quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Piratas…

Long John Silver  &  Jack Sparrow
vs.
Virginia Woolf

Ou… Clássicos & Pops x Modernistas…
Quebra-pau na Literatura


BULA de Leitura:
Indicado somente Para  Leitores Cascudos
E... para quem tem aquela vontade secreta e inconfessável de
começar a gostar de ler... (tentação à la Jekyll & Hyde)...
Contém estraga-prazeres (spoilers)





Meu livro  Cérbero, 
uma tremenda aventura pirata 
que partiu de uma extensa pesquisa histórica sobre pirataria 
e outros costumes da época...

       

         O pirata Long John Silver é o astro inconteste de A ilha do tesouro, o romance mais popular do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894).  Não é para qualquer um criar um personagem que produza uma reação tão complexa no leitor (e isso há já mais de 1 século). Não tem quem não se sinta agarrado por sua lábia e seu poder de sedução. E ao mesmo tempo, há (muitos) momentos em que torcemos para que ele termine a história na ponta de uma corda, bem enforcado, como todo pirata deve ser.
                Não existe uma palavra para defini-lo entre Bem e Mal, Vilão e Herói. Ele rouba a cena. E captura nossa atenção por conta de fascinantes detalhes de composição (novamente: vai ser bom escritor assim na Ilha do Tesouro); pela intensidade, quase febril, de sua atuação; pela sua habilidade de dissimulação – que nem sempre nos dá certeza se ele seria ou não capaz de praticar alguma tremenda maldade contra Jim, o adolescente-protagonista da história -; e até pela sua presença física em cena. É como se estivéssemos ao seu lado, a bordo do Hispaniola, ou na Ilha.



Long John Silver em desenho de François Place,
 ed. Melhoramentos/Galimard.


                Não é a única excelente criação de Stevenson e não o único personagem em que ele trabalha essa zona de penumbra, essa ambiguidade (tão assustadoramente humana). O Dr. Jekyll, o médico de O médico e o monstro também tem um íntimo que parece uma caverna repleta de reentrâncias – e isso mesmo antes de beber a célebre fórmula que o transforma no Sr. Hyde. Dá para se perguntar, com uma leitura mais de lupa, se esse medico com tantos segredos, e uma vida oculta, fora das vistas da sociedade vitoriana – a Inglaterra do século XIX, sob a Coroa da Rainha Vitória: uma sociedade moralista, formal, repressora, intolerante – se transforma no monstro justamente porque o monstro, ou o que ele entendia como tal, já habitava seu espírito. Faltava somente a Jekyll coragem para liberá-lo.
                Por essas e outras, Stevenson se tornou tão popular. A ilha do tesouro não lhe rendeu muito dinheiro, mas o tornou famoso, principalmente entre os adolescentes, para quem a história foi escrita. E O médico e o monstro lhe trouxe a admiração de outros escritores, como, na época, Henry James (1843-1916) e, mais recentemente, Vladimir Nabokov (1899-1977) e Jorge Luís Borges (1899-1986).  
A Ilha do Tesouro
em filme da Disney
que assisti quando era garoto...




Costuma-se entender que Stevenson (juntamente com Jane Austen -  1775/1817 -  e Charles Dickens – 1812/1870 ) foi um dos responsáveis por uma virada espetacular na Literatura do Romantismo da Grã-Bretanha. Até então, o gênero predominante era a poesia; mas, depois, com a repercussão alcançada por estes autores, a prosa (romance, novela, conto) tida antes como escrita de pouca importância, conquistou a preferência do público.
                São incontáveis as criações na cultura pop que se inspiram nos personagens e enredos de Stevenson. Para citar um dos mais famosos,  temos o Capitão Jack Sparrow, de Piratas do Caribe, que reza pela mesma cartilha ética e moral de Silver. É um canalha charmoso – o que vai se fazer? Gostamos dele, contanto que desconheça onde guardamos a chave de nossa casa, nem queira namorar ninguém da nossa família. Além disso, Sparrow (o Capitão Sparrow, como insiste em ser chamado) é tão peculiar, tão exótico, tão rico em detalhes...
                Com tamanho legado, no entanto, Stevenson não permaneceu como uma unanimidade na Literatura do século XX.  Alguns escritores e críticos de prestígio, da geração seguinte, os modernos[1], o rejeitaram.  Na Inglaterra, poucos encarnaram esse novo espírito e sua fantástica ousadia e liberdade de criação literária como Virgínia Woolf (1882-1941) e seu Grupo de Bloomsbury (bairro londrino onde costumavam se reunir, na residência de Woolf).
                Os modernos rejeitavam o passado vitoriano, e tudo o que pudesse, no entender deles, evocá-lo. Poderiam escolher qualquer dos autores do século anterior (Oscar Wilde, Charles Dickens, Henry James), mas elegeram Stevenson como seu alvo principal. Os críticos do grupo – com amplo espaço nos jornais da época  - o odiavam. Woolf e seus colegas aproveitavam toda e qualquer oportunidade para desdenhá-lo publicamente.





                Por quê? Bem... Toda sucessão de movimentos literários é conflituosa. O movimento que tenta se firmar geralmente busca formar sua identidade diante do público marcando suas diferenças em relação ao momento anterior, seus autores e suas obras mais representativas. Sábio ou não, é assim que acontece. Não deixa de ser engraçado a  londrina Virgínia Woolf acusar o escocês Stevenson (a Escócia foi dominada pela Inglaterra num processo doloroso, sangrento; e essa submissão nunca deixou de ser contestada – como aliás acontece ainda hoje), conhecido por suas denúncias quanto a mão pesada da Coroa Britânica sobre outros povos, de ser um vitoriano.
                Stevenson era um autor popular, lido amplamente (ao contrário do Grupo de Bloomsbury, que produzia uma Literatura erudita, elitizada, lutando ainda para ganhar seu terreno). Além do mais, Woolf e os modernos praticavam uma prosa-poética, cuja liberdade estava, entre outros aspectos, em ousar enredos e personagens tão pouco densos, tão apenas sugeridos, como se existissem apenas em meio à bruma sobre o Tâmisa, e se desfizessem no ar, no que alguém tentasse se aproximar deles. Como uma Literatura dessas iria conviver pacificamente com os enredos eletrizantes de Stevenson e, principalmente, com um Long John Silver, que desde  que surge em cena, ganha materialidade, para o leitor,  como se pudéssemos escutar sua voz, farejar seu hálito de bebida, quando não sua nhaca de pirata, de poucos banhos por ano e roupas sem troca? Orlando, de Woolf, é um magnífico personagem, mas uma criatura de natureza diferente. Totalmente antagônica. Incompatiblidade de gênios.  



Robert Louis Stevenson

        
     Por conta dessa marcação em cima, Stevenson foi excluído das antologias mais conceituadas, dos estudos, listas dos melhores escritores (que nas universidades e círculos de estudiosos é chamado de “cânone”) e da leitura em escolas e colégios por todo o século XX. Houve escritores e leitores que teimosamente protestavam, tentando resgatar o seu prestígio. No entanto, isso praticamente só foi acontecer no século XXI.
                Menos mal sabermos que, ao longo dessas décadas de exílio, ele teve ao seu lado tantos e tantos e cada vez mais amorosos aficionados. A cultura pop devolveu Robert Louis Stevenson ao seu lugar merecido, na Literatura. É característico do pop: ser popular não é demérito, pelo contrário. Além disso, a Literatura Pop tem muito a ver com os clássicos do século XIX e pouco, com os modernistas. [2]         
                 Na grande ampliação do público leitor, de hoje em dia, principalmente em gêneros como o Terror, o Mistério e a Aventura, devemos estar atentos para os descendentes literários de Robert Louis Stevenson, e para obras que vêm se tornando grandes sucessos ao fazer leitores sonharem acordados – o que acompanha o que o autor de A ilha do tesouro sempre declarou como sendo o seu maior propósito na Literatura.

#paraleitorescascudos     #minhapátriaéaliteratura





[1] A grosso modo, em atuação entre os anos 1920 e 1960-70.
[2]  (ver aqui no Blog , etiqueta/tag “Fora de Ordem”, o Debate: “VIVA A LITERATURA QUE DÁ GOSTO DE LER ou de Clássico e de Pop, toda a (boa) Literatura Atual tem um tanto”.

sábado, 16 de janeiro de 2016

MUITO ALÉM DO KIBE


AS 1001 NOITES
Entre os escritores seduzidos por Sherazade,
estão alguns dos nomes mais importantes da Literatura.
Depois de Ilíada Odisseia, de Homero, é a narrativa
com maior influência em nossa cultura.




Eu em meu modo Djin
desenho de Márcia Széliga






                Voltando inesperadamente de uma caçada, o rei Shariar surpreende a esposa, que amava imensamente, na suíte matrimonial, com um escravo. Enlouquecido, mata a ambos. A partir dessa noite, torna-se uma criatura sombria, amargurada. Como vingança, adota uma prática hedionda, dali para frente. Todos os dias, casa-se com uma moça do seu reino, sempre bastante jovem. Ao alvorecer, ou seja, depois da noite de núpcias, ele a decapita. Cabe aos seus súditos lhe entregarem suas filhas mais amadas, que ele executa, uma após a outra... até que faltam moças no reino, a não ser a filha do vizir, a linda, inteligente e corajosa Sherazade.
O vizir quer que a filha fuja, mas Sherazade, disposta a acabar com o martírio das garotas daquela terra, força o pai a levá-la a Shariar. O vizir está desesperado, já certo de que a filha terá o mesmo destino das demais.
                Na noite de núpcias, Sherazade inicia uma história, que, habilmente, interrompe no seu momento mais instigante, quando amanhece. Oferece, então, o pescoço ao seu marido, que hesita. Se matá-la,  não saberá o final da história.
                 



Em árabe
Alf Layla wa-Layla
1001 Noites ... Noites Sem Fim

                Shariar permite então que Sherazade viva “mais uma noite”. E a moça - que se tornaria assim a maior de todas as contadora de histórias  - aproveita a madrugada para concluir a narrativa e imediatamente emendar outra, que também interrompe, deixando-a em suspense, ao alvorecer.
                Assim, vai enrolando o rei, noite após noites, por 1001 Noites (Alf Layla wa-Layla, em árabe), uma maneira mística de dizer noites sem fim... Ou Noites Árabes, como ficaram conhecidas também no Ocidente. Seja como for, trata-se do conjunto de narrativas que reúne, entre muitas outras, as famosas aventuras de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; Simbad, o Marujo; O pescador e o gênio; Ali Babá e os 40 Ladrões...
                Há no mínimo três características das Noites que ficaram no legado da Literatura do Ocidente. Resumidamente:
ð  As 1001 Noites se desenvolvem em dois planos. Num deles, continua correndo, até o final, a história de Sherazade e Shariar, funcionando como uma linha mestra que liga toda a narrativa; é a purgação da amargura de Shariar, sua cura por meio da contação de histórias, ou o método psicanalítico de Sherazade;[1]
ð  pontilhando a narrativa, Sherazade conta inúmeras histórias, sempre usando o suspense, a interrupção e o gancho; ou seja, para ela, é uma questão de sobrevivência manter o interesse do rei. Assim, nunca termina uma história no alvorecer. O nascer do sol a faz parar a história que estava contando, sempre num  momento de grande expectativa para o que vai acontecer a seguir. No meio da madrugada, mal termina uma história, já emenda outro, anunciando sua excepcionalidade, com palavras como : Mas, essa história que acabou de escutar, meu rei, não é nada tão extraordinário como a história do... E assim, capturando a obsessão do rei, prossegue, noite após noite;
ð  nas 1001 Noites, o fantástico sempre surge do cotidiano. Uma ida ao suk  (mercado) para comprar mantimentos, se torna, em dado momento, num encontro mágico. Um pescador lança sua rede ao mar, como todos os dias, mas... naquele dia...algo fora do comum (totalmente fora do comum) acontece. Ou seja, o cotidiano é encantado pelas histórias e pelas reviravoltas  do enredo...



“Al Fajr, a aurora! Ó minha parceira implacável, co-autora de todas as minhas histórias. Quantas vezes vieste em meu socorro, salvar-me do precipício em branco no qual minhas idéias já iam despencando. E quantas vezes, maldosa, tardavas, sem me dares alívio; ou, ao contrário,  te antecipavas, repentina, acelerada e rubra, transtornando batalhas e momentos amantes, impondo-lhes uma interrupção que, por si, rejeitavam. Fajr... Tu que jamais me deste respostas, não é agora que me dirás o que será de Sherazade. Mas, será que sabes, já agora, se estarei viva ou morta quando vieres afugentar esta noite? Se poderás mais uma vez te refletires nos meus olhos, ou se eles estarão sem ver o mundo? Porque talvez Sherazade, quando chegares, Fajr, não será mais um corpo, mas dois, e ambos sem vida.”


Fala solitária de Sherazade à aurora, em meu livro Alqueluz, no qual uma garotada contemporânea e brasileira se mete numa tremenda aventura nas Noites Árabes...


                As Noites chegaram ao Ocidente junto com o domínio Árabe sobre a  Península Ibérica chamada Andalucia. É impressionante o quanto a cultura árabe – na época muito mais adiantada do que a europeia – influenciou na estética, na filosofia, nos costumes  e na arte ocidentais. A arquitetura mourisca que encontramos por lá testemunha essa época. Há linguistas que defendem que, se não fosse a mestiçagem do árabe com o português, nosso idioma não teria o azeitamento, o arredondamento melódico que tem hoje.



Miguel de Cervantes
        

        Já na Andalusia, deixaram uma herança da qual Miguel de Cervantes (1547-1616),  admirador de As 1001 Noites, se aproveitou bastante para compor a narrativa de D.Quixote. O mais evidente é a estrutura desse que é considerado o primeiro romance moderno  do Ocidente: uma narrativa do começo ao fim, pontilhada de episódios (aventuras).



D. Quixote em luta contra o moinho
Gustave Doré

                Foi o francês, aficionado pela cultura árabe, Antoine Galland (1665-1715), quem primeiro compilou As 1001 noites e as colocou por escrito. Posteriormente, foram encontrados fragmentos manuscritos em árabe, do século XIV e anteriores, mas isso é outra história. As noites são lendas milenares – existiram muito antes do islamismo (fundado no século VII, entre os beduínos.  E eram Noites histórias orais, contadas à noite, em torno das fogueiras,  nos desertos, e por contadores mendicantes, nas ruas e nos suks das grandes cidades do Oriente Médio. Há inclusive quem diga que os beduínos, com seus cultos que, diferente do islamismo,  abarcavam seres mágicos como djins, ou ifrites, ou gênios, contavam essas histórias para aplacar os caprichos desses seres e conseguirem sua benevolência, nos oásis (que pertenciam aos djins).



                                                       Orientalismo na versão de Eugene Delacroix:
                                          “Mulheres de Argel”,  de  1834, em quadro no Louvre, de Paris.


As Noites tiveram assim sua primeira versão por escrito em francês. Muito se comenta que a versão de Galland foi bastante adulterada por ele. Por exemplo, o francês fez sumir cenas de sexo mais picantes e muito do conteúdo político, popular das Noites (que reencontramos na versão do inglês Richard Burton – 1821-1890). Seja como for, a tradução de Galland permanece como a mais lida até hoje, e foi responsável, já no século XIX, por uma onda de orientalismo que dominou o cenário cultural europeu por muitas décadas.


                              Alexandre Dumas, pai: grande mestre do Folhetim

Um de seus mais célebres fãs foi Alexandre Dumas pai (1802-1870). Em O conde de Monte Cristo, quando Edmond Dantés encontra a caverna do tesouro, na Ilha de monte Cristo, ali temos uma cena em que Dumas cita Ali Babá e os 40 Ladrões. E Abre-te Sésamo (sésamo é gergelim, e a expressão não tem significado nenhum, a não ser o mesmo de Abracadabra ou Era Uma Vez... Ou seja, uma tradição mística... ). E Dantés passa a chamar a si mesmo de Simbad. Por alguns episódios, vai adotar esse nome.
Além desses elementos pontuais, temos a própria narrativa do gênero folhetim.  O nome vem de folhas (jornais, revistas), e isso porque as histórias saíam em episódios, nos periódicos. Cada capítulo tinha de deixar seu gancho, prender o leitor, para que ele procurasse a folha para ler a continuação no dia seguinte. O conde de Monte Cristo e principalmente Os três mosqueteiros  são narrados nessa modalidade inspirada pela narrativa da rainha persa adolescente, Sherazade, que buscava com isso salvar seu pescoço da lâmina alucinada da espada de Shariar. Os três mosqueteiros também tem a sua narrativa-mestra, e seus inúmeros episódios, peripécias, reviravoltas: é o máximo em termos de folhetim.  









Capa da minha adaptação de As 1001 Noites – em 4 volumes


                Vivo repetindo que, em Literatura, nada nasce de chocadeira. Antes de ser um escritor, o sujeito é um leitor. No mundo das bibliotecas, dos livros, apaixonado pela leitura de grandes histórias, é que a pessoa decide (mesmo que sem perceber) que quer escrever histórias e que tipo de histórias quer escrever. Obras geram leitores que por sua vez geram obras; e muito da Literatura tem a ver com essas linhagens que são uma fonte fundamental de tudo o que se cria na Literatura.




Robert Louis Stevenson










                                                                                                                                                                                                                                                                                                Charles Dickens


Assim, de Dumas, da admiração que provocou por suas histórias e sua habilidade (folhetinesca) de contá-las, temos dois romancistas básicos da consolidação do romance na Literatura, o inglês Charles Dickens (1812  - 1870) e o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894).  Não é possível medir objetivamente o que devem a Sherazade e às Noites as peripécias do sr. Picwick (1837), nem a estrutura folhetinesca de Bleak House (Casa soturnaque é constantemente apontado como seu melhor romance, publicado em partes mensais de 3 a 4 capítulos cada, em 1852-1853) , entre outras criações de Charles Dickens, nem as de A ilha do tesouro, publicado em episódios entre 1881 e 1882, pelo folhetinista Stevenson. Não é assim que funciona. É mais etéreo. Só não dá para confundir com plágio. Descendência literária é algo bastante refinado, e é como se dissemina a Literatura. Dickens e Stevenson nomeavam (não por acaso) As 1001 noites e Dumas como as leituras que mais os influenciaram em sua escrita. Stenvenson, também autor de O médico e o Monstro, para acentuar sua descedência literária, publicou em episódios nos jornais As Novas Mil e Uma Noites, com contos e novelas que estão entre os mais saboreados pelos leitores do tipo cult 




                                          Primeira Edição em livro de A ilha do Tesouro, 1883


                Atravessando o Atlântico, encontramos um escritor que deixou legiões de fãs, influenciou profundamente a Literatura e os escritores que o sucederam, apesar de sua vida curta e trágica. Trata-se de Edgar Allan Poe (1809-1849).


Edgar Allan Poe

                Sempre lembrado pelo poema O corvo e por seus contos de terror, que influenciaram fortemente H.P.Lovecraft, Henry James e, mais recentemente, Stephen King, Poe foi também o autor de um conto macabro (A milésima-segunda noite de Sherazade) diretamente ligado às 1001 Noites. É terrível demais, mas não se pode dizer mais nada aqui, para não ser estraga-prazer (spoiler). O fato é que o imaginário oriental das noites árabes contamina, de alguma maneira, a obra desse que foi o maior nome do gótico-romântico americano.


                
Jorge Luís Borges
em seu habitat...

Muitos e muitos escritores se declararam (e suas obras mostram isso) aficionados das Noites. Mas, dando um salto de décadas e nos aproximando um pouco, geograficamente, temos um autor exponencial tanto pela influência que exerceu no século XX como pela intensa influência (inspiração!) que, por seu lado, ele recebeu das histórias de Sherazade. O argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), além de leitor declarado de Stevenson,  adorava as Noites Árabes. Escreveu, entre outros textos,  um ensaio sobre a história das suas diversas traduções (um ensaio ficcionalizado, pelo menos em parte, como tudo que Borges escreveu [fingindo] ser documental).

  


Escritores, apaixonados por Borges... Que se reuniram para, cada qual, escrever um conto inspirado no autor de Aleph. Eu o homenageei com A bliblioteca infinita, na linhagem da paixão de Borges por As 1001 noites. Um trecho do conto está reproduzido abaixo...

E foi essa sua primeira visão da Biblioteca.
Era de fato uma pequena estante com encadernações de pergaminhos, em couro de cabra. Ibn Fahraduc sentiu um arrepio ao vislumbrá-los. E se aproximou deles, enquanto as pernas e os braços – e na verdade, todos os músculos do corpo – tremiam. Como se aqueles livros  fossem fantasmas. Sentiu a testa e os lábios arderem, de uma febre forte, e pontadas na nuca, nas têmporas, fagulhas no peito. E mesmo assim precisava tocá-los. Algo lhe dizia que não devia fazê-lo, que seria como tocar algo do outro lado da vida. Mas,  não conseguiu deter o seus passos, seu braço se erguendo, seus dedos, alisando então as lombadas. E lágrimas escorreram pelas suas faces, quando, de alguma maneira, seu tato encontrou a aspereza do couro daqueles volumes como algo que ele buscava, havia tempos, sem saber. Algo que reconheceu sem jamais ter conhecido.




Julio Cesar de Mello e Souza: 
Malba Tahan

                Também no Brasil a tradução de Galland chegou, deixando herança. O maior divulgador das Noites Árabes, entre nós, foi Malba Tahan, como é notório. Trata-se do pseudônimo autoral de Julio César de Mello e Souza (1895-1974), professor de matemática, iluminista. Pelas  suas mãos, muitas histórias das 1001 Noites foram recontadas; outras nasceram, como se tivessem saído da boca de Sherazade. E pelo menos um personagem, amado pelo seus  leitores, surgiu, Beremiz Samir, O homem que calculava, no livro que faz sucesso desde o seu lançamento, em 1949.



Monteiro Lobato
combatido pelos chatos politicamente-corretos,
amado pelos leitores de muitas gerações

                E finalmente, para não tornar este Debate uma enciclopédia, já que descendentes literários das 1001 Noites não faltam e  continuam sendo gerados até hoje,  temos para encerrar o fundador da Literatura para crianças e jovens no Brasil, Monteiro Lobato (1882-1948). Quando a turma do Picapau Amarelo faz do Sítio um generoso acampamento da fantasia universal, não poderia faltar por lá Sherazade e sua tribo. Lobato foi o primeiro contato de muitos leitores com as Noites Árabes.
                A noção de Linhagens Literárias é bastante fértil. Seminal. Produtiva. Cada vez que rastreamos (pode ser mais saboroso para a garotada ir de frente para trás, do mais recente para o ascendente, como se fosse uma investigação detetivesca, descobrindo pistas) de onde vêm aspectos (sutis) de uma obra, ou dos recursos de criação adotados por um autor, descobre-se um baú do  tesouro. A História da Literatura ganha um colorido diferente, fala sobre personagens, truques (recursos, técnicas) narrativos, criação. É como se uma nova biblioteca fosse descoberta, com uma organização de estantes e prateleiras toda especial.  Os livros trocam intimidades, murmuram, confidenciam segredos do seu passado.
Leitores Cascudos escutam essas vozes. Por isso, para eles, as bibliotecas são habitadas. É por isso que para eles, para nós, um livro sempre puxa outro.  As 1001 Noites  são histórias sem fim.
                 

#paraleitorescascudos   #minhapátriaéaliteratura



[1]  Como sugere a psicanalista Purificacion Garcia Gomes em O método terapêutico de Sherazade.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

OS MAIORES

QUASE-MONSTROS

DOS CLÁSSICOS

Heathcliff & Javert & Ahab

e Outros…





PARA LEITORES CASCUDOS
Obsessão em Cena
Amor, Ódio e Qualquer Coisa entre um e outro





(contém estraga-prazeres, aka. spoilers – desculpe, leitor, mas aqui não teve jeito ...)




            Três personagens para dar pesadelos: Heathcliff, o inspetor Javert e o Capitão Ahab.



[Acima: Emily Bronte, Alexandre Dumas e Herman Melville]



Modelados com a obsessão como matéria-prima, são sombrios, implacáveis, autodestrutivos. Nada importa, nem pessoa alguma, que não seja o objeto de sua ânsia. E tão misteriosos, tão prodigiosamente enigmáticos e, portanto, nas suas profundezas turvas, tão humanos, que se tornam assombrações (não há assombrações não-humanas, há?). Fantasmas do que podemos temer que aflore em nós próprios.
Hoje seriam chamados facilmente de radicais. De irados. Ou simplesmente de malucões. Não deixam de ser, mas são também modelos de genialidade na composição de personagens, algo típico do que os clássicos da Literatura podem nos oferecer.
          Heathcliff  estrela O morro dos ventos uivantes,  romance da inglesa Emily Bronte publicado em 1847. O personagem começa sua trajetória ainda menino, quando é encontrado pelo Sr. Earnshaw, vagando, abandonado, em Liverpool. Trazido para a mansão da família, em Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes), ele cresce,


[Laurence Olivier como Heathcliff, em filme de 1939]

apaixona-se pela filha de Earnshaw, Catherine. O amor é mútuo e, por todas as diferenças sociais envolvidas, proibido. Resumindo, Catherine morre, Heathcliff foge, enriquece, volta, compra a propriedade dos Earnshaw e passa a viver dedicado a se vingar de todos os que considera culpados por sua tragédia pessoal. Torna-se uma sombra, um fantasma-vivo... Até morrer, perseguindo seus delírios.
                É provavelmente o personagem mais febril, mais enlouquecido pelo amor, de toda a Literatura. E o que mais devotadamente transformou seu amor em ódio. Há quem o considere um herói romântico. O máximo em termos de auto-aniquilação por razões amorosas. Nenhum personagem amou tão loucamente quanto Heathcliff. Há aqueles que o consideram, por tudo o que fez, um monstro. Seja como for, O morro dos ventos uivantes é um modelo, até hoje, de história de amor do tipo devastação total. Alguém quer escrever algo do gênero, ou ler o que de melhor se fez no gênero, ou o que deu origem ao gênero? Leia O morro dos ventos uivantes.
     O inspetor Javert é uma criação do romancista francês Victor Hugo, em Os miseráveis (1862).  Javert rouba a cena daquele que seria o virtuoso herói, Jean Valjean, e do casal romântico, Cosette e Marius. É magnético, perturbador. Passa todo o romance obcecado, à caça de Valjean, um ex-presidiário. Parece feito de granito, tão inabalável é a sua certeza do que deve fazer e sobre a correção de seus atos. Ele jamais hesita. Não tem vida pessoal; pelo menos, o que nos é mostrado é que ele é todo a  caça a Valjean. E parece também cruel... mas, talvez, somente pareça. Como saber? Não há uma palavra precisa para defini-lo, entre o Bem e o Mal.


[Inspetor Javert]


Na sua cena derradeira, quando poderia enfim destruir Valjean, que acaba de salvar a sua vida (nada a estranhar, pois Valjean, apesar de um perseguido pela Lei, que Javert representa, possui nobreza de espírito, justamente algo que não se espera em Javert) , em vez de denunciá-lo, ou prendê-lo, suicida-se. A perda de sentido de sua existência, que o leva ao auto-extermínio,  é de uma complexidade infinita, uma armadilha, saia-justa para toda interpretação/compreensão, na qual somente uma obra prima da Literatura pode nos meter. Ao mesmo tempo, para um personagem desses, o que lhe restaria a viver, se não consegue mais ser o perseguidor de Jean Valjean?
            Um personagem não é somente empático/carismático se é do Bem. Nossos terrores e ansiedades também podem ser encarnados por personagens malignos. Ou pelo menos ambíguos, nesse quesito; almas penadas da zona do crepúsculo. Nem divino, nem demoníaco; algo trans. Coisas da Literatura...
Já o primeiro de todos os personagens obsessivos,  o Aquiles, de Homero, em Ilíada, nos intriga e horroriza com sua sanha de apressar o desenlace anunciado, de ir logo ao encontro da morte que lhe fora profetizada. E toda a carnificina – incluindo nisso as atrocidades cometidas contra o cadáver de Heitor – que protagonizou, em honra de sua morbidez. Outro, na mesma linhagem, seria Hamlet, de Shakespeare, cuja obsessão (até hoje não me convenço de que a cena que o fantasma do rei assassinado aparece não seja um delírio de Hamlet, gerada pela semi-loucura que já o domina) o faz despencar num abismo e traz a morte a todos à sua volta (a peça, fundando o clichê, termina por falta de personagens, e nenhum diretor hollywoodiano conseguiria um final mais sangrento), incluindo o próprio Hamlet – algo inevitável, desde a primeira cena, seguindo-se a torrente dramática da história e do personagem.
O que dizer então de um Capitão Ahab, de Moby Dick (1851)? Somos apresentados a ele (depois de muito suspense em torno da sua estranheza) já a bordo do  baleeiro Pequod, do qual é o capitão. Mas, sua tragédia, sua sina inescapável se inicia numa viagem anterior, quando, no mar, tentando abater a baleia branca, o mamífero gigante e sobrenaturalmente inteligente decepa sua perna. Ahab quer vingança.


[Capitão Ahab]



Mais do que querer, ele é possuído pelo imperativo da vingança. E toda a sua pessoa se torna a mutilação, corpo e alma. Cada palavra, gesto, expressão de rosto ou atitude se voltam para um único propósito: matar Moby Dick.
Com um material desses em cena, a pergunta é o que restaria de Ahab, se ele conseguisse matar Moby Dick? Como sobreviveria, sem o objeto de seu ódio, para perseguir, e odiar cada vez mais? O que teria mais para fazer no livro (ou na vida)? Por um lado, Ahab e seus companheiros-personagens de purgatório terreno nos colocam (de novo: Coisas da Literatura...) em confronto com alguns dos mais enigmáticos, labirínticos, assustadores e fascinantes meandros do espírito humano, envolvendo o aprisionamento pelo ódio, pelo rancor e, novamente, pela obsessão. Por outro, o enredo, da abertura ao desfecho, é predestinado: Ahab irá causar uma hecatombe e sua própria destruição; ninguém (a não ser o marujo novato Ismael, que nos conta a história) a sua volta será poupado das consequências da sua insanidade.
Da sua obsessão.




Ahab é o fantasma e a maldição do Pequod. Há subordinados seus que enxergam isso. Tentam em vão alertá-lo, manifestam temor pelas suas vidas e augúrios lúgubres sobre aquela viagem que segue a rota da vingança. No entanto continuam a navegar com a morte a comandá-los.
Note-se que esses personagens, como outros dos clássicos, possuem uma solidez que será questionada pelos ficcionistas das gerações modernistas do século XX, nos quais se admira a fluidez de caracterização, de ação, de trama. São criaturas de naturezas diferentes das que encontramos, e nos tomam, em romancistas do século XIX.
Heathcliff, Ahab, Javert.  Tenho honesta inveja de criações desse porte. Vez por outra, as persigo, menciono e cito, em meus livros. Eu as admiro tanto...! Pelo menos um Javert já coloquei numa história (Sonetos nas Trevas).  Afinal, são personagens assim que se imortalizam e que fazem a Literatura tão extraordinariamente humana, que se torna extraordinária.


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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016


VIVA A LITERATURA QUE DÁ GOSTO DE LER!
ou
De Clássico e de Pop, toda Boa Literatura
(atual)
tem um tanto







                Um órfão. Sua origem é desconhecida – pelo menos, ele sabe pouco sobre seu passado, principalmente quem foram seus pais e como foi parar na (triste) situação em que o encontramos no início da história. Ele é maltratado. As pessoas que o criam parecem ter a vocação para detestar crianças e, particularmente, para detestar nosso amigo. Que, na verdade, está se tornando mais e mais amigo, mais e mais querido... a cada capítulo. E mais e mais torcemos por ele, à medida em que acompanhamos seus sofrimentos (as privações, castigos, encarceramento aviltante, má alimentação, trabalhos forçados, maus tratos generalizados, injustiças, humilhações, e às vezes mesmo surras). Então, algo acontece, uma virada na história. Algo totalmente surpreendente, uma revelação sobre o passado do menino. Que lhe dá a chance de se libertar daquela vida, de realizar seus sonhos, de encontrar a felicidade... E compreender que, longe de ser um enjeitado sem valor, ele é muito, muito mais do que sabe e do que imaginam aqueles mesmos que o maltratam.
                Esse personagem pode ser Harry Potter.  Ainda mais, somando o efeito dessa caracterização a seus óculos, sua timidez, sua (aparente) fragilidade. 

              

  No entanto, é também Oliver Twist, de Charles Dickens. Na feitiçaria requerida para fazer crianças sofrerem, em seus romances e contos, justamente para denunciar a situação social e cultural  da criança e seu desvalimento, em seu tempo, ninguém melhor do que Mago Dickens. E quem tiver estômago fraco para isso nunca leia A casa soturna.  












                Já a saga do Bruxinho Inglês - que, num mesmo percurso, descobre os segredos do seu passado, cumpre a jornada de resgate de sua força interior e de quebra salva o Mundo, triunfando sobre as forças do Mal -  é o maior êxito da Literatura Popular do final do século XX (e que se estendeu ao século XXI). Entretanto, desde o seu surgimento, houve detratores, com argumentos dos mais diversos. O que dificilmente se enxergou, nem se enxerga, é que a Literatura Pop não tem como modelo (cânone?) a Literatura Modernista, de Vanguarda, mais ou menos situada entre os anos 1920 e o final da década de 1970 (a grosso modo, porque ela exerce influência ainda hoje, principalmente nos críticos e no meio universitário). A Literatura Pop tem como referência os clássicos do século XIX.
                Não é à toa que retoma gêneros como o terror, a fantasia, o mistério e suspense, a aventura.  Para um leitor/escritor pop, Alexandre Dumas, Robert Louis Stevenson, Julio Verne e Arthur Conan Doyle, que não foram reconhecidos como gênios literários pela crítica erudita do século XX – embora tivessem legiões de fãs – são os nomes a se considerar, entre outros, claro, num cânone próprio, uma Lista de Honra de nossos ascendentes literários mais ilustres.
                Explicando melhor, embora aqui a gente não vá desenvolver nenhum estudo erudito, a Literatura Modernista buscava trabalhar mais a linguagem, as formas narrativas, e fazer o leitor estranhar o que estava lendo. Ou seja, não queria lhe dar conforto, nem permitir que ele se resguardasse nos seus hábitos de leitura. Já o que a Literatura Pop busca não é o estranhamento, mas o envolvimento. E privilegia, como os clássicos, a construção de personagens que precisam ser sólidos para se tornarem carismáticos, empáticos; e de enredos eletrizantes, que suguem o leitor, que o tragam para torcer, sofrer e rir dentro da história.
... A viver  a ilusão de viver a história. Intensamente!
Quanto à linguagem, a forma de contar, não é a estrela, o prato principal, mas a bandeja, a travessa, a mesa das iguarias – vale pela sua eficácia em contar a históriaImagine um pesadelo em que a mesa de refeições, no que sentam os convidados (você entre eles) para traçar um jantar apetitoso, começa a corcovear, pretendendo por tudo bloquear qualquer facilidade de acesso à comida... 
                A condenação da crítica especializada, acadêmica, erudita a obras da Literatura atual, principalmente a que agrada a garotada, tem muito a ver com a cobrança de uma Literatura diferente, de outra Literatura, ou seja,  dos ingredientes modernistas, que a Literatura Pop Contemporânea não adota.
O escritor Pop não quer quebrar  o encanto.
É nisso que está a sua complexidade e toda a arte de escrever um bom romance, novela ou conto, atualmente. Seduzir o leitor é dificílimo: exige talento, técnica, trabalho e retrabalho tenaz, tudo para  estruturar um enredo no qual a primeira cena tem articulação com o desfecho, a última cena; e cada capítulo, quando não cada página, fecha com ganchos e artifícios (arte + ofício) para fazer o leitor querer virar logo a folha.





Daí, garotão e garotona, não aceite barato quem falar mal de suas preferências em Literatura. São livros que tem linhagem nobre – descendentes literários do que de melhor se escreveu até hoje. Então, viva Harry Potter! Viva Percy Jackson! Viva o Terror, o Suspense, o Mistério, a Aventura! Viva as bibliotecas murmurantes! Viva os leitores cascudos que vão atrás, por conta própria, que caçam, se entregam, topam o desafio de ler livremente Literatura! Viva a Literatura que dá gosto de ler! 

                                                                 #minhapátriaéaliteratura