terça-feira, 13 de setembro de 2016

EPISÓDIO 1


Episódio 01


A HORA DAS SOMBRAS

Luiz Antonio Aguiar



Úgui já quase não conseguia correr.  Seu corpo inteiro doía. Mas, não tinha alternativa. Se fosse alcançado, não escaparia. Seria linchado. Chefe deposto tinha de morrer. Era a lei da sobrevivência do bando.
                O pior para o garoto era estar descalço e atravessar os monturos de escombros e lixo, repletos de cacos de vidro, pontas de metal e de madeira. As solas dos seus pés estavam em tiras, deixando um rastro de sangue. Cada passo, agora, era mais uma ferida aberta.  
                Náique e seu grupo haviam caído de surpresa em cima dele. Úgui não tivera tempo de pegar nem seu furador, nem a socadeira, nem os preciosos tênis que ele próprio havia reforçado. Já fora sorte escapar com vida.
                “Como foi que não desconfiei que iam me pegar? O Náique! Claro, tinha que ser ele! Tava na cara!  Cochichos! Olhares de lado! E eu, bobão! Estava quase dormindo quando vieram pra cima de mim! Bobalhão, eu! E bobalhão morre!”...
                Não adiantava mais irritar-se consigo mesmo. Tinha é que aguentar os rasgões nos pés. E a dor das pancadas e dos golpes que sofrera. E a fraqueza, cada vez maior. Respirar doía! Tudo doía.
                E tinha de correr. Esquecer que doía. Correr!
                Por momentos, afundava até acima das canelas em fossas daquela lama descorada e gosmenta que recobria a paisagem. Parou, sem fôlego. O fedor azedo de lixo velho e a névoa ácida que embaçava o ar penetraram profundamente nos seus pulmões. Seu peito ardeu. Pensou na possibilidade de  se esconder. Esperar de tocaia. Agarrar um dos garotos e tomar os tênis dele.
                Mas, não ia dar certo...
                Havia treinado seu bando muito bem. Dificilmente, algum deles ia ser idiota de se afastar dos outros, sozinho. Daí, bastava um grito de alerta e viriam todos. Úgui estaria perdido.
                Tentou escolher onde pisava. Mais difícil ainda. A escuridão das ruas não o deixava ver quase nada. E ele já perdia terreno. De longe, chegavam os berros dos garotos, procurando seus rastros na massa de lixo.
                Úgui precisava encontrar um esconderijo onde os garotos não iriam procurá-lo! ...
                - Vocês têm de parar de ir no Roxy! Tem um vampiro morando nas ruínas.
                - Um vampíro! – admiraram-se os garotos. A palavra lembrava alguma coisa: dava medo. –  O que é um vampiro?
                - É... uma sombra! – arriscara Úgui. – Se alguém chega perto, ele pega ... e transforma o cara em sombra também.
                - Você está inventando, Úgui! Isso não existe! – desafiou Náique, cada vez mais atrevido.
                - O  pessoal de antigamente acreditava em vampiros, Faziam até filmes sobre eles, para todo mundo ter cuidado. Eles sabiam das coisas. Vi um cartaz lá na parede do Roxy e consegui ler... VAMPIRO! Vocês precisavam ver o retrato dele. Estava com fome! Muita fome! E vampiros não morrem. Nunca. Ele ainda está lá!
                Úgui era um dos únicos garotos do bando que sabia soletrar. Havia aprendido com o chefe que o antecedera. Com ele, aprendera também histórias de como a cidade fora. E de como vivia o pessoal de antigamente. Algumas dessas histórias, ele sabia repetir. Outras, lembrava mais ou menos, meio misturadas, faltando pedaços.
                Mas,  nunca confessava quando não sabia . Ia inventando. Uma das habilidades de que um chefe de bando precisava era saber contar histórias. Principalmente sobre como fora a vida antes. Por isso, ele sempre arrumava um jeito de contar a história. De explicar, de dizer o que era o quê, de responder as dezenas de perguntas que o bando trazia, todas as noites para as reuniões em volta da fogueira, sobre o que tinham encontrado e descoberto em suas explorações.
                - Como foi que esse vampiro nunca pegou ninguém até hoje? – insistiu Náique.

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(01/continuação...)

                - Quem disse? –  replicou, Úgui. –  E a Bárbi, que sumiu lá naquelas ruínas? Só deram pela falta dela no caminho de volta. A gente nunca descobriu o que aconteceu.
                - Ela deve ter se perdido dos outros! Daí, um bicho-blindado pegou ela.
                - Não foi isso! É o que tô querendo contar pra vocês! – Úgui tomou fôlego e fechou a cara. – Vi a sombra da Bárbi passeando na parede junto do cartaz. – Todos os garotos tiveram um arrepio. – Foi o que aconteceu com ela. Vai ver, entrou lá sozinha. Agora, virou sombra. Eu vi! Acho que ela estava tentando avisar a gente de que o vampiro esteve dormindo, mas agora acordou. Daí, uma coisa gelada chegou perto de mim. Parecia vento. Mas,  estava viva. Tive de correr pra conseguir escapar. Tô avisando...! Quem não quiser virar sombra, não deve voltar lá.
                Úgui pretendia somente impedir que os garotos menores se metessem dentro do velho cinema, que estava ameaçando desabar de vez. Costumavam afastar os destroços de concreto que bloqueavam a entrada e abrir buracos para chegar à plateia. Então, ficavam o dia inteiro sentados nas poltronas arrebentadas, no meio do mofo e da poeira. Contavam histórias uns para os outros, que imaginavam estarem passando na tela que já não existia, havia tempos.  E brincavam de ser garotos de antigamente, como os que Úgui contara que costumavam ir ali. Para “verem coisas”...
“Coisas animadas, engraçadas, coloridas...” Até mesmo quando a cidade já havia se tornado quase totalmente cinzenta. Havia algo ali que os garotos não compreendiam, mas gostavam de sentir.
                Muita coisa ainda podia ser encontrada no interior de prédios que nunca haviam sido explorados nem pelos bandos, nem pelos mendigos. Por isso, os garotos viviam procurando fendas, buracos, entradas. Mas, era difícil encontrar uma passagem, através das fachadas desmoronadas. Precisavam procurar muito, e contar com a sorte.
Foi assim que descobriram o cinema. E foi Úgui quem explicou o que era aquilo, o que acontecia ali.  Lembrava-se de seu antigo chefe contando algo sobre lugares assim.
 Daí voltou sozinho, noutra noite. Percebeu que o interior tinha um andar de cima. Era difícil alcançá-lo. As infiltrações e infestações de cupins haviam feito os degraus da escadaria ruírem anos antes.  Algumas vigas do teto tinham enormes rachaduras. O garoto precisou escalar os escombros para chegar lá.
Então, viu na parede  o caxilho, com o vidro quebrado, faltando pedaços. Por baixo da poeira, Úgui enxergou dois pontos brilhantes. Vermelhos, parecendo pequenas chamas. Fogo gelado. Os olhos do vampiro.
 Eram estranhos. Quando limpou a poeira, parecia que aqueles olhos se cravaram nele. Acompanhando-o, sempre.
E havia sangue escorrendo dos cantos da boca do monstro. Úgui se lembrava dessa palavra, monstro. Soube imediatamente que a palavra dava nome àquilo que estava vendo. Monstro.

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(01/continuação...)
 Os olhos do monstro ainda o perseguiam. Famintos. Úgui precisou olhar para trás e dar uma espiada em volta para se assegurar que nada estava se aproximando dele pelas costas. A luz da sua vela desenhava compridos dedos nas paredes, querendo agarrá-lo. Lá do meio da escuridão, vinham ruídos de goteiras, estalidos de dentro das paredes, lascas de teto sempre despencando. Ratos.
Úgui fugiu dali o mais depressa que pôde, naquela noite. 
Sobre seu medo, não contou nada ao bando. Mas, o estado do prédio o preocupou. O garoto que era chefe do bando antes de Úgui fora esmagado num desabamento, quando explorava um prédio desmoronado.
Mas, agora, graças áquela história, tinha um lugar para passar a noite.
Com medo de serem pegos pelo vampiro, a maioria dos garotos não entraria no Roxy. Mas, e se Náique lhes desse coragem?
Precisava arriscar. Talvez, excitados como estavam, não se lembrassem de procurá-lo ali.
“Mas... e o vampiro?...” O pensamento atravessou sua mente. Intruso. Intrometido. “Bobalhão!”, xingou-se. “Com medo da minha própria mentira...!...  Mas bem que eu queria... saber o que é um vampiro!”.
Úgui se enfiou por entre os destroços e vergalhões enferrujados, e conseguiu encontrar a passagem.
“Não importa... melhor do que morrer linchado!”.
A gritaria do bando anunciava que eles já estavam bem perto dali.

(fim do episódio 01...  
... EPISÓDIO 02 ...   dia 14/12)




                                                                  EPISÓDIO 02


                                                                    A HORA DAS SOMBRAS



Luiz Antonio Aguiar


                O gerador de energia elétrica da delegacia continuava soltando fumaça.  Estava nas últimas. Irritado, e depois de mais de duas horas tentando inutilmente consertá-lo, o detetive Zeromeia deu-lhe uma cusparada e retornou à sala do plantão.

                - E aí? – perguntou o delegado Zerossix, com os fartos pelos do peito saltando fora da camisa aberta e mesmo assim suando desesperadamente. – Já podemos ligar o ar-condicionado?

                - Só se for para explodir de vez aquela porcaria. Cheira forte a  queimado,  o motor está travando e por dentro é só ferrugem. Nada mais encaixa direito! Uma buraqueira!

                - Então, vamos ter de continuar com as janelas escancaradas!... – suspirou Zerossix. - Respirando esse ar nojento!

                Zeromeia fez uma careta. O cheiro das ruas invadia a delegacia. Grudara-se nas paredes, nas roupas deles. Era insuportável.

                -  Quando é que nosso patrocinador vai se convencer de que precisamos de outro gerador? Entre outras coisas...

                Zerossix deu de ombros. Estava cansado de escutar aquela mesma reclamação de seu subordinado.  Pegou num canto um pequeno aparelho de tevê e começou a colocar as pilhas nele. Tirava sempre as pilhas, depois do uso, para poupá-las.

                - Não me diga que vai assistir ao programa político de hoje! – esbravejou Zeromeia. – Que desperdício de pilhas!

                - A esta hora, é só o que passam na tevê. Lembra dos programas de antigamente? Shows, novelas...? Pelo menos, com a tevê ligada, o plantão fica menos chato.

                - Mais tarde, tem os desenhos animados.

                - A tevê é minha. As pilhas também. Dá licença?


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(02/continuação ...)



                Zeromeia desistiu de discutir. Foi para sua mesa redigir mais um memorando ao patrocinador.


PARA:

SUPERVISÃO DO CONDOMÍNIO FORTIFICADO ATLÂNTICA SEREIA

DE:

                DELEGACIA SETOR 12

ASSUNTO:

                REPOSIÇÃO DE EQUIPAMENTOS


- A resposta vai ser como das vezes anteriores – grunhiu Zerossix, sem precisar olhar para o detetive. Já sabia o que ele estaria fazendo... O que sempre fazia... – Já têm o carimbo pronto: “INDEFERIDO POR CORTE DE CUSTOS”...

- Pelo menos, eu tento.

- É... – Zerossix soltou um escandaloso bocejo. Mas, a seguir, lembrou-se: - Ah... Recebi um comunicado pelo rádio, agorinha. Parece que um bando está fazendo uma barulheira enorme, numa das áreas da orla marítima.           

A imagem da tevê estava borrada de chuviscos. O som era fanhoso. Zerossix tentava sintonizar melhor, mas o aparelho de tevê não ajudava.

- Quer que eu mande um blindado para lá?  Acho que os malucões estão na ronda de hoje!

- Ah, os malucões... sim! Peça para trazerem algum prisioneiro vivo, desta vez.

- Se fosse tão fácil, já estávamos ricos.  Aqueles pivetes sabem andar por aí. São silenciosos como baratas. Espalham sempre vigias. Quando vêem as luzes do blindado, dão alarme e todos fogem. Cada um para um lado.  E é difícil avançar com um blindado no meio do lixo. Tem ainda os buracos... Se a gente tivesse helicópteros, como os seguranças dos condomínios da Zona Oeste...

-  Só que não temos! – cortou Zerossix. – E nosso trabalho é assim. Se estiver cansado, peça demissão!

Zeromeia bufou. Quase explodiu. Por precaução, a mão direita de seu chefe, discretamente, correu para a coronha da pistola, no coldre. Tudo isso sem olhar para o subordinado.


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(02/continuação...)


Por dois segundos, pouco mais, a situação ficou tensa. Mas, Zeromeia cuidou de desfazer o clima, lembrando:

- Na semana passada, conseguimos capturar uma garota. Foi uma boa venda!

- Pura sorte. Ela perdeu-se do bando. Isso é raro. Tentou voltar para o esconderijo e caiu numa cratera. Ficou atolada no lixo, desmaiada.  Se estivesse solta na rua, ia ser mais difícil. Shhhh! – fez ele. – Cala a boca. Vai começar!

- Outro discurso! – rugiu Zeromeia, erguendo-se ameaçadoramente.

Zerossix puxou sua pistola e soltou a trava de segurança. Zerossix encarou-o por um segundo. Sabia que seu chefe tinha uma mira letal. Então, preferiu baixar a cabeça e sentar de volta, enquanto um senhor de terno escuro,  caro, olhar confiante, meio sorriso nos lábios, cabelos com mechas brancas e unhas bem tratadas, conclamava:

- Concidadãs! Concidadãos!

- É o Presidente! – murmurou Zerossix, num tom de quem propõe trégua.

- Presidente do quê? – resmungou Zeromeia.

– Ora...! – Zerossix deu de ombros.

Zeromeia insistiu:

- E onde ficam esses caras?

- No exterior ... Eu não sei. Ninguém sabe! Quero ouvir!

                Zeromeia  disse a si mesmo que, inutilidade por inutilidade, preferia escrever outro memorando desaforado, que jamais seria lido por quem poderia tomar alguma providência. O presidente discursava:

                Desta vez, não tenho dúvidas em anunciar que retomaremos o rumo do progresso e reconstruiremos nossa pátria. Quase trinta anos de recessão fizeram muitos esquecerem coisas importantes. Mas, não o Governo. Os governantes não podem nem por um instante deixar de trabalhar pelo bem nacional. Pelo país. E o país está no rumo certo. Há pessoas que dizem que o país não existe mais. Mas, esses não contam. Queremos os cidadãos de verdade. Os patriotas. Os que nunca deixaram de acreditar na possibilidade desta terra assumir de volta o lugar que merece entre as grandes potências mundiais. Queremos os que se dispõem a mais um sacrifício pelo futuro. Um sacrifício amargo, mas necessário.  Mais um pouco de paciência. Que se mantenham em ordem. Em paz. Colaborem com o bem comum, e logo os primeiros impostos serão cobrados. Impostos. Recadastramento geral dos cidadãos. Organização social. Estado trabalhando. É o futuro que nos aguarda. E prometo que isso acontecerá em breve. A falência da nossa economia está com os dias contados. A destruição moral de nossa pátria, a partir de hoje, começa a ser superada. Vamos fundar uma nova era. Uma nova economia. Um país novo! Uma nação unida em torno de seus ideais. De sua história. De suas esperanças. Povo e governo juntos na conquista deste grande momento nacional! Nação para todos! O amanhã começa AGORA!

                - Mas,  que governo? -  provocou  Zeromeia, exasperando seu chefe.

                - O nosso, idiota! – berrou Zerossix. - Eles venceram as pesquisas de opinião, não venceram?

                Foi a vez de Zeromeia ficar furioso e retrucar, abandonando de vez o memorando.

                - Eu é que sou idiota? Então, eles venceram as pesquisas de opinião! Mas, quem sobrou para responder as pesquisas, aí pelas ruas? As sombras? Ou será que foram bater de porta em porta das casas desabadas? Você respondeu a alguma pesquisa?

                - Claro que não! – disse Zerossix, acuado. – Mas, que ideias são essas? Você virou um revoltado?

                - Não! Sou um imbecil suado, que lava suas cuecas uma vez por semana, quando vem algum caminhão pipa por estes lados, e mora nos fundos da delegacia, no cortiço que chamam de alojamento dos tiras. E sou um cara que não sabe que porcaria de governo é esse, nem onde ele está trabalhando, se é que faz alguma coisa. Já você, sabe de tudo, e acha que tem governo! Que eles governam para a gente! Lá no bem bom para onde escaparam desta imundície em que nos deixaram!

                - Você é, sim, um revoltado, Zeromeia!  Eu já desconfiava. Esses seus memorandos...!

                Mais um instante de tensão. Ambos, quase sem sentir, estavam prestes a apontar suas pistolas. Mas, ambos também, quase ao mesmo tempo, tiveram o mesmo receio... que sua arma, tão antiga, sem manutenção adequada, engasgasse...

               

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(02/continuação...)


- Olha aqui, Zeromeia! – disse o Zerossix, em tom conciliador. – Não estou me importando se a gente tem governo ou não. Não é o meu governo. Não é governo de ninguém. Eu sei disso... Mas, esses seus memorandos me deixam preocupados. E se o patrocinador se irritar? E se romper o contrato? Tem muita delegacia querendo nosso cliente. Você sabe... Doidas para fornecer moleques para o Atlântica Sereia. As capturas estão rareando pra todo mundo. Não sobrou mais pivete vivo na rua como antigamente. Havia fartura deles, até um tempo atrás. Mas, isso acabou ... Paciência! Os negócios estão difíceis! É, estão...  Pra piorar, tem aqueles piratas contrabandeando pivetes para o exterior. É mole? E os centros de lazer dos funcionários não graduados dos condomínios? Eles têm serviço de captura próprio. Sabe o que isso quer dizer? Que a concorrência é dura. Não tem colega! Não tem respeito nem consideração. São todos uns canalhas! E o mais canalha é que vence! A gente não pode ficar fora do mercado, não é? Tá reclamando do alojamento? Do trabalho? Tem coisa pior! Bem pior...

                “Deixar de trabalhar pro patrocinador, por exemplo”, refletiu Zeromeia, emudecido. “Ficar sem emprego, na sarjeta...Ter de se garantir nas ruas!”...

                - Vou dizer só mais uma coisa – murmurou Zeromeia, sem querer se render de vez. – Vai ver são os patrocinadores que escolhem quem vai falar nesse programa político. Vai ver são eles quem escolhem quem fica no governo. Lá fora. Longe daqui. Numa boa. Reparou no terno do cara? Onde se compra uma coisa daquelas? Eu nem sei, você sabe? Duvido. Aqui, não tem nada parecido faz tempo. Mas, eles estão legais, lá fora, graças a esses títulos, presidente, ministro, essas coisas. Se o título é fajuto,  não interessa ao pessoal de lá. Gastam. Vivem no luxo. O resto que se dane. E o resto somos todos nós!

                - Você é um intelectual, Zeromeia! – disse, rindo Zerossix. – Já entendi essa sua história dos memorando para os patrocinadores. Quer ver se alguém acha você inteligente o bastante para aparecer na tevê.

                - Quem sabe? – sorriu, satisfeito, Zeromeia.

                - Legal! Deputado Zeromeia! Senador Zeromeia! Prefeito Zeromeia!... Opa! Acabou o programa político. Vão começar os desenhos animados... Quer... assistir comigo?

                Zeromeia levou sua cadeira para diante do pequeno aparelho. A imagem em preto e branco sumiu por instantes, para reaparecer depois, bastante chuviscada.

                - Eram coloridos, antes, os desenhos... não eram? – indagou, lamentando, Zeromeia.

                - Antes, eram – disse Zerossix, com um suspiro.

                E depois se calaram. Logo, estavam se contorcendo de rir das trapalhas do Coelho Patacomprida e do Pato Descarado... E riam tanto que começaram a tossir, os pulmões ardendo, o ar descendo áspero pela traqueia... Mas, pelo menos, a discussão entre os dois estava esquecida. Coisa de colegas. Besteiras. Ninguém iria estourar os miolos de ninguém por causa disso. Ainda mais sob o risco da sua pistola negar fogo e a do outro, por sorte, funcionar, e dele acertá-lo bem no meio da testa. 

               

(fim do Episódio 02... 
                                                                                                                                                       Episódio 03...  dia 21/12)
Episódio 03

               
                Náique farejava o ar pestilento do interior do velho cinema, como se pudesse distinguir o cheiro de Úgui.
                E talvez pudesse. Era um excelente caçador. Os garotos o admiravam muito por isso.
                O grupo era o mesmo que havia emboscado o chefe deposto. Náique e mais quatro. Eram os únicos que tiveram coragem de entrar nas ruínas do que fora o cinema Roxy. O resto do bando, amedrontado com a história do vampiro, esperava lá fora, fazendo o cerco.
                Úgui movia-se silenciosamente, ao longo da murada do balcão superior. Acompanhava as chamas das tochas que circulavam entre as fileiras de poltronas destroçadas da plateia. Náique estava exatamente embaixo dele.
                “Um salto bem dado e quebro o pescoço do traidorzinho. Daí,  ele  não vai ter o gosto de ficar de chefe no meu lugar!”
                Mas... e se apenas machucasse Náique levemente? E se levasse a pior na queda? E o que faria, quando os outros garotos viessem para cima dele?
                No entanto, sabia que terminaria mesmo por arriscar alguma coisa desesperada. Náique tinha instintos. Adivinhava o que sua caça pretendia fazer.  
                Logo, pressentiu que Náique comandava os garotos para o balcão do segundo andar:
                “O pivete desgraçado aprendeu tudo comigo!”, rugiu Úgui por dentro, lembrando-se...
                - Pra onde a gente vai quando os bichos-blindados pegam a gente?
                Era Náique, ainda pequeno. Os olhos cheios de lágrimas, depois de ter assistido a uma cena cruel. Úgui sentira enorme embaraço, sem conseguir responder. De repente, teve uma ideia:
                - Você lembra – disse, abraçando o menino ... – que eu contei que o pessoal de antigamente achava que a gente era levado para o céu...?
                - Quando morre...? – murmurou Náique.
                - É... – disse, hesitando, Úgui. – Daí, a gente vai ficar bem. Lá no céu! Diferente daqui!
                - Mas, não podiam levar a gente... de um jeito bom?...
               
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(03 ... continuação)
- Vai ver... não é tão ruim assim. Náique, não se preocupe. Os bichos-blindados só pegam os garotos mais velhos. Você é pequeno ainda.  
                - Mas, e quando eu crescer?
                - Daí, você vai ter aprendido a escapar dos bichos-blindados. Como eu.
                Naique não pareceu satisfeito. Logo, disse, magoado:
                - Você mentiu, não foi?
                - Menti, o quê?
                - Você tinha dito que quem levava a gente para o céu era anjo. Mas,  o bicho-blindado jogou uma rede e pegou a Iéssi. A rede ficou presa, daí eu vi. Saindo do blindado.  Os tiras. Arrastaram a rede para dentro dele, com a Iéssi. Tiras! Nada de anjos!  Nem se importaram com os berros dela. E ela estava apavorada, chorando. Se debatendo. Implorando que soltassem ela. Machucaram ela.  Bateram. Muito. Não eram anjos. Anjos não iam fazer assim. Para onde foi minha Iéssi?
                Era Iéssi quem cuidava de Náique no bando. E, quando ela foi capturada, Úgui ficou com o menino. Sempre soube que tinha desapontado Náique, com aquela história sobre anjos. Só que nem que quisesse poderia ter sido mais convincente.
                “Ele vai aprender isso. É o chefe do bando, agora!”... pensou Úgui, se esgueirando. Sabia que Naíque sabia que ele estava ali. Logo seu esconderijo se tornaria uma arapuca, e ele precisava escapar. No entanto,  se naquela noite, anos atrás, tivesse arranjado respostas melhores, Náique talvez não o tivesse deposto, nem estaria lá embaixo, agora, atiçando os garotos para encontrá-lo.
                E já haviam terminado a revista do andar debaixo.
                Fora o mesmo Náique, já maior, quem acusara Úgui. Na frente de todos, de abandonar o bando. Úgui se ausentava por vários dias sem dizer a ninguém aonde ia. Aquilo vinha se repetindo.  O bando se ressentia da sua falta. Principalmente, os garotos menores, que ficavam sem respostas para suas perguntas.
                Úgui não se perdoava por ter deixado de perceber que, aos poucos, Náique fora tomando seu lugar no coração do bando. Ou então, percebera, mas estava sendo tão importante se afastar, ficar a sós com suas próprias perguntas...
                Se bem que, essas,  não havia ninguém para responder.
                Úgui treinara Náique. E Náique se tornara o melhor guia que Úgui já vira. Quando algum membro do bando era capturado – e havia o risco do esconderijo ser delatado -, precisavam mudar-se rapidamente. Sempre havia um outro lugar, já escolhido, de reserva. Mas era uma escolha do chefe e somente o chefe sabia onde ficava.
                Nem sempre estavam todos reunidos. Muitos estavam explorando. Caçando. Atravessando a noite, nas ruas. Os guias, como Náique, iam atrás dos grupos dispersos e os conduziam ao novo esconderijo. Náique raramente deixava de encontra-los. Também era ótimo para encontrar as crianças menores, que viviam se perdendo. E ninguém era valente como ele, nas brigas com os outros bandos. Fabricava estiletes – os furadores  -, socadeiras, porretes e armadilhas como ninguém.
                “Ficou melhor do que eu em tudo...”, disse a si mesmo Úgui. E agora, era Náique que o estava caçando. Que iria mata-lo, se o agarrasse. Escutou os garotos lá embaixo conversando entre si. Era mau sinal, que não se preocupassem em abafar a voz. Que não se importassem que Úgui os ouvisse...
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(03... continuação)
                - Acha mesmo que ele está aqui dentro, Náique?
                - O sangue no lixo lá fora. Tem um rastro até aqui. Ele perdeu os tênis, não foi?
                Úgui quase foi à loucura, lembrando as muitas e muitas noites que saíra com Náique, somente os dois, para ensinar seu aprendiz a enxergar rastros nos monturos de lixo.
                Agora, sem sentir, havia rastejado para junto do cartaz do vampiro, Os olhos do monstro tentavam atraí-lo de novo! Entretanto, Úgui tinha mais com que se preocupar. Não tinha tempo para ficar com medo. Mandou, em pensamento, o vampiro, então, fosse o que ele fosse, para algum lugar bem sujo e indecente.
                Conseguira encontrar um cano de ferro. Era sua única arma. Contava ainda que teria algum tempo, devido à dificuldade dos garotos de escalar os destroços até o segundo andar. Sabia que Náique viria na frente. Daí, quando pulasse para o balcão, Úgui saltaria da escuridão e esmigalharia seus miolos. Era esse seu plano.
                “Então, jogo destroços nos outros. Vão estar no meio da subida. Se eu acertar, eles despencam! É minha vez de emboscar vocês, otários!”
                No entanto, Náique permanecia imóvel, examinando a subida até o segundo andar.
                “Sobe logo, cretino! Vem me pegar”, torcia mudamente Úgui,  com raiva, desespero, trêmulo. Mas, Náique não se movia.
                Quando um dos garotos fez menção de enfiar o pé num dos buracos da parede e começar a subir, Náique o puxou para trás.
                - Não!... – disse o novo chefe.
                - Mas...
                - Ele está esperando a gente!
                Então, segredou algo no ouvido do garoto, que puxou os demais e retornou à plateia principal. Náique ficou de vigia, no pé do monturo de escombros, seus olhos varrendo a escuridão do andar superior.
                Do seu esconderijo, Úgui percebeu o clarão. Escutou a algazarra dos garotos, os gritos para todos saírem do cinema. Não teve a menor dúvida do que ia acontecer. Se fosse ele o chefe, usaria  uma tática parecida. Nunca iria seguir pelo caminho previsto. Nunca entraria obedientemente numa armadilha. Tinha ensinado isso a Náique. E só não entendia como ele próprio não soubera se defender, quando Náique e os outros montaram a cilada contra ele.  Talvez, estivesse cansado. De tudo.
                O estofamento das poltronas queimava depressa. Todo o cinema logo se encheu de fumaça. O calor transformou o interior do prédio num forno. Úgui sabia que dispunha de pouquíssimo tempo. Mas, também ele  não se renderia ao lance forçado. Não faria o que esperavam que fizesse.
                Com retalhos do plástico que forrava as poltronas, às pressas, fabricou proteções para os pés. Daí,  um naco de cimento numa mão, o cano na outra, passou correndo pelo retrato do vampiro. O reflexo do fogo, naqueles olhos já vermelhos, parecia fazer todo o rosto do monstro sorrir. Até então, Úgui não sabia que a maldade era capaz de sorrir. De assistir a cena, vê-lo, ali, morrer queimado... e sorrir. Ser cruel e feliz ao mesmo tempo.
                - Você vai queimar, maldito! Ouviu, vampiro canalha? É o seu fim!
                Na plateia, os garotos seguiram Náique, abandonando rapidamente o cinema. As chamas iluminavam o salão, agora, que , desse modo, pareceu crescer. E com o crepitar do fogo, era possível imaginar como seriam aquelas poltronas ocupadas por uma garotada alegre, barulhenta, rindo, fazendo bagunça, gritando de ansiedade pelo filme que já iria começar.
                As paredes começaram a rachar. Poeira e fumaça negra, espessa preencheram tudo. Mal enxergando em volta, Úgui lançou-se pelo monturo abaixo, pronto para enfrentar seus perseguidores. Mas, não havia mais nem sinal de Náique e dos outros garotos. Já previra isso. Só que não tinha alternativa. Precisaria sair do prédio. Mesmo sabendo que Naique e todo o bando estavam aguardando, do lado de fora,  para cair sobre ele e espancá-lo até a morte.


(uma provinha do ...EPISÓDIO 04)

                A marquise do velho cinema ruiu com enorme estrondo e muita poeira, sobre as colunas que a sustentavam e que foram pintadas de vermelho, um dia. Enormes pedaços da fachada se desprendiam, enquanto o prédio de cerca de quinze andares vinha abaixo em meio a uma inacreditável nuvem de destroços. Tudo desabou de repente, cedendo de podre, depois de anos e anos de deterioração. O incêndio só fizera enfraquecer de vez as estruturas. Bolas de fogo foram projetadas à distância. A destruição era tanta que foi como se  um míssil tivesse acabado de ser lançado sobre quarteirão.


(Episódio 04 continua... dia 28 de dezembro) ...
EPISÓDIO 04

(No final do Episódio Anterior... )

As paredes começaram a rachar. Poeira e fumaça negra, espessa preencheram tudo. Mal enxergando em volta, Úgui lançou-se pelo monturo abaixo, pronto para enfrentar seus perseguidores. Mas, não havia mais nem sinal de Náique e dos outros garotos. Já previra isso. Só que não tinha alternativa. Precisaria sair do prédio. Mesmo sabendo que Naique e todo o bando estavam aguardando, do lado de fora,  para cair sobre ele e espancá-lo até a morte.



EPISÓDIO 04



                A marquise do velho cinema ruiu com enorme estrondo e muita poeira, sobre as colunas que a sustentavam e que foram pintadas de vermelho, um dia. Enormes pedaços da fachada se desprendiam, enquanto o prédio de cerca de quinze andares vinha abaixo em meio a uma inacreditável nuvem de destroços. Tudo desabou de repente, cedendo de podre, depois de anos e anos de deterioração. O incêndio só fizera enfraquecer de vez as estruturas. Bolas de fogo foram projetadas à distância. A destruição era tanta que foi como se  um míssil tivesse acabado de ser lançado sobre quarteirão.
                Atentos, os garotos do bando abriram bem o cerco para evitar os destroços chamejantes, mas sem permitir que Úgui escapasse. Uma espantosa multidão de ratos de todos os tamanhos emergiu em pânico e dispersou-se rapidamente, encontrando novos abrigos por entre as valas fedorentas e as fossas de lixo azedo acumulado nas crateras no calçamento, que indicavam as inúmeras explosões nos encanamentos de gás e tubos de fiação elétrica que antes existiam nos túneis do subsolo.
Crateras e monturos eram o que predominava no que havia sido, duas décadas antes, uma movimentada avenida.  Nada, agora, poderia dar aos garotos a ideia do que fora a organização espacial do que se costumava chamar de cidade. Os esgotos haviam sido expostos, como artérias rasgadas sob o calçamento. O ar era doentio.
                Uma ferocidade febril tomou conta dos garotos. Tanto barulho, explosões, movimento, nada disso era comum. Náique não previra que o fogo que haviam ateado nas poltronas da plateia causasse tanta destruição. Teve certeza de  que atrairia os bichos-blindados, e agora tentava calculava quanto tempo ainda tinha, antes de ordenar a debandada. E talvez Úgui tivesse sido morto, soterrado, dentro do prédio. Se não, por que ainda não saíra?
               
<<<>>> 

(04... continuação)

Os bandos somente circulavam à noite. Faziam de tudo para evitar chamar atenção.  Nas escavações  para tentar penetrar nos edifícios  – quando conseguiam identificar o que fora um prédio nas ruínas desabadas - , esbarravam, na maioria das vezes,  em paredes instransponíveis, ou em massas de destroços que não conseguiriam ultrapassar. Era uma festa quando encontravam uma passagem para o interior de um prédio. Isso significava roupas, calçados, ferramentas, armas, comida enlatada – com a validade já vencida havia anos, mas eles não sabiam o que era “validade”. Além disso, sempre se poderia achar algum lugar que servisse de esconderijo contra a polícia e os demais bandos.
Náique ainda não havia nascido quando o bando, certa vez, atingiu  um túnel de metrô. Ainda eram comandados pelo chefe anterior a Úgui. Fora ele que explicara o que era aquilo. Pretendia avançar pelo túnel e procurar a “estação”. E, na estação, talvez houvesse comida, coisas úteis... Chegaram a encontrá-la, sim, mas, logo a seguir,  ocorreu um desabamento e tiveram de escapar às presas. Muitos garotos haviam morrido, naquela noite.
Procediam com um sentido instintivo de organização para as explorações e fugas. A qualquer sinal de perigo, espalhavam-se em pequenos grupos, cada qual com seu guia. Enfiavam-se então em algum buraco e esperavam.
A polícia circulava menos à noite. Os mendigos, com seu olhar alucinado, seus uivos e suas infecções, já estavam amontoados,  à beira do mar, gemendo, ressonando, embriagados – sem que ninguém desvendasse como ainda conseguiam encontrar bebida. O lixo já não lhes fornecia nada que prestasse havia anos. E não tinham braços nem pernas para escavações. Mal comiam. A não ser que  se alimentassem de churrasco de roedores. Mas, bebida, sempre tinham.
Um bando só penetrava no território de outro bando quando estava passando fome. Evitavam isso ao máximo. Uma guerra de bandos começava por qualquer coisa, e podia terminar com muitos mortos, e os demais arrastados pelas redes dos bichos-blindados.
Assim, quando não havia alimentos, preferiam mandar um grupo aos morros caçar pequenos animais. Dos apinhados de barracos abandonados – os que já não haviam sido carregados pelas enxurradas de lama, morro abaixo - , traziam pombos e bichos cujos ancestrais haviam sido parte de  criações domésticas. Claro que, por lá, havia sempre o risco de serem atacados por matilhas de cães selvagens. Os morros eram uma selva.
Os garotos tinham sonhos bons e pesadelos.
Pesadelos com as histórias que os mais velhos contavam. Histórias que haviam aprendido com os que haviam sido mais velhos nos bandos, antes deles. De como a cidade fora se tornando escura e assustadora. Com multidões que vagavam sem ver para onde iam. Ou de pessoas que simplesmente ficavam paradas, tapando o rosto com as mãos. Inertes. Cada vez mais gente assim. Até que um dia a cidade enlouqueceu de vez.
A guerra nas ruas: tiros, explosões, gritos, muito, muito sangue. Cadáveres amontoados. Teve gente que conseguiu escapar, e abandonou as cidades. Não havia mais nada ali, para quem quisesse continuar existindo minimamente em paz. Mas, ao mesmo tempo, ninguém sabia se o que havia fora das cidades não se tornara um terror ainda maior. Ainda mais voraz.  Como os pesadelos.
Mas,  os garotos dos bandos também tinham sonhos bons. Com aquelas ruas retornando a uma vida que eles não haviam conhecido. Como se, de um instante para o outro, pudessem ganhar de volta o mundo, as delícias das lojas, e adultos voltassem a protegê-los. E pudessem passear nas ruas. À luz do dia. Ver gente entrando e saindo dos prédios. Circulando. Rindo. Gente ocupada. Gente trabalhando. Encontrando amigos. Comprando coisas.
Agora, o que restava dos prédios era o silêncio. Como tumbas e lápides. Criptas. Cemitérios. Fedor de decomposição.  E mijo azedo. Ressecadoi, velho. Com suas lembranças em estado terminal. Janelas sem vidraças, despencadas, e olhos lá dentro, de quem somente sobrevivia ocultando-se na escuridão. Os garotos evitavam entrar nos prédios residenciais – ossadas demais, de quem se deitou na cama para esperar a morte. Fantasmas. 
Enfim, entre sonhos e pesadelos, os garotos dormiam durante o dia, com vigias de guarda, no perímetro do esconderijo. E saíam à noite. A noite os acobertava.  Era quando se esgueiravam pelos monturos. À noite era quando os bandos dominavam a cidade. Era a hora deles.
A hora das sombras.

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(04... continuação)

- Ou ele sai, agora, ou  morre torrado! – anunciou Náique para os garotos que o cercavam, os mais próximos. O resto do bando varria a destruição e a fumaça, correndo de um lado para o outro, numa brincadeira frenética. As labaredas os fascinavam. Era como se assistissem aos fantasmas sendo queimados.
- A gente devia ir embora daqui... – murmurou um dos garotos.
E Náique sabia que ele tinha razão. Já passara do momento de dar a ordem de retirada. Mesmo assim, disse:
- Ele já vai aparecer! Atenção!
- Pode ter morrido...
- Não morreu! – retrucou Náique.
Lá dentro, Úgui estava quase sufocado. Milhares de ratos continuavam passando sobre ele, escorrendo suas caudas úmidas e pegajosas por sobre seu corpo. O garoto odiava ratos. Mas, precisava suportá-los. Encolhido na boca da fenda que dava para fora,  observava o movimento do bando. A fumaça o protegia. Ao mesmo tempo, sabia que Náique não se deixaria enganar. Era um jogo. O que aconteceria antes? Náique ordenaria a retirada do bando, temendo a chegada dos bichos-blindados, ou as paredes já ruindo assariam as  carnes de Úgui? O sangue frio de um ou a tolerância à dor do outro?
Finalmente, Úgui arrastou-se para fora. Sabia que estava somente escolhendo a morte menos assustadora.
Era a lei do bando! Um chefe conhecia os locais onde a comida de reserva ficava escondida. Sabia onde o bando  conseguia água potável. Conhecia os esconderijos de cada guia, usados nas emergências. E, principalmente, melhor do que ninguém, conhecia a rotina do bando. Fora quem criara essa rotina, suas trilhas, as armas que possuíam, a maneira como distribuíam os vigias, os alarmes de perigo.
Se as informações fossem arrancadas, ou pelos policiais, ou por bandos rivais, era o fim. Ou se o líder deposto virasse um traidor, para se vingar de quem o tinha derrubado.
Quando Úgui emergiu dos destroços em chamas, todo o bando vibrou, numa algazarra raivosa. Em resposta, ele se deteve, desafiador, esticando sua altura o quanto pôde, e brandiu o cano. Por um rápido instante, cruzou os olhos com Náique, que, no que o viu, soltou um berro:
- Agora! Acabem com ele!
Então, antes mesmo que o bando reagisse, um dos vigias gritou, a alguma distância. Os bichos-blindados se aproximavam, e logo cairiam sobre eles. Naique hesitou.
- Se perder tempo para me matar – berrou Úgui, debochado –, vai pôr em risco o bando inteiro! Não foi isso que ensinei a você!  
Já era possível enxergar, vazando por cima  dos enormes monturos de lixo, o clarão dos holofotes dos bichos-blindados. Os vigias chegaram em disparada, trêmulos de medo.
Náique socou o ar. Sua ordem de debandada foi um rugido de frustração. Imediatamente, o bando se dispersou em pequenos grupos. Mas, nem todos se salvaram. Atraídos pelo incêndio e pelo desabamento, os blindados vieram de todos os  lados. Já desceram as montanhas de destroços ejetando suas redes, com as sirenes abertas num volume altíssimo, alucinado.
Ninguém conseguia evitar o pânico, quando os blindados davam o bote. Era comum alguns garotos ficarem tão apavorados que não conseguiam nem sequer se mexer.
Muitos seriam aprisionados, naquela noite. Não estariam ao redor da fogueira, mais tarde, pedindo explicações sobre o que haviam encontrado pela cidade. A caçada seria boa para os tiras.
Úgui mergulhou nos escombros e arrastou-se, ofegante, a testa latejando, o peito quase para estourar. Foi seguido de perto pelo concerto de gritos de choro, de raiva, tiros, rangidos de esteiras dos blindados e mais uma confusão aterradora de barulhos estridentes, como se fossem garras de metal trinchando ossos e carne feitos de lata.
A metralha comeu o lixo junto dele. Estavam atirando às cegas, agora. Um garoto e uma garota passaram por ele, arrastados pela rede,  se debatendo e berrando, até que o blindado os tragou. Úgui os conhecia bem...
Tantas madrugadas passara em claro, repetindo para si mesmo o nome dos garotos capturados.  Pensando o que deveria ter feito para salvá-los. Para conseguir arrancá-los dos bichos-blindados.
 A metralhadora ainda não tinha matado a fome. Continuava a disparar. Estavam vendo se desentocavam mais alguém. Úgui mordeu a mão até sangrar para espantar a paralisia. Não podia perder o controle. Não podia sair correndo. Não podia.
Sentiu-se pequeno. Um menino. Como a lembrança que tivera de Náique: “Para onde a gente vai quando o bicho-blindado pega a gente?”...
Dessa vez, não havia ninguém de olhos postos nele, obrigando-o a fingir que sabia a resposta. Lembrou então do seu antigo chefe, cuidando dele, explicando... Depois, Úgui foi escolhido chefe. E sempre desejara tanto não ser o único que tinha de saber as respostas. Nunca conseguiu salvar ninguém capturado pelo bicho-blindado. E, nessa noite, mesmo que ainda fosse chefe,  também não teria conseguido.
Úgui se arrastou para longe dos holofotes e da metralha, que não se cansava de morder a noite. Seu chefe bem que lhe dissera que um dia ia precisar de um lugar só seu. “Pra ver como é sem o bando, entendeu?”. Não, não entendera. Nascera e vivera sempre no bando. Na época, não conseguia imaginar sendo qualquer coisa sem o bando. Agora, ia ter de aprender.
“ E se... meu chefe não sabia todas as respostas? Eu tive de fingir que sabia. Vai ver, ele fingiu também... ”



(Uma provinha do Próximo  Episódio)

                Frequentemente, os demais tiras da Delegacia 12 pediam a Bazu para controlar seu parceiro. Mas, o veterano se limitava a dar gargalhadas. Não via nada de errado com Zuca. Se ele dava calafrios em seus colegas, “era porque aqueles moleirões não estavam nas ruas nos velhos tempos,  quando a coisa pegou pra valer!”.
                 E exigia:
                 - Deixem o garoto em paz! E daí se ele cantarola, quando está disparando sua metralhadora. É um cara feliz! Que tem de mal nisso?


(Episódio 05 no ar dia 04/01/2016)
EPISÓDIO 05 

(No Final do Episódio Anterior...)


Úgui se arrastou para longe dos holofotes e da metralha, que não se cansava de morder a noite. Seu chefe bem que lhe dissera que um dia ia precisar de um lugar só seu. “Pra ver como é sem o bando, entendeu?”. Não, não entendera. Nascera e vivera sempre no bando. Na época, não conseguia imaginar sendo qualquer coisa sem o bando. Agora, ia ter de aprender.
“ E se... meu chefe não sabia todas as respostas? Eu tive de fingir que sabia. Vai ver, ele fingiu também... ”




A HORA DAS SOMBRAS 

               
                O pessoal da Delegacia  Setor 12 costumava chamá-los de “Os Malucões”.  Já eles se chamavam de “A Grande Dupla”.
                Eram quase sempre os primeiros a chegar aos locais de conflito. E sempre ultrapassavam os turnos obrigatórios de serviço. Esticavam suas patrulhas. E isso porque adoravam percorrer a sua “zona de caça”, como a chamavam, em seu blindado. E, mais ainda, Zuca e Bazu gostavam da companhia um do outro. 
                Zuca era mais jovem. Seu posto era na torre, operando o holofote, o canhão da rede e a metralhadora. Tinha uma pontaria nervosa, dispersa. Mas, gostava de apertar os disparadores. Além da arma na torre, tinha a sua metralhadora portátil, para quando saía do blindado, em ocasiões especiais.
                Bazu era o veterano da Delegacia.  Cuidava das comunicações e pilotava o blindado. Era famosa a facilidade com que guiava por entre os monturos mais altos e íngremes, pressentindo as fossas movediças, e atravessando em velocidade as crateras.
                - É o único jeito de pegar os pivetes! – dizia. – Depois que enxergam nossas luzes, enfiam-se em suas tocas. Somem! Precisamos ser rápidos.
                As demais equipes reclamavam que um ataque deveria ser uma operação de equipe. Que, se os veículos dessem o bote juntos, cercariam as presas e haveria capturas para todo mundo. Do jeito como Zuca e Bazu se lançavam à frente, afugentavam os bandos, que conseguiam se dispersar. Além disso, queixavam-se dos dedos soltos de Zuca, na metralhadora da torre.
                - Não estamos na rua por diversão! – argumentavam. – Ninguém compra pivetes mortos!
                No entanto, jamais abriam a boca para criticá-lo cara a cara. Ou para falar mal de um na frente do outro.
                Zuca era um jovem corpulento, talvez exageradamente grande para caber na apertada cabine da torre. Piscava os olhos sem parar, ria meio descontrolado, e quando fazia isso esfregava compulsivamente  sua metralhadora portátil, pressionando-a contra o baixo ventre. Muitos colegas da delegacia teriam se recusado a tê-lo com o parceiro.
Ainda mais confinados dentro de um blindado, sob calor infame, submetidos ao abafamento do ar e ao fedor das ruas, à névoa que fazia os olhos, narinas, garganta e pulmões arderem.
                Frequentemente, os demais tiras da Delegacia 12 pediam a Bazu para controlar seu parceiro. Mas, o veterano se limitava a dar gargalhadas. Não via nada de errado com Zuca. Se ele dava calafrios em seus colegas, “era porque aqueles moleirões não estavam nas ruas nos velhos tempos,  quando a coisa pegou pra valer!”.
                 E exigia:
                 - Deixem o garoto em paz! E daí se ele cantarola, quando está disparando sua metralhadora? É um cara feliz! Que tem de mal nisso?
<<<>>> 

(05 ... continuação)

                Naquela noite, Bazu estava mais feliz ainda com seu parceiro. Afinal, ele havia lançado a rede com precisão. Uma garota e um garoto.  Os dois estavam de olhos arregalados, apavorados, abraçados, chorando baixinho. O garoto protegia a cabeça da garota no peito, evitando olhar para seus captores.
                - E aí? – indagou Zuca.
                - Ninguém vai poder reclamar desta vez – disse Bazu, satisfeito. – Estão vivos. Debaixo da sujeira, são bonitinhos. Sem cicatrizes no rosto, Nenhum olho furado. Só estão muito magros.
                - Hum... – grunhiu Zuca.
                - Duas semanas de engorda na delegacia, antes de passar ao comprador do Condomínio. Daí, a grana melhora.
                - Hum... – grunhiu de novo Zuca.
                - O que foi? Não gosta mais de dinheiro?
                - Hum... – fez o operador da torre mais uma vez. – Estavam correndo de mãos dadas.
                -   Ah, é? – exclamou Bazu, contrariado. Então, agachou-se junto à garota e apalpou seu ventre. – Não, sem barriga. Mas, podemos fazer um teste na delegacia. Se estiver grávida, ainda vai estar no início. Daí, damos um jeito. – A seguir sorriu de novo e disse, tentando animar o parceiro: - Foi um belo arremesso de rede, garoto!
                Zuca sorriu, enfim. Adorava, quando Bazu elogiava sua habilidade com o equipamento. O casal adolescente continuava choramingando, ambos tremendo, abraçados.
                - A gente podia tentar arrancar deles mais alguma coisa. O esconderijo do bando deve ser aqui por perto.
                  - É a tal história, Zuca... Até a gente conseguir entender esse dialeto cretino que eles falam, vão ter evacuado o lugar. Eles se mudam depressa. Já nasceram nessas ruas, os desgraçados. Conseguem se esconder como baratas!
                - Não acertei nenhum hoje... – lamentou Zuca.
                - Mas, capturamos  esses dois – replicou Bazu, algemando o garoto e a garota a uma trave metálica.
                - Hum! ...
                - Olha você de novo, Zuca!
                - É que eu queria tanto... ter estado lá! – disse Zuca, piscando depressa.
                - Ah,  que cisma! Você era criança, quando a coisa aconteceu!
                - Conta...
                - Bem, a cidade enlouqueceu! Sabe, como é...
                - Não sei... – disse Zuca, olhando para baixo, com a voz embargada. – Mas, deve ter sido demais! Você teve... alguma ocorrência aqui?
                - Aqui, na orla marítima? Mas, claro. Ainda havia montes de gente nas ruas. Por toda a parte, havia... muita gente. Todos loucos! Quebrando tudo. Saqueando as lojas. Gente que era normal, pai, mãe, madrinha, filho de alguém... Pegando o que podiam. Água, roupas, comida. Nem viam o que pegavam. Precisavam ser contidos. Eram nossas ordens! De qualquer jeito, a gente precisava acabar com aquilo!

<<<>>> 



               
(05... continuação)

O rádio do veículo os interrompeu. Outros blindados vinham chegando. Até mesmo de uma delegacia vizinha.
                - Esses espertalhões! – reclamou Zuca. – Querendo faturar no nosso território!
                Houve uma breve discussão sobre jurisdição. Outros reclamavam do açodamento da Grande Dupla. Zuca não prestava atenção na transmissão. Já esfregava sua metralhadora na virilha. Olhos piscando rápido, febril, imaginava as cenas que seu parceiro mencionara.
                - A choradeira de sempre! – disse Bazu, desligando o rádio. Se quisessem continuar a reclamar, agora, ninguém os escutaria. Não naquele blindado. Deu partida no veículo, enquanto Zuca punha os olhos, suplicantes, sobre ele.
                - Conta mais! -  disse Zuca.
                - Olha, bem aqui... – disse Bazu, apontando um ponto no mapa cortado por coordenadas, na sua tela. Ficava a dois quarteirões dali, descendo o que fora aquela avenida.  – Havia uma loja de guarda-chuvas nessa esquina. Já imaginou, no meio daquela zorra e gente quebrando uma vitrina para roubar guarda-chuvas? Mas, aconteceu. Eles invadiam tudo. Ficaram doidos. Eu me lembro bem... Botei abaixo a fachada da loja, com os vagabundos lá dentro. Naquele tempo, eu operava a bazuca. Na torre. Como você, hoje em dia, garoto! Eu era muito bom. Como você!
                - E tinha.,.. muita gente dentro da loja? – perguntou Zuca, ofegante.
                - Tinha. Muita gente, sim. Tinha. E gente em volta do blindado, também. Meu parceiro é que era o piloto. Teve de sair pela comporta e ficou em cima do veículo, disparando o lança-chamas.
                - Lança-Chamas...? – quis confirmar Zuca.
                - É... Pra acabar com a bagunça, não fizeram economia. Davam lança-chamas pra gente, na época.
                - Lança-chamas... – repetiu Zuca.
                - Tivemos de abrir caminho, na multidão. Estavam furiosos com a gente.
                - Queria.. .ter estado lá.
                Zuca deixou os ombros caírem, deprimido. Depois, içou-se até a torre, debruçou sobre a metralhadora e começou a chorar e a soluçar. Embaixo, Bazu tentava consolá-lo:
                - Mas, garoto! Como você podia ter estado lá? Escute... tive uma ideia... Já ganhamos o nosso por hoje, não é? E se a gente desse uma rodada pela beira da praia.
                Zuca riu nervosamente, em resposta, e recompôs-se. Pouco depois, o veículo descia para a areia da praia, rolando lentamente em suas esteiras,e com faróis  apagados.  Foi Zuca quem avistou o clarão a alguma distância e deu o aviso:
                - Ali! Tem um acampamento.
                Zuca acendeu os holofotes.  Bazu acelerou o veículo ao máximo, arremessando-o num solavanco à frente. Logo vencia a duna que os separava do alvo. Os mendigos já estavam desfalecidos, bêbados, esparramados, ao redor da fogueira. Uma tribo das grandes. A metralhadora começou a fazer a areia crepitar. Eram uivos, gemidos. Muitos tentaram se erguer. E  a maioria foi atingida pelos disparos sem sequer se dar conta do que estava acontecendo.
                - A granada, Zuca! Joga a granada!
                Haviam comprado a peça no mercado negro da polícia e a estavam guardando para uma situação especial. Zuca abriu a comporta da torre e arremessou a granada, mergulhando a seguir de volta no interior do blindado, para escapar dos estilhaços. Um clarão alaranjado e a expansão súbita, fervente, do ar, envolveu o veículo. 
                - Dizem que dá azar matar esses dementes, Bazu! – disse o operador da torre, ao cair junto do colega, que o recebeu num abraço, sorridente:
                - O pessoal naqueles dias também estava louco, Zuca!  Matei dezenas! Centenas!  Vão dizer que tive azar por isso? Como, se   agora ganhei o parceiro perfeito?
                De tão contente, lágrimas vieram aos olhos de Zuca. Mas, seu parceiro mais velho já não se continha. Agarrou a metralhadora portátil e saiu pela escotilha para apreciar a cena, os cadáveres, os feridos se arrastando pela areia ... Espremidos um contra o outro, no interior do veículo, o casal de prisioneiros chorava, apavorado. Lá fora, o matraquear da metralhadora, dissparada por Bazu, era alto, mas não o bastante para abafar a poderosa voz dos policiais entoando sua versão particular do Hino da Força Policial:
                - Somos mais que piratas! Muito mais que caubóis! Somos a Grande Dupla!
               
(Episódio 06 ... no ar em 11/01)


(Aperitivo do Próximo Episódio)

               
                O pai de Liana era encadernador de livros e restaurador de volumes antigos. A oficina, com cheiro de gesso e cola, e o quartinho atrás, com a cama e o pequeno fogareiro, eram o mundo que ele permitira a Liana conhecer.
                A oficina não tinha janelas para a rua. Ficava nos fundos de um sobrado, que já era antigo na época em que a cidade ainda tinha vida. A fachada estava desabada, mas, a parte  oculta das ruas era habitável.
                Por vezes, o pai levava Liana por uma passagem lateral estreita e, indicando uma escada de degraus de cimento, que descia até um portão de ferro, sempre fechado, dizia, com lágrimas nos olhos:

                - Foi por ali que sua mãe saiu, naquele dia. Ela nunca mais voltou. Nós três poderíamos ter vivido aqui para sempre, escondidos. Mas, ela não aguentou. Saiu por aquela porta. Nunca atravesse aquela porta, minha filha!