quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O Triste Fim de Policarpo Quaresma

Adaptação em Graphic Novel/Quadrinhos
Roteiro: Luiz Antonio Aguiar
Imagens: César Lobo


DO CLÁSSICO AO HQ:
A Adaptação Autoral de uma Leitura da Obra-Prima de Lima Barreto

Comentário / Pós-Escrito

Luiz Antonio Aguiar






                O triste fim de Policarpo Quaresma (1911) me encanta. Há aspectos preciosos - tanto históricos, quanto culturais e humanos - a serem lidos (e pensados) nesse romance que é o mais conhecido, o mais popular e certamente a obra-prima de Lima Barreto .
A trama é ambientada no crítico período inicial  da República. Deodoro, que nunca fora um republicano, foi transformado em protagonista da Proclamação por manobras do grupo político que armou a derrubada da Monarquia (que, por sinal, enfraquecida, anêmica, precisou de pouco para ser expelida do palácio e do país) e a tomada do poder. Radicais idealistas, como Silva Jardim e Lopes Trovão, foram excluídos do processo, e a República demorou um quase nada para mostrar a que veio e ao que não veio, para desencantar (e trair) os mais apaixonados.
O Marechal renunciou antes de seu mandato completar dois anos. Pela Constituição em vigor, novas eleições deveriam ser convocadas. Mas, Deodoro tinha um Vice, Floriano Peixoto, que num golpe de estado assentou-se no poder e denominou-se presidente. Perseguiu, mandou assassinar, exilou, fez sumir, reprimiu, executou, debelou revoltas com sangue, ludibriou, mentiu. E foi com tais recursos que granjeou o apelido de Marechal de Ferro.
É justamente nesse momento da desilusão dos republicanos idealistas – como o personagem Policarpo Quaresma e o próprio Lima Barreto – e da repressão às tentativas de defender a Constituição, que se passa O triste Fim... O triste fim do personagem Policarpo, de um sonho, o da República, e o fim/extermínio físico de toda uma geração que se propunha a remover a Monarquia para mudar o país. Os intestinos do poder, os pequenos ditadores do interior, os aproveitadores de sempre, os que estão atentos às oportunidades e nunca perdem nomeações, os corruptos agregados aos empossados e à cata das sobras dos poderosos  – nada disso mudou, para desespero dos que sinceramente acreditaram que o país romperia o novo Século com uma vocação nova, progressista, iluminista, republicana.





Policarpo é um visionário. Sonha com um Brasil que construa uma nova identidade, nativista, consolidando o processo de Independência, iniciado décadas antes, e se desenvolva no projeto republicano mais avançado. Ilude-se, como muitos, com a presença forte dos militares, que se apresentam como fiadores desse ideal. E com a truculência inescrupulosa de Floriano Peixoto. Confunde-a com a autoridade que julgava necessária para limpar o país.
Tudo isso o leva ao seu triste fim. Ele seria o último idealista, a ainda acreditar nos arroubos iniciais da República, que jamais vingaram de fato, que jamais passaram de discurso e de entusiasmo de jovens, vendidos à malícia  dos arranjos palacianos e da alta caserna.  O lado quixotesco – acreditando e empenhando a sua vida numa República que jamais chegou a existir - de Policarpo Quaresma foi uma das conclusões – da leitura que Lobo e eu tiramos da obra, para adaptá-la. Ficou bem destacado nas citações de Doré em meio ao espetáculo icônico que é essa Graphic Novel.




O Quixote na sua Biblioteca, cercado dos personagens que lhe infundiam fantasias e aventuras, está lá. E também o mais épico, decidido, o heroico. A própria figura do Quaresma de Lobo é inspirada no Dom Quixote mais conhecido, o de Gustavo Doré.  



Assim como Quixote, Policarpo Quaresma mistura tragédia e humor – algo de certo modo, Machadiano, com sua galhofa + melancolia, igualmente cervanteana -; é impossível lê-lo a contento, se enxergarmos uma única faceta; ambas se fusionam. Ele voa, devaneia, celebra, ri, brinca, festeja, e aí carrega embutida a anunciada devastação da sua inocência:  sua tragédia.
Já aqui entregamos um dos princípios desta adaptação: seu caráter autoral.




Jamais pretendemos simplistamente transpor O triste fim de Policarpo Quaresma para essa Graphic Novel. Nunca nos resumiríamos a copiar o texto de Lima Barreto e dar—lhe um paste com desenhos, que o acompanhassem. Para nós, era necessário recriar a obra. Isso, por várias razões. Uma obra literária, vertida para os quadrinhos, tem de incorporar, generosa, harmônica e efusivamente os recursos dos quadrinhos. Aventurar-se neles, explorá-los, deixar o desafio dessa linguagem, dessa maneira diferente (que o autor original jamais concebeu, jamais previu) de contar a história se apossar do trabalho a ser realizado. Entram em cena a imagem, a dinâmica/narrativa dos cortes, dos enquadramentos – da decupagem, tudo isso.
Além do mais, nenhum texto traz em si todas as soluções para ser adaptado. É necessário interpretar, criar, arriscar-se a colocar nos HQs, sem medo, uma visão (pessoal) do personagem, da ambientação, da trama, de cada cena, de cada página e quadro. Senão, a adaptação não ganha vida.





Foi isso o que fizemos. A adaptação partiu de uma leitura, e foi essa leitura que foi quadrinizada. Foi o que virou história, cenas, quadros, closes e cenários, expressões de rosto de personagens, alguns diálogos, o silêncio – os rostos emudecidos, congestionados de emoções – toda a textura da composição, enfim...
Outro fundamento da nossa adaptação de O triste fim de Policarpo Quaresma foi destacar  alguns temas que nos cativaram. Houve aqui uma seleção, é claro, o que é mais um ingrediente autoral. Um deles é o da loucura. Quaresma passa uma temporada num asilo para doentes mentais, assim como Lima Barreto sofreu várias internações. Então, para descrevermos o hospício, o “cemitério de vivos”, como Lima Barreto o chama, num relato devastador sobre essa sua experiência, chamamos o próprio autor a uma participação especial na história em  quadrinhos, compondo o monólogo com as  as palavras de seu próprio texto .



Outro destaque para nós foi a discriminação contra o violão (representando aqui a aversão da cúpula golpista, inculta, algo grosseira, embora tenha tomado o poder,  contra a cultura; particularmente a local, dos subúrbios e ruas do centro do Rio. Tido como instrumento de “malandro”, a vizinhança de Policarpo se choca ao vê-lo tocar violão. Tanto quanto ao descobrir que ele possui muitos livros em casa – os vizinhos não podem entender para que alguém poderia querer tantos volumes, algo que consideram abusadamente suspeito. É na biblioteca da casa que Policarpo toma suas lições de violão com um artista boêmio, seu amigo. Policarpo considera o violão um instrumento tipicamente brasileiro, e por isso se dedica a tocá-lo. Mas, o violão de seu professor é quebrado por militares, durante uma caça que empreendem nas ruas, à cata de pessoas para alistarem à força. O violão se torna símbolo, na adaptação, da repressão da época, da rigidez que se tenta impor ao Brasil, ao Rio de Janeiro – totalmente diversa, oposta, inimiga da festa-pindorâmica em que Policarpo sonha transformar o país.





Também um elemento bastante importante para nós foi a atualidade de Policarpo Quaresma. Os ideais traídos, as reformas frustradas por grupos que manipulam as mudanças para que nada mude. Isso é tão evidente em Lima Barreto – e tão doloroso para nós, vivendo o Brasil de hoje –, que explode na última cena, justamente quando Policarpo, encontrando seu triste fim diante de um pelotão de fuzilamento, sobe ao céu, ou melhor, incorpora-se ao futuro de lutas populares que pontilharão a história brasileira.




E embora já se tenha neste comentário chegado ao final da história, restam ainda dois pontos, deixados para agora , propositalmente, com o fito de  destacá-los ainda mais. O primeiro é o belíssimo contraste entre três personagens femininos: Adelaide, Ismênia e Olga. Creio que podemos ler nessas três mulheres uma análise linda e dilacerante da posição da mulher na sociedade brasileira. São três tipos diferentes, embora, contracenando, componham um quadro tremendamente expressivo.
Adelaide, a irmã de Policarpo, tem como ambiente exclusivo o espaço doméstico, seu lar. Nunca é vista em cenas externas (já é assim na obra de Lima Barreto), na rua. Sua função é cuidar da casa e do irmão, tão prática, simplista e pé no chão como um Sancho Pança. É o passado, e não questiona sua posição. Tudo o que pede é que não alterem nada do pequeno mundo que lhe é dado viver.





Há a trágica Ismênia, filha de vizinhos de Policarpo. Ela inicia suas aparições ocupando, igualmente um espaço doméstico e buscando realizar-se nesse espaço. Está preparando seu enxoval. Mas, seu noivo tarda demais para marcar a data do casamento, ou seja, para confirmar o compromisso. Ela vai ficando, ficando, os parentes, principalmente o pai, lhe cobrando, como se fosse falha sua, que o rapaz não se decida. E, nessa agonia, ela se esfacela, enlouquece. Quando se convence de que o jovem não vai se casar com ela, e que assim ela não se realizará no ideal de mulher doméstica, caseira,  começa a vagar pela casa, delirante, até que se deixa morrer. E, numa cena final quase nelsonrodrigueana, a seu pedido, a vemos em seu caixão com seu vestido de noiva. É a mortalha (que envergou ainda em vida) com que será enterrada.




Seu martírio, em nossa adaptação, é simultâneo, paralelo, simbólico, do próprio martírio dos ideais republicanos. Da desilusão final de Policarpo – chocado com a brutalidade dos militares na repressão aos oposicionistas, com a mesquinhez e as traições de Floriano. O desespero íntimo, a morte moral de Policarpo, está em paralelo, numa página dupla (um close antológico de Cesar Lobo), com a  morte da noiva Ismênia. Ela é a República vislumbrada – por Policarpo e por Lima Barreto (que declarou na época que aquela não era a república dos seus sonhos); ou melhor, a República lesada, traída, assassinada. 






Enfim, temos Olga, a afilhada de Policarpo. Também tenta a vida convencional, o casamento seguro, a proteção do poder patricarcal, em que a moça é passada do pai para o marido, sem amadurecimento, nem atenuação da sua posição submissa. Ou assim deveria ser, mas não no caso de Olga, que não se adapta ao papel. Ela escapa ao confinamento doméstico tanto por ser mais culta, mais crítica, em virtude também de suas ligações com o padrinho, mas, primordialmente pelas cenas finais do drama.
Policarpo é sentenciado por traição – porque ousou denunciar abusos dos militares contra os rebeldes e a população -, e ela se apronta, aflita, para sair de casa e fazer uma desesperada tentativa, um apelo às autoridades que vão matar Policarpo, para que o poupem. Afinal, de traidor ele não tem nada; ele é honestidade, ideal, integridade, entrega pura. (Daí, a impossibilidade de ser digerido pela República.)
Olga resolve prostestar  a inocência do padrinho. Na porta, o marido tenta detê-la. Ele teme que ela atraia  ódio e vingança das autoridades. Além disso, se arroga a proibir que ela saia de casa e se exponha dessa maneira, publicamente. Chega a lhe dar um ultimato: ou ela desiste e fica em casa, ou que não volte mais.
E ela sai. Manda o marido pastar.  Vai ao palácio do presidente – que evidentemente não a recebe – e faz questão de colocar-se ao lado do tio, para despedir-se dele, antes do fuzilamento. Ganha o espaço público, assim, a rua, a dignidade, a afirmação de sua autonomia, como mulher, pessoa e cidadã, sua liberdade. É uma belíssima mulher anunciando os tempos modernos, que conquista sua nova posição no mundo como a antecipação de uma Pagu, de uma Tarsila do Amaral.




Vejam, portanto, que nada disso está evidente em Lima Barreto. Trata-se de leituras, interpretações justificadas (ou justificáveis) dentro da composição da obra, sim, claro, mas que, reunidas, destacadas dessa maneira, se tornam o que chamamos uma Adaptação Autoral. Finalmente, como suplemento à Graphic Novel, temos um making of no qual o leitor pode comparar três momentos importantes do trabalho de adaptação. Há um trecho do original de Lima Barreto, o mesmo trecho vertido para o roteiro de HQs e finalmente ganhando vida, nas imagens de Cesar Lobo. Uma curiosidade, mas também uma observação importante sobre entrecruzamento de linguagens e o espírito da adaptação.




Enfim, esse é o nosso trabalho em HQ. Espero que estes comentários tenham atiçado seu apetite para ler tanto a obra de Lima Barreto quanto nossa adaptação autoral.  Afinal, sermos lidos, termos leitores, cativá-los, entretê-los, contemplá-los por sua leitura, esse é o anseio maior de um trabalho como este que levou cerca de três anos para ser realizado.

Lima Barreto
                              1881-1922

Nenhum comentário:

Postar um comentário