terça-feira, 13 de setembro de 2016

EPISÓDIO 16


No Episódio Anterior...
Ainda não obtivera dela nenhuma palavra. Nenhum agradecimento pelas regalias que lhe proporcionava. Nenhum pedido a mais, que ele ficaria feliz em escutar, e que usaria de todo o seu poder para satisfazer. Nada. Os momentos que passava ali eram de total silêncio.
O Supervisor sentia-se confuso, perdido. Já conseguira vencer a resistência de inúmeras “aquisições” com muito menos. 
E, daquela, nem conseguira sabia o nome...



A HORA DAS SOMBRAS
de

Luiz Antonio Aguiar



                                O comunicador no pulso do Supervisor vibrou suavemente. A reunião esperava por ele para começar. Ele pressionou um pequeno botão na microtela e disse, secamente:
                - Já vou!
                A seguir, retirou-se, sem dizer nada, nem voltar de novo os olhos para Liana. Por todo o tempo, a garota o havia ignorado. Não levantou sequer a cabeça do livro que estava lendo. Chokita, que estivera observando, entre idas e vindas para cuidar de seus afazeres, surgiu dos fundos do apartamento com cara de preocupação. Não se conformava com a atitude de Liana:
                - Patroa! – exclamou, reprendendo-a, logo ao entrar. Mas, Liana, iguialmente, ignorou-a. Choikita balançou a cabeça e disse: - Ele ainda vai se cansar dessa sua teimosia. Aí, a vida boa acaba. Para nós duas. O que ele está querendo que pode ser tão ruim assim para a senhora? Ele poderia forçar, entende? Não faz isso! Ele é bom!
                Liana engoliu em seco. Mas, conteve-se, não respondeu. Estava confusa. Percorreu a sala com os olhos, detendo-se na estante. Reconhecera aqueles livros. Lera alguns deles com seu pai, em voz alta, para ele escutar. Ou então ele é que os lera para ela. Eram momentos só deles, em que o pai parecia muito feliz. Apesar de, vez ou outra, ter se voltado subitamente para ele, ao pressentir que ele estava chorando. Mas, as lágrimas que desciam do rosto dele tinham uma estranha beleza. Eram lindas lágrimas.
                Feito as que escorreram pelas faces da garota, agora.  
                Que tinham como fundo, o seu sorriso.

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[16... continua]

                - Não é que as outras garotas passem fome aqui... Não! – insitia Chokita. –  Tanto que ninguém quer ir embora. Voltar pras ruas? Um pesadelo. Nem pensar.   E você não ia gostar do harém, patroa. Não tem o que tem aqui. Nem de longe! A senhora está querendo largar a sorte grande. E se for parar num centro de lazer, então? Pior ainda.  
                Liana mal a olhou. Chokita balançou a cabeça, resmungando. Retirou-se, então, por instantes, e retornou trazendo um dos presentes que o Supervisor dera a ela. Liana nunca a tocara, aquela blusa de seda vermelha e rendas, quase transparente. Por provocação, Chokita a deixou sobre um dos sofás da sala. Sempre que o Supervisor a prevenia que iria fazer uma visita, a garota insistia para que Liana a usasse.
                Daí, fazia questão de apregoar a maciez do tecido. Mas, Liana, invariavelmente, de tudo o que havia nos armários, apegara-se a uma calça jeans  desbotada, larga e confortável, tênis planos e camisetas básicas.
                Chokita se encarregara de explicar para Liana todas as comodidades que   havia naquele apartamento. Por exemplo, numa saleta anexa, enorme telão de tevê, que se abria como se planasse no ar acoplado ao som ambiente, brotando dos rodapés. O Condomínio colocava à disposição dos clientes cinco centenas de canais do mundo inteiro, além de uma imensa seleção de filmes e programação variada. Liana gostava de assistir aos desenhos animados e a algumas transmissões internacionais de esportes – mesmo sem entender a maioria dos jogos. E Chokita não perdia  a chance:
                - Antes de vir trabalhar para a senhora, eu nem sabia que tevê existia. No harém não tem disso. E na rua é pior. A gente passa fome. E fica doente, como quando a senhora chegou aqui.
                No terraço, a piscina  tinha regulagem de temperatura a gosto,  e podia receber água direto de uma cascata,  num jorro forte, espumoso, além do minitobogã e do maroleiro, para criar movimentos na superfície.
                O quarto tinha uma enorme cama redonda, com lençóis que deslizavam sobre a pele, e  espelhos nas paredes e no teto. Liana se sentia espiada ali. Por isso, às vezes, dormia sobre o tapete da sala, para horror de Chokita.  Havia ainda o programador de refeições, na tela do qual se poderiam encomendar diferentes pratos, de um cardápio que mudava toda semana. E ainda os diversos frigobares, um em cada ambiente, com sucos de frutas, refrigerantes, e os pratinhos de doces, bombons e balas, trocados diariamente. 
                - Nenhuma das outras garotas tem tanto luxo, patroa! E aí...? Gosta mais da rua, é?

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[16... continua]

                Liana sentia-se curiosa de ver tudo, experimentar tudo. Mas, continha-se. Não queria dar o braço a torcer.
                No entanto, havia os livros. Eram o tesouro que descobrira, naquela vida. Os livros encadernados pelo seu pai. Como se ela o tivesse reencontrado.
                - Acho que não precisa de muita coisa para deixar o Supervisor contente! Posso ensinar tudo a você. Sabe, é para isso que estou aqui.
                Liana jamais respondia, e Chokita impacientava-se...
                - Ora, não entendo você, patroa. Parece que gostava da rua. Nem quis jogar fora as roupas que estava vestindo, quando chegou aqui. Tudo rasgado. Tudo fedido. Tudo imundo! E a senhora guardou. Pra quê?  Olha esta blusa...! Por favor, patroa! É demais, não é? Queria tanto que fosse minha ...
                As roupas com que chegara. Ela as guardara emboladas, numa gaveta. Quase saíra no tapa com Chokita para impedir a garota de jogá-las fora.
                Ainda na delegacia, Liana recebera uma alta dosagem de antibióticos. Passara dois dias, estirada numa cela, delirando. Muita, muita febre. Muito, muito medo.
                Úgui.
                Não soubera mais de Úgui.
                A última lembrança que tinha do garoto era bastante vaga. Ele se abraçara a Liana, na delegacia. E a garota sentia dor no corpo inteiro, naquela  hora. As imagens da surra que Úgui levara eram quase um sonho. Não tinha certeza se aquilo tinha acontecido, ou não. Ela o vira apanhar, e sangrar, e continuarem a bater nele. A chutá-lo, mesmo imóvel. Inerte.
Úgui podia estar morto, ela não sabia. Mas, compreendeu que o punhal que encontrara enfiado no short só poderia ter sido posto ali por ele.
                O transporte até o condomínio havia sido feito na caçamba de um veículo fechado. Liana saltara na garagem subterrânea e dali fora levada para a sala de banhos. Uma ducha forte. A seguir, deram a Liana roupas bonitas, cheirosas, novas. Mas, a garota não largava as que viera vestindo. Chorava, mordia... Acabaram deixando que ficasse com elas. Ainda estava doente – um resto de febre, alguma fraqueza. Não eram as roupas que importavam, mas o punhal escondido no meio delas. Era a lembrança que ficara de Úgui.
                Da sala de banhos, foi conduzida para outra, um ambiente atapetado, deixado na penumbra. Não havia móveis. Ficou sozinha ali, diante de uma enorme vidraça, sentindo que a observavam, do outro lado. Encolheu-se, então, num canto, quieta. Poucas horas depois, estava instalada no apartamento da cobertura. 
                Chokita já a esperava. Apresentou-se, falava sem parar na sorte de Liana por estar ali. Liana decidiu que não conversaria com ela. Então, viu os livros na estante.

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[16...continua]

                O Supervisor apareceu no final daquele primeiro dia.  Ficou alguns minutos, calado, observando-a rearrumar os livros nas prateleiras, depois conversou alguma coisa com Chokita e foi embora. Voltaria no dia seguinte. E todos os dias, várias vezes por dia.
                Os livros faziam Liana sentir algo familiar à sua volta. Algo que pertencia à sua vida. Oi pelo menos, à vida que vivera até pouco tempo. Depois, o desaparecimento do pai, ela se sentindo abandonada, sozinha, indefesa, e mesmo assim precisando sair para as ruas, e deixar para trás sua casa... para sempre. O shopping, Úgui, momentos bons, momentos de medo. Havia o medo. Lembrava-se que ficara muito assustada quando começou a passar mal. Teve medo de morrer. Medo de que Úgui a abandonasse. Medo de que ele morresse e ela ficasse sem ninguém. Tudo, entre a casa onde vivera com o pai e o reencontro dos livros se resumiu de repente na sensação mais forte: medo.
                - Estou avisando, patroa! – insistiu Chokita. – Se a gente for para o harém, você vai ter saudade daqui. Bom como aqui, nunca mais! Isso, se não voltar pras ruas. Daí, é o inferno. Você não quer isso, quer, patroa?  Vai ser muita besteira, se jogar fora o que a sorte deu a senhora, sabia? Uma besteira enorme!
                Liana encarou Chokita com raiva. Então, apertou o livro no peito. Gostava dali. Tinha medo do Supervisor. Mas, não era um medo que ela não entendesse. De algo desconhecido, que pudesse acontecer de repente. Era um medo diferente. E se lhe tirassem os livros?...
                “Não!”, decidiu. “Não quero perder mais nada. Nunca mais!”.
                Chokita não acreditou quando a viu levantar-se, dirigir-se ao sofá e apanhar a blusa de seda vermelha. Experimentou-a no corpo. Viu como se sentia... Sim, estava decidida. Chokita começou a dar pulinhos e a bater palmas, entusiasmada.
                 Liana vestiu a blusa.
[Dia 29...Episódio 17]

No Próximo Episódio A Briga vai pegar de vez...
Sobre uma mesa, Zuca estava se contorcendo feito uma serpente, com o peito e o estômago varado de bala. Era inacreditável a quantidade de sangue que  jorrava de seus ferimentos. Junto da mesa, Zeromeia e Zerossix comentavam justamente isso, se perguntando quanto mais sangue o policial baleado poderia perder, quando Bazu debruçou-se sobre ele, os olhos esbugalhados, os punhos cerrados de fúria, a voz rouca:
                - O pessoal do Condomínio prometeu mandar um médico. Aguenta, Zuca. Só mais um pouco. Não me deixa! Somos a Grande Dupla, lembra?


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