendo, ao longe, por entre o Dois Irmãos e a
Pedra da Gávea. Decidiu que ainda dava para esperar mais um pouco.
-
Depois, dane-se! Eu é que não vou ficar solto aqui, de noite.
Levaria
mais ou menos uma hora, a pé, até o
estacionamento – o início da via expressa que desembocava na Zona Oeste,
ladeada por muros e guarnecida por guaritas a cada cinquenta metros. Mais
quinze minutos rodando, e chegaria ao Condomínio. Era funcionário do Condomínio
Fortificado Atlântica Sereia. Cargo: Auxiliar de Serviços Externos. Ou Motoboy.
-
Para o gerente é fácil dar ordens – resmungou. – “Restabeleça contato, ou ache
outro fornecedor!”. Outro fornecedor..? Fornecedores não anunciam na tevê, não
é? Vivem entocados como ratos. E onde eu ia encontrar outro maluco que
consertassem livros se desfazendo de velhos? Esse deve ser o último que sobrou
na cidade. Não é à toa que nenhum outro motoboy conhece quem faça esse serviço.
Senão, já tinham tomado meu cliente. Droga! Vou acabar perdendo o emprego por
causa daquele velho doido. Era meu fornecedor mais raro. Minha melhor comissão.
Ele não podia ter se ferrado, não podia! Se pelo menos, eu soubesse onde ele
mora...
Já
tentara seguir o encadernador de livros. Um motoboy despachado tratava de descobrir onde eram os esconderijos de seus
fornecedores.
-
Mas, aquele velho era esperto. Não chegou a me ver. Mas, nunca corria riscos.
Ficava dando voltas até anoitecer. Daí, era fácil me despistar. Quase
me ferrei, uma vez...
<<<>>>
(07 ... continua)
Teve
um arrepio só de recordar. De repente, o velho enfiou-se numas ruínas e sumiu.
O mensageiro chegou a pensar que havia encontrado a toca do seu fornecedor.
Mas, desconfiou... O prédio estava em condições tão precárias que seria um
perigo alguém morar ali. Resolveu entrar para checar. Sacou sua pistola e
meteu-se pela mesma fenda por onde vira o velho passar.
O
interior do edifício estava num estado ainda
mais preocupante. As infiltrações e os cupins haviam reduzido as paredes
a cascas ocas. O teto mostrava imponentes
rachaduras, que pareciam se alargar, quando o motoboy passava debaixo delas. O
piso tinha buracos semelhantes a bocarras, cujas goelas era a escuridão do que
fora a garagem daquele prédio.
O
motoboy somente avançou porque parecia um edifício enorme, que talvez ainda
tivesse algum canto habitável, onde encontraria o lar do encadernador.
Mas,
logo chegou à conclusão de que o velho o havia despistado. Só que, nessa
altura, já havia escurecido e ele, lúgubre do prédio, não percebera como o sol
decaíra rapidamente. Vindo lá de fora, então, o mensageiro começou a escutar
rumores de algo se arrastando, sem se preocupar em evitar de denunciar sua
aproximação. Escutou também um murmúrio crescente. Vozes. Numa toada de muitas
gargantas roucas. Nada que pudesse
decifrar. Não eram palavras. Eram uivos.
Sabia
que era uma hora perigosa. A cidade era povoada, à noite. Os bandos saíam de
seus esconderijos para catar comida – e brincar, em meio às ruínas. Brincar...
Se
fosse capturado por um bando, o pegariam para brincar. E de brincadeira
poderiam arrancar sua pele. Ou apedrejá-lo. Já soubera de motoboys que haviam
morrido assim. Ou que haviam se tornado escravos de um bando, puxados por
cordas amarradas a seus pescoços. Brincar.
Os
murmúrios aumentaram de intensidade. Podia ser uma tribo de mendigos. Saberiam
que ele estava ali dentro? Haviam cercado o prédio?
<<<>>>
(07...continua)
O
motoboy já estivera frente a frente com mendigos, no tempo em que trabalhava na
polícia. Ele e outro colega revistavam um prédio, que antigamente fora um
ministério de alguma coisa. Haviam imaginado que poderiam encontrar algo
valioso ali. Mas, não viram nada que valesse a pena.
Só que, nas
escadarias do que fora a fachada monumental do prédio, de detrás das ruínas das colunas, saiu todo um
bando de criaturas de rostos inchados, deformados, mal cobertos pelo que
poderia ainda se chamar de trapos. Os
olhos brilhantes. Os cabelos prensados ao crânio, como uma pasta desgrenhada.
Os uivos.
Emitiam aquele
som, como um zumbido de insetos, mas rouco, alto, gutural, como se suas
gargantas estivessem rasgadas, por dentro. Ninguém conseguia entender se eram
gritos de dor, de raiva, ou uma espécie qualquer de gargalhada. E o jeito como
caminhavam, sempre em bando, arrastando os pés, cambaleando, tombando uns sobre
os outros...
Ninguém
conseguia, na verdade, decidir se os mendigos, embora se movessem, e
caminhassem, estavam conscientes ao fazerem isso, ou se procediam como uma
espécie de mortos-vivos.
Logo depois, o
motoboy foi demitido da polícia, acusado de tentar enganar os colegas na
partilha de uma comissão por um serviço extra. E justamente o intermediador
desse serviço lhe arranjara o emprego no Condomínio. Era sua última chance. Não
tinha mais nenhum contato em lugar algum. Se perdesse esse emprego, talvez
fosse se juntar a uma das tribos de mendigos, na beira do mar.
Os uivos se afastaram. Escutou sirenes, a
alguma distância. Tinha certeza de que seria um blindado. Se conseguisse
pará-lo, poderia pedir que o tirassem dali. Mas, se o holofote do veículo o
pegasse saindo de um monturo de lixo, os
tiras iriam disparar antes de qualquer conversa.
Foi
nesse momento que a imagem do encadernador retornou a sua mente. Naquele dia,
em que o seguiu, antes de perdê-lo de vista, vira-o recolhendo algo do chão. A
distância, pareceu-lhe uma boneca. Só então deu-se conta do significado disso.
-
Ou o cara é maluco, ou tem uma filha. Uma menina... nascida e criada fora das
ruas...
Estaria
bonita, saudável. Uma presa lucrativa. Muito lucrativa. Vendê-la aos chefes, no
condomínio, iria mudar sua vida! Mesmo com a parte que teria de dar aos
intermediários. E ao seu gerente. Ou talvez, pudesse ir direto ao chefe...
Como?
Isso fazia
anos...
- A menina
deve estar grandinha agora – disse o motoboy, que costumava ter essas conversas
consigo mesmo em voz alta. Era um
serviço solitário. Passava dias sem cruzar
com ninguém que pudesse estar interessado em trocar ideias com ele. - Uma adolescente. Sim... Uma presa muito lucrativa!
Naquela noite
de medo, acabou pernoitando dentro do prédio. Ou melhor, quase na entrada. Nem
dentro, nem fora. Fora de vista das ruas e sem se arriscar a ficar soterrado
por um desabamento... fora outros
perigos...que houvesse naquelas ruínas. Deu-lhe náuseas só de lembrar como
atravessara aquela noite. Em claro, os dedos tão apertados em torno da coronha
da pistola que se enrijeceram, sem que ele sentisse. Abri-los, de manhã, foi um
custo.
O sol já
descia no meio dos morros a Oeste. Não poderia mais esperar pelo encadernador.
O motoboy tomou o rumo do estacionamento, considerando o que iria fazer da sua
vida. Sem fornecedor, ele se tornaria inútil para o serviço no condomínio.
- O velho se
ferrou! Não deixaria de vir ao encontro, se pudesse, o morto de fome. Se
ferrou. E vou me ferrar junto dele. O que é que vou fazer? Sair aí pelas ruas
com um megafone berrando: “Ei, tem alguém aí que remende livros? Ou que saiba
fazer qualquer coisa que sirva lá para o Condomínio? Alguém aí se lembra de algum trabalho que
fazia vinte anos atrás? Alguém que esteja vivo, de preferência! E que não tenha
pirado? Tem alguém aí?”
Aquilo fora
uma avenida muito movimentada. Lojas, cinemas, bancos, academias de ginástica,
estabelecimentos de serviços, no térreo. Prédios com escritórios, consultórios,
residências, nos andares superiores. Tudo aquilo que estava tão silencioso,
agora, tão parado como se nem o ar circulasse.
Mas, talvez,
exatamente agora, houvesse algum fornecedor, entocado na escuridão mofada de
seu apartamento caindo aos pedaços, observando-o passar na rua lá embaixo.
Ou então,
teria de tomar o fornecedor de alguém. Era assim que acontecia, no setor de
serviços externos. Fora assim com o encadernador. Tomara-o do motoboy manco,
que recebia a maior parte do seu salário e comissões diretamente em bebida. E
que não tomava o devido cuidado, quando ia ao encontro de seu fornecedor.
- O gerente
não quer saber quem traz a encomenda. Contanto que receba a parte dele, não faz
pergunta nenhuma! O que acontece com a gente fora do Condomínio não é problema
dele!
E para o
encadernador, também, pouco importou a mudança. E daí se o motoboy anterior estivesse apodrecendo em um monturo
de lixo com uma bala na nuca?
- Sei de um
motoboy que tem uma bordadeira. Que coisa esquisita! Mas, os chefões do
condomínio gostam. Camisolas bordadas. Lenços. Gostam de dar presentes às suas
garotas. Nenhum outro condomínio tem uma bordadeira... E nenhum tinha um
encadernador. Só eu. Fazia sucesso! Os executivos lá do Sereia gostavam de dar
livros de luxo de presente. Ora, dane-se. Já era! Mas, tem a bordadeira...
Daí...!
O sol já havia
desaparecido atrás dos morros, na direção em que o motoboy disparava, sobre sua
moto, pela via expressa. Logo, acendia-se a farta iluminação que acompanhava a
estrada. De um lado e outro, uma muralha acompanhava o percurso. No alto dela, erguiam-se cercas elétricas. Veículos
autorizados eram equipados com um pulso,
que emitia um sinal à medida que passava por cada guarita. O sistema de
câmeras, sensores de trânsito e radares funcionava ininterruptamente,
alimentando a central de monitoração.
Os operadores de
segurança dos condomínios asseguravam que nenhum intruso poderia ultrapassar as
muralhas e penetrar na via expressa. E que qualquer veículo suspeito seria,
conforme o caso, ou abordado, ou sumariamente destruído, setenta e três
segundos após a detecção. Até então, jamais se registrara uma ocorrência
dessas. Mesmo assim, realizavam-se constantes treinamentos e a próxima meta era
baixar esse tempo para sessenta e cinco segundos.
[Episódio 08... dia 25/jan]
No Próximo Episódio...
Aos trancos, Úgui arrastou Liana pelos corredores do shopping.
A garota lutava como podia. Acertava chutes no seu captor, arranhava-o.
Conseguiu até mesmo, em dado momento, se desvencilhar dele e correr. Mas, Úgui
a alcançou, derrubou-a, e dominou-a a tapas.
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