terça-feira, 13 de setembro de 2016


EPISÓDIO 09


NO EPISÓDIO ANTERIOR
                De fato, era a primeira vez em muitos anos que alguém voltava a caminhar de mãos dadas pelos corredores daquele shopping. E chegando mesmo a parar nas vitrines que, entre um ou outro objeto quebrado, ou pedaço de roupa rasgado, tinha coisas para se olhar.
                - O pessoal costumava vir aqui... acho que de tarde... para fazer compras! Compras, sabe o que é isso? Quer dizer, tinha muitas coisas aí dentro dessas lojas. Daí,  escolhiam o que queriam nas vitrinas e levavam. Eu sei disso porque meu chefe... meu antigo chefe... o cara que me criou... Ele me contou. Morreu num desabamento, mas.., Olhe! Essa loja tinha coisas para comer. Tudo o que você quisesse comer, eles tinham. Era só pegar. Antigamente, era assim. Como é seu nome? Eu me chamo...





                Quando Liana sumia de vista, Úgui sabia onde encontrá-la. Estaria naquela loja, de onde, através do rombo, nos fundos, se podia enxergar a parte frontal do shopping. Ficava horas ali.
                - Cuidado para não verem você – preocupava-se Úgui. Tem uns túneis, mais para baixo, na rua. Os bichos-blindados passam por ele, quando vão e vem entre a orla do mar e este lado do morro. Foi pelo alto do morro que eu cheguei aqui. Podia vir pelo túnel,  mas é mais perigoso. Tava de noite. O que você fica vendo, lá fora? Fica procurando quem cuidava de você, não é? Quem era? Como foi que você se perdeu dele?
                Liana já havia acostumado o ouvido ao modo de falar de Úgui. Logo percebeu que não era nenhuma língua estranha. Apenas uma maneira diferente de pronunciar as palavras. Chiados e arrastados que ela não conhecia. Mas, teimava em não falar com ele. Resolvera que ainda não lhe daria essa confiança. Nem que fosse para irritá-lo. E quanto mais ele se enrolava, com seu silêncio, mas parecia à garota divertido aquele jogo. Fazia questão de que o garoto não percebesse se ela entendia ou não o que ele dizia.
                Tanto que quando Úgui perdia de vez a paciência e se afastava, afinal, ela ria sozinha. E Úgui cumprira a promessa de nunca mais bater nela.
                Outra das implicâncias de Liana com Úgui era entulhar a loja que lhes servia de abrigo com tudo o que coletava pelos corredores. Era o que fazia agora, em vez de deixar os objetos empilhados, nos corredores. Voltava de seus longos passeios pelo shopping invariavelmente carregada.
                - Mas, você só traz para casa coisa que a gente não vai precisar – desesperava-se Úgui. – Daqui a pouco, não vai ter mais espaço pra gente aqui dentro.
                Úgui tentou fazer um acordo com ela. Passou um dia inteiro retirando os destroços da loja vizinha, então anunciou:
                - A gente combina assim... Você deixa suas coisas na outra loja, tá?
                Como de hábito, a garota não se dignou de lhe dar resposta. Ignorou a loja reservada para a sua mania. Úgui então tentou outra tática: mudou o lar deles para a outra loja. Que o abrigo anterior ficasse como depósito de Liana. Também não adiantou. Mal se instalaram, Liana iniciou a mudança. Trouxe tudo para o novo lar.
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[09 ... continua]


                Enfim, Úgui entendeu que seria besteira tentar qualquer solução. Percebeu que já estava decidido quem mandava no abrigo.
                Entretanto, quando anunciou a Liana que ela poderia empilhar o que quisesse onde quisesse, “que ele não ia mais ligar”, a garota não se conteve. Começou a rir antes mesmo de lhe voltar as costas. E prontamente iniciou outra arrumação, levando a maior parte de suas coisas para o abrigo anterior, que passou a ser só dela.
                Úgui ficou absolutamente zonzo.
                Mas, havia uma coisa em Úgui que assustava Liana. E muito. Ele também tinha uma loja que era só dele. Era no segundo andar. Fechava-se ali dentro e havia proibido Liana de entrar. Ela sentiu que, pelo menos dessa vez, era melhor obedecer.
                Ele passava algum tempo lá todos os dias. E era o jeito dele, quando saía, que assustava Liana.
                O melhor, o jeito como olhava para ela.
                Liana chegava a pensar que, nessas ocasiões, Úgui estava com raiva dela. Que ele, de repente, descontrolado, iria pular sobre ela. E ficar em cima dela, batendo. Com raiva. Noutras vezes, sentia que não era bem raiva. Era outra coisa que não sabia dizer o que fosse.
                O que ela soube logo é que devia se afastar de Úgui, naqueles momentos. Ia então para o seu posto de observação e ficava lá, sozinha, até ele vir procurá-la. Então o olhar que lhe dava medo, no rosto do garoto, já havia desaparecido.
                - Você sabe o que é um fantasma? – perguntou Úgui, certa vez, indo ao seu encontro, naquela loja.
                Liana arregalou os olhos. Já havia lido histórias de fantasmas.
                Era uma reação dela, enfim. Úgui ficou satisfeito, animou-se.
                - Quando deu aquela loucura no pessoal de antigamente, muita gente morreu. Aqui mesmo neste shopping. Muita gente. Se você soubesse quanta ossada de gente morta tiveram de carregar e jogar fora! E tinhas as fogueiras. Queimaram gente morta. Muita gente... Só que não dava para catar tudo. Não tinha mais luz. Tinha lugares desabando. Teve as enxurradas de lama dos morros. Não dava. Muita gente ficou debaixo... da sujeirada, entende? Dos destroços. Pedaços de gente, soltos. Por aí tudo. E manchas de sangue velho. Muito sangue também. Não deu para limpar. Quem ia limpar? Daí, tem noite, que os mortos vêm buscar o que é deles. O que perderam por aí. Fantasmas. 

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[09... continua]

                Saíram da loja e encaminharam-se por um corredor mais destruído. Geralmente, não passavam por ali, mas Úgui queria mais ambiente, clima, para sua história...
                Era o que havia de sobra, em torno deles. Goteiras escondidas, pingando em poças oleosas. Vãos escuros. Paredes estalando sempre, sem conservação. Liana aproximou o corpo de Úgui, encostando-se nele, logo ela que  no máximo admitia lhe dar a mão – e somente durante os passeios.
                - Só tô falando nisso porque  vou precisar sair, entende? Não chove faz muito tempo. As latas que pus no telhado para recolher chuva estão quase vazias. A gente tá ficando sem água. Bem que eu avisei que você não tinha de gastar tanta água se lavando. E os banhos que você vive tomando? Bem, dane-se, agora.  Vou precisar catar água, lá fora. E vai ter de ser à noite. Você não vai ter medo de ficar aqui sozinha, vai?
                Úgui já tinha certeza de que Liana o entendia. Mas, não sabia ao certo se entendia tudo o que ele dizia. Ela entendia, sim. Mas, ainda não resolvera falar com ele.
                - Os fantasmas não vão aborrecer você – insistiu Úgui. - A não ser que você tenha guardado um pedaço deles, no meio dessas porcarias que catou por aí.
                A garota desferiu um forte soco nas costelas de Úgui, que gemeu, rindo, e protestou:
                - Ei! Sem pancada, lembra? Não pode bater! Vale pra mim e pra você também!
                Liana correu de volta para o seu posto de observação. Ficou em silêncio, esticando a vista para fora. Já estava anoitecendo, quando Úgui voltou para junto dela. Chegou rindo, mas a garota recebeu-o com um chute.
                De repente, os olhos de Úgui se contraíram, fixando um ponto distante no exterior através do rombo na parede. Ele agarrou Liana, puxando-a, e tapando sua boca. A garota já ia morder-lhe a mão, quando os avistou também.
                Lá fora, no alto de um morrote de lixo que dava para a frente do shopping. Era um grupo de seis ou sete garotos. Estavam apontando para o que fora a fachada do enorme prédio.
                - Estão explorando... vendo se acham alguma coisa... – disse Úgui. – Nem sabem que a gente existe, ou não iam se mostrar assim. Vão embora logo, se não acharem nenhuma entrada.
                A garota sentiu na pele a tensão que vinha de Úgui. O calor do corpo dele, acentuando-se, e o coração acelerado. O rosto dele se tornou duro, o olhar ficou agudo, cortante, as narinas se dilataram. Ele estava pronto para qualquer coisa agora. Pronto para lutar pela sua vida. E pela vida – ou pela posse – de Liana.
                Apesar de ser uma situação inédita para ela, Liana a entendeu com extrema nitidez.
                Com cuidado, ocultando-se sempre, Úgui avançou um pouco para fora do rombo na parede, de modo a poder examinar melhor os arredores. Liana aproximou o corpo do dele. Sem nem por um segundo perder de vista o inimigo, Úgui correspondeu  aos movimentos da garota envolvendo-a num abraço.

[Próximo Episódio... 08/fev]


NO PRÓXIMO EPISÓDIO
...Úgui soltou um suspiro e, enquanto a conduzia para a abertura por onde iriam deixar o shopping, recomendava a ela todos os cuidados que teriam de tomar.
                - Se o inimigo vier, deixa comigo e corre. Os garotos não podem pegar você, certo? A não ser que sejam muitos, daí você vai ter de me ajudar a brigar com eles. Ah, os bichos blindados... Fuja dos holofotes. Eles jogam os holofotes na gente, e depois as redes. Aí...

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