EPISÓDIO 17
No Episódio Anterior
Liana encarou Chokita com raiva. Então, apertou o
livro no peito. Gostava dali. Tinha medo do Supervisor. Mas, não era um medo
que ela não entendesse. De algo desconhecido, que pudesse acontecer de repente.
Era um medo diferente. E se lhe tirassem os livros?...
“Não!”, decidiu. “Não quero perder mais nada. Nunca
mais!”.
Chokita não acreditou quando a viu levantar-se,
dirigir-se ao sofá e apanhar a blusa de seda vermelha. Experimentou-a no corpo.
Viu como se sentia... Sim, estava decidida. Chokita começou a dar pulinhos e a
bater palmas, entusiasmada.
Liana vestiu a
blusa.
Episódio 17
Quando
o motoboy estacionou o veículo de traslado em frente da Delegacia do Setor 12,
ainda acreditava que estava atravessando uma fase de muita sorte. Primeiro,
conseguira tomar a bordadeira do outro motoboy, e isso o segurara no emprego no
Condomínio Fortificado Atlântica Sereia. E agora, intermediar uma aquisição do
DELEX iria lhe garantir uma boa comissão – mesmo descontando a mordida do
gerente do Departamento.
Então,
foi logo na entrada que tomou o esbarrão de Bazu que o projetou de costas no
chão. O policial, transtornado, o agarrou pela gola da jaqueta e suspendeu-o,
berrando:
-
O médico! Você é o desgraçado do médico?
Em
pânico, o motoboy (que, por ironia, estava dirigindo uma camioneta com caçamba,
neste serviço extra, e não sua moto), sacudiu a cabeça negativamente. Bazu
atirou-o longe e correu de volta para dentro. Sobre uma mesa, Zuca estava se
contorcendo feito uma serpente, com o peito e o estômago varado de bala. Era
inacreditável a quantidade de sangue que
jorrava de seus ferimentos. Junto da mesa, Zeromeia e Zerossix
comentavam justamente isso, se perguntando quanto mais sangue o policial
baleado poderia perder, quando Bazu debruçou-se sobre ele, os olhos
esbugalhados, os punhos cerrados de fúria, a voz rouca:
-
O pessoal do Condomínio prometeu mandar um médico. Aguenta, Zuca. Só mais um
pouco. Não me deixa! Somos a Grande Dupla, lembra?
-
Não contaria muito que esse tal médico viesse da Zona Oeste até aqui só para
atender uns tiras baleados, sabe? – atreveu-se a comentar Zerossix.
Bazu
voltou-se para ele com um rugido que fez o delegado se encolher, sobressaltado.
Havia outros policiais da 12ª feridos, mas nenhum com a gravidade de Zuca, que,
no auge da excitação, não se contivera e saltara de dentro do blindado, com a
metralhadora, e por isso recebera uma rajada em cheio do blindado adversário.
<<<>>>
-
Eu avisei para vocês não se meterem no território da 5ª! O pessoal da Delegacia
do Centro leva concorrência a sério. Eu avisei!
-
Mas nós chegamos primeiro! – berrou Bazu. – Dois bandos de pivetes se matando. Nessa
escassez de presas, não dava pra desperdiçar, não é? Quando começam a brigar,
ficam loucos. Não se separam nem com a gente caindo com as redes em cima deles.
E aí? Íamos esperar os bonecões da 5ª chegarem?
O
motoboy entrou, hesitante, na delegacia. A cena daquele homenzarrão numa mesa,
estrebuchando, e do outro agarrado nele, já ensopado de sangue também, às
lágrimas, o assustou. Mas, com esforço, conseguiu se convencer que, se aquela
confusão toda não era com ele, devia era tratar de seu negócio ali e sair o
mais depressa que pudesse.
-
E daí? – berrou de volta zerossix, já encarando Bazu. – Os bandos andam sem
comida! Estão se pegando toda noite. Deveriam esperar uma chance aparecer no
nosso território. Vocês bobearam!
-
Seu cretino! -, vociferou Bazu, partindo
para cima do delegado. Zerossix desceu a mão ligeiro para o coldre e sacou sua
pistola. Bazu foi agarrado por Zeromeia e outros. Por instantes, ainda se debateu,
urrando de ódio e frustração, mas em seguida acalmou-se. Pelo menos, um pouco.
-
O pessoal da 5ª já chegou atirando em nós. Nem se preocupou com os moleques. O
Zuca saiu do blindado... foi mal... mas eles provocaram. Quem eles pensam que
são? Zuca furou uns três, antes de o pegarem. Canalhas!
- Era o território deles. Vocês estavam invadindo. Não podiam capturar
presas que eram deles!
Foi
quando o motoboy resolveu que tinha de tentar chamar alguma atenção, ou ficaria
ali para sempre, assistindo à discussão. Aproximou-se então de Zerossix e
arriscou:
-
Me mandaram do Condomínio para pegar...
Zerossix
empurrou-o de lado, sem nem escutá-lo. Mas, havia se acalmado um pouco, agora.
-
É uma pena. Muita gente aqui não gostava do Zuca. Sabe como é... Essa mania
dele de matar primeiro...! Mas, eu dizia: “Vocês estão enganados! Se a gente entregar todos os moleques, o preço volta
a baixar. No final das contas, o Zuca aumenta nosso lucro!
-
Ei, xerife! – disse alto o motoboy. – Vim aqui tratar de negócios. Danem-se os
problemas de vocês!
<<<>>>
Zerossix
voltou para ele, ao mesmo tempo, o olhar e a mira da sua pistola, já calculando
se poderia alegar ao gerente do DÊ-SEX que o seu motoboy haveria levado um tiro
na testa por acidente. Mas, logo reconsiderou: “Garoto de entregas novo ...
ainda cheio de pose...!”
-
Sou representante do Condomínio! – protestou o motoboy. – Onde está o garoto?
Mal
Úgui foi trazido para a sala, Bazu saltou sobre ele, em fúria, agredindo-o com
socos e chutes:
-
A culpa é desses animaizinhos! – gritava o policial. – Eu quero matar ele!
-
Esse aí já está vendido, Bazu! – berrou Zerossix, e de novo os tiras tiveram
trabalho para contê-lo. Foi um custo tirá-lo de cima do garoto.
Sobre
a mesa, Zuca soltou um último grunhido.
Seu corpo se arqueou, tenso, para cima por um breve instante, depois
desabou. Estava morto.
Bazu
olhou sem reação para o cadáver. Seus ombros e braços arriaram. Sua cabeça
pendeu. Alheio a tudo, o motoboy examinava Úgui, que desmaiara com os golpes
recebidos.
-
Se algum osso dele foi quebrado, a compra está desfeita! O gerente disse que
vocês não estão cuidando direito do material que entregam. Aquela garota do mês
passado estava doente!
-
Ora! – disse, sorrindo, Zerossix, e dando palmadinhas nas costas do motoboy.
Odiava adular empregados do Condomínio. Mas, isso fazia parte do negócio. – Ela já saiu daqui quase sem febre!
-
Liana! – sussurrou Úgui, remexendo-se.
Fora
por muito pouco que o garoto conseguira sobreviver ao espancamento que sofrera
logo que chegara à delegacia. Não recebera nenhum tratamento. Toda vez que
sentia a vida lhe escapando, chamava por Liana – para lhe dar sorte, ou talvez,
força, vontade de viver. “Acho que era assim que o pessoal de antigamente
rezava”, pensava. Todo o seu desejo de se recuperar estava ligado a tentar
escapar e ir procurar a garota.
Somente quando
os policiais foram comunicados do interesse de seu cliente em adquiri-lo, se
preocuparam em dar-lhe algum atendimento – soro, analgésicos. Fizeram curativos. A essa altura, o forte
organismo de Úgui já havia reagido e ele estava praticamente restabelecido.
E
agora, finalmente escutava um comentário sobre Liana. Fosse para onde fosse que
seria levado, ela estaria lá também.
-
Liana!... – murmurou de novo o garoto.
-
O que foi que ele disse? – quis saber o mensageiro.
-
Está chamando alguém, acho – respondeu Zeromeia. – Demora até aprenderem a
falar direito.
-
E, se está falando – apressou-se a acrescentar Zerossix -, é porque está
saudável. Negócio fechado, certo?
Resmungando
“sim, negócio feito”, até por não querer perder a comissão que já contava
faturar, o motoboy algemou Úgui e
arrastou-o para fora. O garoto ainda estava meio zonzo. O motoboy empurrou-o
para dentro da caçamba do transporte.
Dentro
da delegacia, Bazu despertou de repente de sua letargia e agarrou sua
metralhadora, chamando em voz alta:
- Quem vem comigo vingar o Zuca?
Ninguém
se mexeu. Bazu xingou todos eles aos berros e saiu. Logo, partia em seu blindado,
roncando o motor, enquanto lá dentro o delegado Zerossix corria para o
comunicador.
-
Alô, 5ª Delegacia! Alô, amigos e colegas do Centro! Lamentável o incidente
hoje. Mas, ninguém quer que isso vire uma guerra de tiras, certo? Então, um
aviso para vocês. Um policial daqui perdeu a cabeça com o que aconteceu. É o
parceiro do tira que vocês fizeram de peneira. Portanto, cuidado. Ele saiu
daqui jurando vingança. Está num blindado, mas não representa esta delegacia.
Repito, ele não está em serviço, nem a mando oficial da 12ª! É tudo por conta
própria dele! Repito! Não se trata de um ataque oficial! Façam o que quiserem
com o cara, mas não vão fofocar para os patrocinadores, dizendo que estamos
metidos nisso! Nada oficial, repito!
<<<>>>
Meia
hora depois de deixar a delegacia, o motoboy entrava com seu veículo na garagem
subterrânea da Torre das Mansões Verticais, onde deveria entregar sua
encomenda. Estranhou não haver guardas nas guaritas de vigilância do conjunto
de prédios, nem na rampa da garagem. Mas já considerava seu serviço feito, encomenda
entregue, a sua comissão paga na mão. Ou seja, era mesmo seu dia de sorte,
pensou, e, com esse estado de ânimo, sacou sua arma e foi abrir a caçamba do
veículo.
Se
fosse mais experiente em traslados, teria seguido as normas e requisitado
reforço para retirar o garoto do veículo. No mínimo, saberia que todo cuidado é
pouco, quando se trata de alguém criado nas ruas, acostumado a vencer uma
guerra por dia, todo dia.
De
dentro da caçamba, Úgui não foi atrapalhado pelas algemas, no bote que deu na
garganta do motoboy, derrubando-o no chão. A pistola correu para longe,
enquanto, com um brilho feroz nos olhos, que deixou o motoboy paralisado de
terror, Úgui forçou as correntes das algemas contra o pescoço dele, montado em
sua barriga, fincando-o no solo, imobilizado.
-
A garota? Onde está a garota? Diz!
O
motoboy estendeu os dedos de uma mão, tentando alcançar a pistola. Furioso,
Úgui jogou o peso do seu corpo sobre as correntes, esticando-as contra o pescoço
dele. Um estalo, e a traqueia do motoboy partiu-se. A língua e os olhos dele se
espicharam para fora. A cabeça, com o pescoço frouxo, pendeu para o lado. Não
foi, afinal de contas, seu dia de sorte.
-
Droga! O fracote morreu! – lamentou-se Úgui.
A
seguir, remexeu na sacola do mensageiro, procurado as chaves das algemas – as
que ele vira usando para abri-las, quando as colocara nele, na delegacia.
Encontrou, logo descobriu como usá-la, soltou-se e se levantou.
Por instantes,
considerou apanhar a pistola. Vira tiras brincando com suas armas, na
delegacia, mas jamais usara algo como aquilo. Resolveu que estaria melhor sem
ela.
Olhou
em volta. Não tinha a menor ideia de onde viera parar. De repente, um ruído atrás
de si o fez girar o corpo, já com o corpo preparado para a luta.
O
velho paralisou-se, espantado, tanto com Úgui, eriçado como uma ratazana acuada,
quanto com o corpo retorcido, no chão.
-
Calma, garoto! – disse, erguendo os braços. A ferocidade no rosto de Úgui foi o
bastante para impressioná-lo. – Sei que a gente pode resolver nosso
probleminha... se tiver calma.
Era
o engenheiro das piscinas. Em seu
bolso, estava o memorando, notificando-o sumariamente que acabara de ser
demitido e que deveria deixar imediatamente as instalações, sob pena de
detenção.
No próximo Episódio
Seus músculos já estavam
prontos para explodir. Depois de semanas jogado no chão frio da delegacia,
estava de novo livre, em estado selvagem, ofegante, cheio de ódio. E de
medo.
Havia matado o motoboy, poucos instantes antes. Matar
era uma coisa que ele não fazia desde a última batalha de bandos da qual
participara. Mas, era evidente que não se esquecera como fazer. Para o
engenheiro das piscinas, o cadáver contorcido do motoboy era prova de que ele
não deveria subestimar aquele garoto.
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