terça-feira, 13 de setembro de 2016


EPISÓDIO 07


NO FINAL DO EPISÓDIO ANTERIOR ...
                Foi quando ele saltou de um dos cantos mais escuros e derrubou-a, fazendo-a bater com força no piso.  Nem assim Liana gritou. Seus braços, então, foram rudemente torcidos para trás, enquanto algo era berrado nos seus ouvidos. Mas, não conseguia entender o que ele  lhe perguntava. Ainda mais daquela maneira, tão assustadora. Teve certeza de que o garoto a mataria logo em seguida, e se debatia, tentando fugir.
                - Seu bando, onde está? – repetiu Úgui aos berros, sacudindo a garota. – Estão vindo aí? Pare de se remexer! Parece um cachorro louco! Fica quieta e responda, ou vai se arrepender! 



               
                O mensageiro mordia os dedos de aflição. A tarde já avançava pela metade e nada de o encadernador de livros aparecer.
                - O velho teve um enfarte. Eu o via ofegante, quando tinha de escalar um lixão. E essa lama, prendendo o pé... Cansa demais! Ou então, afundou numa fossa de lixo movediço. Mas só pode ter morrido. É a segunda vez que fura comigo!
                Mediu outra vez a altura do sol, descendo, ao longe, por entre o Dois Irmãos e a Pedra da Gávea. Decidiu que ainda dava para esperar mais um pouco.
                - Depois, dane-se! Eu é que não vou ficar solto aqui, de noite.
                Levaria mais ou menos uma hora, a pé,  até o estacionamento – o início da via expressa que desembocava na Zona Oeste, ladeada por muros e guarnecida por guaritas a cada cinquenta metros. Mais quinze minutos rodando, e chegaria ao Condomínio. Era funcionário do Condomínio Fortificado Atlântica Sereia. Cargo: Auxiliar de Serviços Externos. Ou Motoboy.
                - Para o gerente é fácil dar ordens – resmungou. – “Restabeleça contato, ou ache outro fornecedor!”. Outro fornecedor..? Fornecedores não anunciam na tevê, não é? Vivem entocados como ratos. E onde eu ia encontrar outro maluco que consertassem livros se desfazendo de velhos? Esse deve ser o último que sobrou na cidade. Não é à toa que nenhum outro motoboy conhece quem faça esse serviço. Senão, já tinham tomado meu cliente. Droga! Vou acabar perdendo o emprego por causa daquele velho doido. Era meu fornecedor mais raro. Minha melhor comissão. Ele não podia ter se ferrado, não podia! Se pelo menos, eu soubesse onde ele mora...
                Já tentara seguir o encadernador de livros. Um motoboy despachado tratava de  descobrir onde eram os esconderijos de seus fornecedores.
                - Mas, aquele velho era esperto. Não chegou a me ver. Mas, nunca corria riscos. Ficava dando voltas até anoitecer. Daí, era fácil me despistar.    Quase me ferrei, uma vez...

<<<>>> 

(07 ... continua)

                Teve um arrepio só de recordar. De repente, o velho enfiou-se numas ruínas e sumiu. O mensageiro chegou a pensar que havia encontrado a toca do seu fornecedor. Mas, desconfiou... O prédio estava em condições tão precárias que seria um perigo alguém morar ali. Resolveu entrar para checar. Sacou sua pistola e meteu-se pela mesma fenda por onde vira o velho passar.
                O interior do edifício estava num estado ainda  mais preocupante. As infiltrações e os cupins haviam reduzido as paredes a cascas ocas.  O teto mostrava imponentes rachaduras, que pareciam se alargar, quando o motoboy passava debaixo delas. O piso tinha buracos semelhantes a bocarras, cujas goelas era a escuridão do que fora a garagem daquele prédio.
                O motoboy somente avançou porque parecia um edifício enorme, que talvez ainda tivesse algum canto habitável, onde encontraria o lar do encadernador.
                Mas, logo chegou à conclusão de que o velho o havia despistado. Só que, nessa altura, já havia escurecido e ele, lúgubre do prédio, não percebera como o sol decaíra rapidamente. Vindo lá de fora, então, o mensageiro começou a escutar rumores de algo se arrastando, sem se preocupar em evitar de denunciar sua aproximação. Escutou também um murmúrio crescente. Vozes. Numa toada de muitas gargantas roucas.  Nada que pudesse decifrar. Não eram palavras. Eram uivos.
                Sabia que era uma hora perigosa. A cidade era povoada, à noite. Os bandos saíam de seus esconderijos para catar comida – e brincar, em meio às ruínas. Brincar...
                Se fosse capturado por um bando, o pegariam para brincar. E de brincadeira poderiam arrancar sua pele. Ou apedrejá-lo. Já soubera de motoboys que haviam morrido assim. Ou que haviam se tornado escravos de um bando, puxados por cordas amarradas a seus pescoços. Brincar.
                Os murmúrios aumentaram de intensidade. Podia ser uma tribo de mendigos. Saberiam que ele estava ali dentro? Haviam cercado o prédio?
<<<>>> 


(07...continua)

                O motoboy já estivera frente a frente com mendigos, no tempo em que trabalhava na polícia. Ele e outro colega revistavam um prédio, que antigamente fora um ministério de alguma coisa. Haviam imaginado que poderiam encontrar algo valioso ali. Mas, não viram nada que valesse a pena.
Só que, nas escadarias do que fora a fachada monumental do prédio,  de detrás das ruínas das colunas, saiu todo um bando de criaturas de rostos inchados, deformados, mal cobertos pelo que poderia ainda se chamar de trapos.  Os olhos brilhantes. Os cabelos prensados ao crânio, como uma pasta desgrenhada.
Os uivos. 
Emitiam aquele som, como um zumbido de insetos, mas rouco, alto, gutural, como se suas gargantas estivessem rasgadas, por dentro. Ninguém conseguia entender se eram gritos de dor, de raiva, ou uma espécie qualquer de gargalhada. E o jeito como caminhavam, sempre em bando, arrastando os pés, cambaleando, tombando uns sobre os outros...           
Ninguém conseguia, na verdade, decidir se os mendigos, embora se movessem, e caminhassem, estavam conscientes ao fazerem isso, ou se procediam como uma espécie de mortos-vivos.
Logo depois, o motoboy foi demitido da polícia, acusado de tentar enganar os colegas na partilha de uma comissão por um serviço extra. E justamente o intermediador desse serviço lhe arranjara o emprego no Condomínio. Era sua última chance. Não tinha mais nenhum contato em lugar algum. Se perdesse esse emprego, talvez fosse se juntar a uma das tribos de mendigos, na beira do mar.
                 Os uivos se afastaram. Escutou sirenes, a alguma distância. Tinha certeza de que seria um blindado. Se conseguisse pará-lo, poderia pedir que o tirassem dali. Mas, se o holofote do veículo o pegasse saindo de um monturo de lixo,  os tiras iriam disparar antes de qualquer conversa.
                Foi nesse momento que a imagem do encadernador retornou a sua mente. Naquele dia, em que o seguiu, antes de perdê-lo de vista, vira-o recolhendo algo do chão. A distância, pareceu-lhe uma boneca. Só então deu-se conta do significado disso.
                - Ou o cara é maluco, ou tem uma filha. Uma menina... nascida e criada fora das ruas...
Estaria bonita, saudável. Uma presa lucrativa. Muito lucrativa. Vendê-la aos chefes, no condomínio, iria mudar sua vida! Mesmo com a parte que teria de dar aos intermediários. E ao seu gerente. Ou talvez, pudesse ir direto ao chefe... Como? 
Isso fazia anos...
- A menina deve estar grandinha agora – disse o motoboy, que costumava ter essas conversas consigo mesmo em voz alta.  Era um serviço solitário. Passava dias sem cruzar  com ninguém que pudesse estar interessado em trocar ideias com ele. -  Uma adolescente. Sim... Uma presa muito lucrativa!
Naquela noite de medo, acabou pernoitando dentro do prédio. Ou melhor, quase na entrada. Nem dentro, nem fora. Fora de vista das ruas e sem se arriscar a ficar soterrado por  um desabamento... fora outros perigos...que houvesse naquelas ruínas. Deu-lhe náuseas só de lembrar como atravessara aquela noite. Em claro, os dedos tão apertados em torno da coronha da pistola que se enrijeceram, sem que ele sentisse. Abri-los, de manhã, foi um custo. 
O sol já descia no meio dos morros a Oeste. Não poderia mais esperar pelo encadernador. O motoboy tomou o rumo do estacionamento, considerando o que iria fazer da sua vida. Sem fornecedor, ele se tornaria inútil para o serviço no condomínio.
- O velho se ferrou! Não deixaria de vir ao encontro, se pudesse, o morto de fome. Se ferrou. E vou me ferrar junto dele. O que é que vou fazer? Sair aí pelas ruas com um megafone berrando: “Ei, tem alguém aí que remende livros? Ou que saiba fazer qualquer coisa que sirva lá para o Condomínio?  Alguém aí se lembra de algum trabalho que fazia vinte anos atrás? Alguém que esteja vivo, de preferência! E que não tenha pirado? Tem alguém aí?”
Aquilo fora uma avenida muito movimentada. Lojas, cinemas, bancos, academias de ginástica, estabelecimentos de serviços, no térreo. Prédios com escritórios, consultórios, residências, nos andares superiores. Tudo aquilo que estava tão silencioso, agora, tão parado como se nem o ar circulasse.
Mas, talvez, exatamente agora, houvesse algum fornecedor, entocado na escuridão mofada de seu apartamento caindo aos pedaços, observando-o passar na rua lá embaixo.
Ou então, teria de tomar o fornecedor de alguém. Era assim que acontecia, no setor de serviços externos. Fora assim com o encadernador. Tomara-o do motoboy manco, que recebia a maior parte do seu salário e comissões diretamente em bebida. E que não tomava o devido cuidado, quando ia ao encontro de seu fornecedor.
- O gerente não quer saber quem traz a encomenda. Contanto que receba a parte dele, não faz pergunta nenhuma! O que acontece com a gente fora do Condomínio não é problema dele!
E para o encadernador, também, pouco importou a mudança. E daí se o motoboy  anterior estivesse apodrecendo em um monturo de lixo com uma bala na nuca?
- Sei de um motoboy que tem uma bordadeira. Que coisa esquisita! Mas, os chefões do condomínio gostam. Camisolas bordadas. Lenços. Gostam de dar presentes às suas garotas. Nenhum outro condomínio tem uma bordadeira... E nenhum tinha um encadernador. Só eu. Fazia sucesso! Os executivos lá do Sereia gostavam de dar livros de luxo de presente. Ora, dane-se. Já era! Mas, tem a bordadeira... Daí...!
O sol já havia desaparecido atrás dos morros, na direção em que o motoboy disparava, sobre sua moto, pela via expressa. Logo, acendia-se a farta iluminação que acompanhava a estrada. De um lado e outro, uma muralha acompanhava o percurso. No alto dela,  erguiam-se cercas elétricas. Veículos autorizados eram equipados com um pulso, que emitia um sinal à medida que passava por cada guarita. O sistema de câmeras, sensores de trânsito e radares funcionava ininterruptamente, alimentando a central de monitoração.
Os operadores de segurança dos condomínios asseguravam que nenhum intruso poderia ultrapassar as muralhas e penetrar na via expressa. E que qualquer veículo suspeito seria, conforme o caso, ou abordado, ou sumariamente destruído, setenta e três segundos após a detecção. Até então, jamais se registrara uma ocorrência dessas. Mesmo assim, realizavam-se constantes treinamentos e a próxima meta era baixar esse tempo para sessenta e cinco segundos.

[Episódio 08... dia 25/jan]


No Próximo Episódio...

                Aos trancos, Úgui arrastou Liana pelos corredores do shopping. A garota lutava como podia. Acertava chutes no seu captor, arranhava-o. Conseguiu até mesmo, em dado momento, se desvencilhar dele e correr. Mas, Úgui a alcançou, derrubou-a, e dominou-a a tapas. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário