EPISÓDIO 10
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Lá fora, no alto de um morrote de lixo que dava para
a frente do shopping. Era um grupo de seis ou sete garotos. Estavam apontando
para o que fora a fachada do enorme prédio.
- Estão explorando... vendo se acham alguma coisa...
– disse Úgui. – Nem sabem que a gente existe, ou não iam se mostrar assim. Vão
embora logo, se não acharem nenhuma entrada.
A garota sentiu na pele a tensão que vinha de Úgui. O
calor do corpo dele, acentuando-se, e o coração acelerado. O rosto dele se
tornou duro, o olhar ficou agudo, cortante, as narinas se dilataram. Ele estava
pronto para qualquer coisa agora. Pronto para lutar pela sua vida. E pela vida
– ou pela posse – de Liana.
Por
cautela, Úgui teria preferido não sair naquela noite. Os garotos que haviam
andado rondando o shopping poderiam voltar. E até mesmo trazer o resto do bando
com eles. Não sabiam o que havia por baixo dos destroços, das fachadas
desabadas, da grossa camada de lama descorada que recobria boa parte do
cenário. Mas, poderiam desconfiar. Quando se passa tempo o bastante nas ruas, e
explorando, ganha-se uma intuição especial para o que está por baixo,
invisível, daquilo que se pensa que se vê.
Era
assim com Úgui. Poderia ser assim com o chefe daquele bando, ou com algum de
seus guias.
Os
tesouros do shopping evitavam que tivesse grandes preocupações com comida. As
despensas arrombadas e os frigoríficos quebrados prometiam fornecer suprimentos
de sobra, para ele e Liana. Não precisaria nem sequer caçar. Mas, a água era um
problema.
Sabia
que o que pingava das infiltrações estava contaminado. Já vira muitos garotos
no bando ficarem doentes e morrerem por beber água suja, que praticamente
corria junto com o que sobrara dos esgotos. Nem para se lavar servia.
-
Se essa garota danada não cismasse de tomar tanto banho...
Encontrar
água limpa era sempre um problema para os bandos.
-
Não é à toa que os mendigos ficam à beira do mar...!
Tirar
o sal da água era uma operação meio complicada. Mas, Úgui sabia como fazer. Uma
panela grande para ferver a água. Uma tampa com um furo e um cano, por onde o
vapor passava, até um outro recipiente,
onde se resfriava e pingava, virando água de novo. O sal ficava no fundo da
primeira panela, e o processo também descontaminava a água. Não tinha gosto
muito bom, nem ia dar para os banhos de Liana...
-
Mas pelo menos a gente não fica com sede. Só que vou ter de ir até a praia. E
lá, preciso tomar cuidado com os mendigos. Quer dizer, a gente vai junto. Você
não vai querer ficar sozinha aqui à noite, vai?
<<<>>>
[10...
continua]
Liana
olhou-o, cheia de zanga. Não, não ia querer ficar sozinha, ali, à noite. E por
culpa dele. Por ele ter inventado aquelas histórias de fantasmas. Úgui tinha dito
depois que era tudo mentira. Mas, o medo ficara. A garota via todos os cantos
escuros já habitados por assombrações.
-
Tem uma coisa... – Úgui aprendera a decifrar os olhares dela. – Se quiser vir
comigo, vai ter de me dizer seu nome.
Liana
sacudiu a cabeça, negativamente.
-
Mas, até quando vai ficar sem falar? Até... ele
aparecer? Quem é ele? Quem você está esperando?
Liana
se levantou, como se fosse deixar Úgui falando sozinho. Sempre fazia isso,
quando o garoto começava a aborrecê-la. Mas, ele a deteve. Segurou-a
rispidamente, fazendo a garota cravar os olhos nele, com raiva.
-
Desculpa, desculpa... – gaguejou, largando-a. A garota esfregou os braços que o
aperto deixara doloridos. Úgui, ruborizado, insistiu: - Olha! Eu preciso saber o seu nome. Se a gente
se perder um do outro, vou precisar chamar por você.
Liana
ficou pensativa. Úgui esperou, impaciente, que ela se decidisse. De repente, a
garota deu um pulo contente, remexeu numa sacola em que guardava coisas que ia
catando nas lojas e tirou dali um pedaço
de giz amarelo. Na parede, rabiscou com letras enormes seu nome. Úgui sorriu,
satisfeito...
-
Li-a-na... Tá! Posso chamar você só de Li? Era o nome de uma roupa que o
pessoal de antigamente usava. Liii!
A
garota sacudiu a cabeça, irritada. Úgui soltou um suspiro e, enquanto a
conduzia para a abertura por onde iriam deixar o shopping, recomendava a ela
todos os cuidados que teriam de tomar.
-
Se o inimigo vier, deixa comigo e corre. Os garotos não podem pegar você,
certo? A não ser que sejam muitos, daí você vai ter de me ajudar a brigar com
eles. Ah, os bichos blindados... Fuja dos holofotes. Eles jogam os holofotes na
gente, e depois as redes. Aí...
<<<>>>
[10...continua]
Úgui
removeu a camuflagem da abertura. Já estavam carregados com as latas para
recolher água. Ele saiu na frente, olhou em todas as direções e voltou para
buscar a garota.
Mas,
Liana não se mexeu. Caprichosamente, ficou olhando para o chão, como se
esperasse que Úgui fizesse alguma coisa. Lembrou-se de uma foto que ele vira,
num dos livros restaurados pelo pai. Um casal caminhando numa praça.
-
Mas, o que deu em você? Vamos logo, Liana!
A
garota o empurrou de lado e enfiou um braço num dos braços de Úgui. Era assim
na foto, o casal de braços dados. Engatados como ela queria, Liana pulou na
frente, arrastando o garoto, feliz da vida,
-
Tá pensando que a gente vai passear, é?
Liana
não lhe deu a menor atenção. Durante o trajeto, o garoto desesperou-se várias
vezes com a falta de cuidado dela. Úgui vasculhava tudo ao seu redor com os
olhos, nervosamente, principalmente o alto dos monturos de lixo. A qualquer
momento, poderia saltar de um deles um punhado de garotos ferozes, que cairiam
sobre os dois, sem lhes dar chance de defesa, nem de fuga. Afinal, estavam em
território de ninguém, ou mesmo invadindo território de algum bando, sem saber.
Na lei dos bandos, o castigo para isso
era geralmente a morte.
Finalmente,
escutaram o barulho das ondas. Liana ficou emocionada. Tantas vezes, escutara o
pai falando com saudade sobre o mar, mas nunca o vira, a não ser em fotos, nos
livros. Lembrou-se de que o pai lhe contara que conhecera a mãe dela numa
praia...
-
Escuta...! Tem um acampamento de mendigos para lá! – disse Úgui, apontando na
direção de um vago clarão de fogueiras, junto da Pedra do Leme. - Mas, a esta hora, eles devem estar todos caídos de
bêbados. Passam o dia procurando cachaça e à noite, caem, chapados. Cachaça...?
É uma bebida de antigamente. Eu não gosto. Forte demais. Deixa a gente tonto.
Mas, vale mais do que comida para eles. Eles bebem álcool puro também. Bebem
tudo o que encontram. Os mendigos não pensam direito, entende? São...
estranhos. Mas, não vão nem nos perceber se a gente se arrastar pela areia sem
fazer barulho. Entendeu tudo?
Q
areia era enegrecida, coberta de lixo e da mesma gosma descorada das ruas. Os
pés afundavam, grudavam. E Liana somente obedeceu aos avisos de Úgui até
chegarem na faixa onde as ondas morriam. Então, não resistiu. Largou o braço dele
e se atirou no mar.
Úgui
engoliu o grito de espanto. Seu primeiro impulso foi arrancá-la da água pelos
cabelos e ainda lhe dar uns tapas, coisa que nunca mais fizera. Mas, deteve-se.
Liana rolava na água, rindo. Ele ainda não a havia visto rir.
O
garoto olhou em volta... Não havia mendigos vagando por perto. O acampamento
deles, mais longe, estava silencioso. Quando paravam de uivar era porque estavam
mesmo desacordados...
Liana
lançava água para o alto, mergulhava, deixava as ondas lavarem seu corpo... De
repente, voltou-se para Úgui e, com um sorriso, lhe estendeu a mão,
chamando-o...
Parecia
que o vulto escuro dos prédios, atrás deles, tinha ficado muito distante. E lá
haviam ficado também os bandos que poderiam ameaça-los. E os bichos-blindados,
com as sirenes que paralisavam a quem alcançassem, as luzes cortantes... E
todos os perigos do mundo. Parecia mesmo que ali, na beira do mar, era outro mundo.
Então...
- Sabia que o pessoal de antigamente vinha pra cá tomar banho... e sol? E
deitavam na areia. Não era areia suja, naquele tempo.
Nem
entrando na água, Úgui parava de falar. Mas, Liana não queria saber de
histórias. Empurrou-o e o garoto caiu de costas. Uma onda bateu sobre ele,
cobrindo-o. Úgui voltou à tona, cuspindo água. E saltou sobre a garota,
derrubando-a.
Os
dois caíram na água, rindo. Rindo juntos.
[Episódio 11... 15
de Fevereiro]
No Próximo Episódio
Liana não entendeu o que havia perturbado Úgui. O
rapaz estava tão contente, rindo com ela. Daí, a Lua saiu detrás de uma nuvem.
Estavam deitados na areia, com a água chegando, por vezes, aos seus pés. Então,
a Lua os iluminou em cheio – suas roupas molhadas, coladas ao corpo. E foi
quando a expressão do rosto do garoto se transformou.
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