terça-feira, 13 de setembro de 2016

EPISÓDIO 15 


No Episódio Anterior...

Então, de repente, o garoto sentiu a respiração se tornando dolorosa demais. Teve certeza de que iria morrer. A vista escureceu e uma pressão absurda ameaçava explodir em cacos a sua cabeça. Lembrou-se então da história que contou certa vez para Náique e os outros pequenos do bando, sobre anjos, que desciam nesses momentos do céu para buscá-los... Para levá-los para um lugar melhor.


A Hora das Sombras





 Havia um mês que os funcionários  que trabalhavam no bloco da administração do complexo chamado Condomínio Fortificado Atlântica Sereia só se referiam à novidade como “a paixão do chefe”.
                Era o Supervisor, como era tratado, ou Senhor Supervisor, o Diretor de Instalações da  Região Meridional/B. Ou seja, o responsável  pela administração do Condomínio Atlântica Sereia, um empreendimento que servia de sede a inúmeras empresas, dividas pelos diversos blocos, e de residência para seus executivos na Torre das Mansões Verticais.
Havia quem especulasse que era estrangeiro, já que exibia um certo sotaque. Mas, um sotaque que variava de acordo com seu estado emocional. “Pode até ser daqui mesmo. “, havia quem comentasse, já que os stakeholders estrangeiros – mesmo os que, tendo nascido ali haviam migrado para fora, de onde comandavam a Corporação Global – costumavam usar operadores-chefes locais, melhor situados no contexto com que tinham de lidar.
Se as corporações instaladas nas regiões meridionais era notório que,  particularmente na Meridional/B, somente alguém muito familiarizado com o peculiar emaranhado de propinas e negociatas dos burocratas e autoridades nativas poderia fazer os negócios avançarem ali.
E a verdade é que poucos tinham contato constante com o Supervisor. Vivia entre seu gabinete e a cobertura do prédio – seus aposentos privados. Sempre o descreviam como carrancudo, absolutamente absorvido pelo trabalho, como qualquer outro executivo  – e mais viciados eram nas suas funções quanto mais elevado o cargo que ocupavam.   
Por isso, todos os funcionários a par do assunto estranharam quando o Supervisor designou a categoria A1 para a mais nova aquisição do Departamento de Lazer Executivo (DELEX – que muitos funcionários teimavam em chamar de DÊ-SEX). E isso, mal pôs os olhos nela. Afinal, era uma garota magrinha, de cabelos lisos, da qual não puderam saber sequer o nome, para registrar no banco de dados, já que ela se recusava a falar.
Na categoria A1, a garota estava dispensada dos serviços domésticos habituais. E somente o Supervisor poderia requisitar sua companhia. Para tanto, dispunha de um apartamento totalmente equipado, na sua cobertura. Assim, ela não fora instalada no dormitório do DELEX, ocupado das demais garotas, categorias A2 e A3, que os funcionários haviam apelidado de harém
Além do mais, como uma deferência inédita até mesmo para uma A1, fora designada uma camareira para atender à “paixão do chefe” – a Chokita. Era uma veterana no condomínio e que, se não fosse aquele novo posto, teria sido realocada para um centro de lazer de funcionários não qualificados.

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Esse último privilégio espantara de vez os assessores do Supervisor, e os tornaram ainda mais reticentes ao comentar o caso. Pressentiam que o grande homem ficaria furioso, se escutasse qualquer coisa.  Ninguém ousaria, por exemplo, perguntar ao chefe como ficava sua permanente obsessão por cortar custos, diante de uma despesa extra dessas, não prevista no orçamento. E a cautela era bem fundada.
Afinal, havia “situações”, como diziam, “bem piores do que a Meridional/B, onde pelo menos as instalações funcionais dos condomínios, são de primeira classe e não há resistência contra as determinações das Corporações”...
Em alguns casos, verificava-se resistência armada, por parte de grupos rebeldes, insurgentes, quando não insurreições abertas nas ruas e zonas rurais. Falava-se até mesmo de um supervisor regional, em outro continente, que fora assado dentro do seu bunker, explodido e posto em chamas, junto com todos os executivos de sua equipe. Mas, isso poderiam ser boatos. Não houve comunicação oficial a esse respeito. Enfim...
“Dane-se! Se o Supervisor resolveu se apaixonar por uma das aquisições do DÊ-SEX, problema dele. Faça bom proveito!”
Entretanto, o próprio Supervisor começava a sentir desconforto, com aquela história. A seu ver, o Condomínio era uma cidadela perfeita, extremamente lucrativa, graças aos serviços que prestavam. De eficiência infalível.  Dali, executivos e técnicos poderiam gerir e manter em funcionamento unidades produtivas totalmente automatizadas – sem emprego de mão de obra, nem empecilhos trabalhistas,  como os que enfrentavam  na Sede. Não tinham de montar centrais de atendimento a consumidores e clientes, e, na verdade, nem mesmo formalmente vigoravam por lá códigos de defesa do consumidor. Todas essas preocupações haviam sido abolidas. E, dispensados de  custos com preservação ambiental,  gastos de retorno à sociedade, promoções beneficentes, patrocínios culturais e esportivas, e outros, os negócios prosperavam.
Era o paraíso!
As instalações se espalhavam por toda a Meridional/B, interconectadas via satélite e ligadas permanente com a Administração Central, no Atlântica Sereia e na matriz do país-sede. Os demais condomínios funcionavam do mesmo modo, e todos em harmonia, cada qual em seus territórios e com atividades criteriosamente divididas de forma a não entrarem jamais em conflito e poderem usufruírem das mesmas facilidades de infraestrutura, tanto em produção de energia, como em segurança, transporte marítimo como aéreo e outras ramificações.
Nas matrizes, a opinião pública forçava a mudança cada vez mais significativa de complexos fabris e usinas de energia nuclear para os territórios periféricos, como a Região Meridional/B. Nos países-sedes, permaneciam somente os serviços, principalmente difusão de tecnologia e os bancos, e, é claro,  uma requintada indústria de cultura e entretenimento.
E assim estava dividido o mundo, a Economia Planetária, com suas especializações e diversidades regionais.

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Também na Torre das Mansões Verticais, o setor residencial do Condomínio, os complexos eram dotados de altíssima tecnologia, assegurando conforto e total proteção, desde a via de acesso a Zona Oeste. Havia inclusive um aeroporto, com ponte aérea entre as diversas centrais, e uma linha de helicópteros para o transporte entre o condomínio e o aeroporto. Mas, raramente era usada, já que a videoconferência era o meio mais comum para se realizar reuniões para a tomada de decisões. Os executivos não tinham o hábito de deixar os condomínios.
Até a chegada da garota nova, portanto, o Supervisor fora totalmente devotado ao seu pequeno reino. Agora, problemas administrativos passaram a irritá-lo profundamente, principalmente os mais corriqueiros, questões de manutenção do Condomínio. Estava pensando mesmo em nomear um Sub para cuidar disso. Uma espécie de Zelador, superqualificado. Seria contra a política de contenção de gastos, mas a margem de lucro atual lhe permitiria fazer isso, sem que a matriz o questionasse muito.
Agora, dera para aproveitar todo intervalo disponível – e chegava mesmo a fabricá-los – para correr ao apartamento reservado, na sua cobertura, onde ficava sentado, num canto, simplesmente observando-a.
A única coisa a que ela parecia dar valor eram aqueles livros encadernados, que o Supervisor mandara colocar ali, primeiramente, para efeito decorativo. No que compreendera o apego da garota aos livros, mandara providenciar mais, e ficara furioso ao ser informado de que o Departamento de Serviços Externos perdera o fornecedor das encadernações.
Mas, pelo menos os que havia naquela estante, pareciam tão preciosos à garota, que, encantado, o Supervisor corria para lá para vê-la, lendo-os, e acariciando-os, às vezes, como se fossem uma pessoa querida.
Ainda não obtivera dela nenhuma palavra. Nenhum agradecimento pelas regalias que lhe proporcionava. Nenhum pedido a mais, que ele ficaria feliz em escutar, e que usaria de todo o seu poder para satisfazer. Nada. Os momentos que passava ali eram de total silêncio.
O Supervisor sentia-se confuso, perdido. Já conseguira vencer a resistência de inúmeras “aquisições” com muito menos. 
E, daquela, nem conseguira sabia o nome...
Sentia-se bancando um idiota.
Mas, não conseguia fazer diferente.
Enquanto isso, os problemas se empilhavam sobre sua mesa. Era tempo de trocar o presidente do país. A imagem do atual, mesmo borrada pelos chuviscos da tevê, já se tornara conhecida demais, gasta demais. Para isso, entretanto, precisava marcar uma videoconferência com os executivos cujos cargos correspondiam ao seu nos Condomínios Em Alerta Netuno  e o Sensuais Seguros Trópicos.   
E havia uma questão menor, daquelas que mais o irritavam. O chefe de manutenção da suíte informava que o “engenheiro das piscinas não estava mais dando conta de suas obrigações”. A ficha do funcionário dizia: “Função: manutenção das piscinas na Torre das Mansões. Nacionalidade: radicado na região  - naturalizado. Qualificação: Mestrado na Matriz. 73 anos.” Exigia-se de todos os funcionários do Condomínio uma formação mínima de pós-graduação no exterior. Mas, estava cada vez mais difícil encontra-los entre os locais.  Logo, precisariam recorrer a mão-de-obra trazida da matriz ou de regiões agregadas, o que encareceria o custo da manutenção. Que chateação...!
“Hum!”, murmurou entredentes o Supervisor quando, pela quinta vez naquele dia, bateu os olhos naquele memorando. “Não quer mais trabalhar, é isso que é. Pois está na hora então de jogá-lo de volta nas ruas. Que viva como o resto da gente dele, para aprender!”
Digitou um código numa mensagem interna para o chefe de manutenção, que dava a solução para o caso. A seguir, pôs o chefe do DELEX na tela.
- Sim, Supervisor! – respondeu o executivo.
- Como você sabe -, disse o Supervisor – a World Raptor está transferindo suas atividades para esta região e escolheu como sua sede o Atlântica Sereia.
- Mais uma vez, vencemos a concorrência, Supervisor.
- Sim, é fato. O presidente executivo chega em três dias.
- Recebi o memorando, Supervisor. Só temos um problema... As especificações para servi-lo diz que ele exige um camareiro. Um garoto.
- Não estamos aqui para reparar nas preferências dos clientes do Condomínio! – esbravejou o Supervisor.
- Claro que não, senhor! – apressou-se a replicar o funcionário. – Nem pensei nisso.
- Então, qual é a dificuldade?
- Estamos com falta de material. Não fazemos aquisições de  garotos há mais de um mês. Foram suspensas por que...
- Um mês? – rugiu colérico o Supervisor. – E vou ter de me preocupar com isso agora? Faz quanto tempo que você recebeu o memorando?
- Foi na semana passada, senhor. Mas...
- Então, já devia ter providenciado. Já entendi. Ainda não conseguiu acertar com o chefe de serviços externos quanto vai caber a cada um pela comissão de aquisição do camareiro, não é? Resolva isso imediatamente! Quero tudo em ordem, para quando o nosso novo cliente chegar. E não vai haver tempo para domesticar  o garoto! Se houver reclamações,  você paga a conta! Isso quer dizer...
- Bem, temos um motoboy de plantão hoje. Talvez, ele saiba de alguma delegacia, nossa fornecedora, que...
- Talvez? Nossa filial na Região Afastada-3 está requisitando pessoal. Está interessado no posto?

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- Não senhor. Vou cuidar de tudo, Supervisor. Hoje mesmo. Não se preocupe com a domesticação. Temos aqui quem fala o dialeto deles. Fazem qualquer coisa por comida. O garoto vai aprender rápido. Eu garanto!
O Supervisor desligou o comunicador, amaldiçoando o funcionário. Então, pressionou as têmporas, ainda sentindo a pressão elevada por causa do aborrecimento, e consultou seu relógio. Dispunha de meia hora antes da reunião on line. Pensou em resistir ao impulso, de concentrar-se na pauta de que teria de tratar. E talvez assim começar a “afastar-se dela...” Inútil. Sabia que cederia.  
Ergueu-se, caminhou para a porta, e só então lembrou-se do  pequeno disparador de dardos elétricos, em sua gaveta. Uma cautela. A garota viera das ruas. Se o atacasse... Mas, como alguém de aparência tão frágil poderia se tornar feroz, de repente? ...  Já ia deixar para lá,  o disparador. Mas retornou, pegou-o da gaveta, e guardou-o no bolso do paletó. 
Menos de cinco minutos depois, entrava no apartamento reservado a Liana.

Ela estava quieta no seu canto junto à estante. No colo, um livro lindamente encadernado. Trabalho de mestre.  Ela sabia muito bem quem o fizera.


[Episódio 16... 21/03]


No próximo Episódio...

                O quarto tinha uma enorme cama redonda, com lençóis que deslizavam sobre a pele, e  espelhos nas paredes e no teto. Liana se sentia espiada ali. Por isso, às vezes, dormia sobre o tapete da sala, para horror de Chokita.  Havia ainda o programador de refeições, na tela do qual se poderiam encomendar diferentes pratos, de um cardápio que mudava toda semana. E ainda os diversos frigobares, um em cada ambiente, com sucos de frutas, refrigerantes, e os pratinhos de doces, bombons e balas, trocados diariamente. 
                - Nenhuma das outras garotas tem tanto luxo, patroa! E aí...? Gosta mais da rua, é?




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