O Triste Fim de Policarpo Quaresma
Adaptação em Graphic
Novel/Quadrinhos
Roteiro: Luiz Antonio
Aguiar
Imagens: César Lobo
DO CLÁSSICO AO HQ:
A Adaptação Autoral de uma Leitura da Obra-Prima de Lima Barreto
Comentário / Pós-Escrito
Luiz Antonio Aguiar
O triste fim de Policarpo Quaresma (1911) me
encanta. Há aspectos preciosos - tanto históricos, quanto culturais e humanos - a serem lidos (e pensados) nesse romance que é o mais conhecido, o mais popular e certamente a
obra-prima de Lima Barreto .
A trama é ambientada no crítico período
inicial da República. Deodoro, que nunca
fora um republicano, foi transformado em protagonista da Proclamação por
manobras do grupo político que armou a derrubada da Monarquia (que, por sinal,
enfraquecida, anêmica, precisou de pouco para ser expelida do palácio e do
país) e a tomada do poder. Radicais idealistas, como Silva Jardim e Lopes
Trovão, foram excluídos do processo, e a República demorou um quase nada para
mostrar a que veio e ao que não veio, para desencantar (e trair) os mais
apaixonados.
O Marechal renunciou antes de seu
mandato completar dois anos. Pela Constituição em vigor, novas eleições
deveriam ser convocadas. Mas, Deodoro tinha um Vice, Floriano Peixoto, que num
golpe de estado assentou-se no poder e denominou-se presidente. Perseguiu, mandou assassinar, exilou, fez sumir, reprimiu,
executou, debelou revoltas com sangue, ludibriou, mentiu. E foi com tais recursos
que granjeou o apelido de Marechal de
Ferro.
É justamente nesse momento da
desilusão dos republicanos idealistas – como o personagem Policarpo Quaresma e
o próprio Lima Barreto – e da repressão às tentativas de defender a
Constituição, que se passa O triste
Fim... O triste fim do personagem Policarpo, de um sonho, o da República, e
o fim/extermínio físico de toda uma geração que se propunha a remover a
Monarquia para mudar o país. Os intestinos do poder, os pequenos ditadores do
interior, os aproveitadores de sempre, os que estão atentos às oportunidades e
nunca perdem nomeações, os corruptos agregados aos empossados e à cata das
sobras dos poderosos – nada disso mudou,
para desespero dos que sinceramente acreditaram que o país romperia o novo
Século com uma vocação nova, progressista, iluminista, republicana.
Policarpo é um visionário. Sonha
com um Brasil que construa uma nova identidade, nativista, consolidando o
processo de Independência, iniciado décadas antes, e se desenvolva no projeto
republicano mais avançado. Ilude-se, como muitos, com a presença forte dos
militares, que se apresentam como fiadores desse ideal. E com a truculência
inescrupulosa de Floriano Peixoto. Confunde-a com a autoridade que julgava
necessária para limpar o país.
Tudo isso o leva ao seu triste fim. Ele seria o último idealista, a ainda acreditar nos
arroubos iniciais da República, que jamais vingaram de fato, que jamais
passaram de discurso e de entusiasmo de jovens, vendidos à malícia dos arranjos palacianos e da alta
caserna. O lado quixotesco – acreditando e empenhando a sua vida numa República que
jamais chegou a existir - de Policarpo Quaresma foi uma das conclusões – da
leitura que Lobo e eu tiramos da obra, para adaptá-la. Ficou bem destacado nas
citações de Doré em meio ao espetáculo icônico que é essa Graphic Novel.
O Quixote na sua Biblioteca, cercado
dos personagens que lhe infundiam fantasias e aventuras, está lá. E também o
mais épico, decidido, o heroico. A própria figura do Quaresma de Lobo é
inspirada no Dom Quixote mais conhecido, o de Gustavo Doré.
Assim como Quixote, Policarpo
Quaresma mistura tragédia e humor – algo de certo modo, Machadiano, com sua galhofa + melancolia, igualmente cervanteana -; é impossível lê-lo a
contento, se enxergarmos uma única faceta; ambas se fusionam. Ele voa,
devaneia, celebra, ri, brinca, festeja, e aí carrega embutida a anunciada
devastação da sua inocência: sua
tragédia.
Jamais pretendemos simplistamente
transpor O triste fim de Policarpo
Quaresma para essa Graphic Novel. Nunca nos resumiríamos a copiar o texto
de Lima Barreto e dar—lhe um paste com desenhos,
que o acompanhassem. Para nós, era necessário recriar a obra. Isso, por várias
razões. Uma obra literária, vertida para os quadrinhos, tem de incorporar,
generosa, harmônica e efusivamente os recursos dos quadrinhos. Aventurar-se
neles, explorá-los, deixar o desafio dessa linguagem, dessa maneira diferente
(que o autor original jamais concebeu, jamais previu) de contar a história se
apossar do trabalho a ser realizado. Entram em cena a imagem, a dinâmica/narrativa
dos cortes, dos enquadramentos – da decupagem, tudo isso.
Além do mais, nenhum texto traz
em si todas as soluções para ser adaptado. É necessário interpretar, criar, arriscar-se
a colocar nos HQs, sem medo, uma visão (pessoal) do personagem, da ambientação,
da trama, de cada cena, de cada página e quadro. Senão, a adaptação não ganha vida.
Foi isso o que fizemos. A
adaptação partiu de uma leitura, e foi essa leitura que foi quadrinizada. Foi o que virou história,
cenas, quadros, closes e cenários, expressões de rosto de personagens, alguns
diálogos, o silêncio – os rostos emudecidos, congestionados de emoções – toda a
textura da composição, enfim...
Outro fundamento da nossa
adaptação de O triste fim de Policarpo
Quaresma foi destacar alguns temas que nos cativaram. Houve aqui uma
seleção, é claro, o que é mais um ingrediente autoral. Um deles é o da loucura.
Quaresma passa uma temporada num asilo para doentes mentais, assim como Lima
Barreto sofreu várias internações. Então, para descrevermos o hospício, o “cemitério de vivos”, como
Lima Barreto o chama, num relato devastador sobre essa sua experiência,
chamamos o próprio autor a uma participação especial na história em quadrinhos, compondo o monólogo com as as palavras de seu próprio texto .
Outro destaque para nós foi a discriminação
contra o violão (representando aqui a aversão da cúpula golpista, inculta, algo grosseira, embora tenha tomado o poder, contra a cultura; particularmente a local, dos subúrbios e
ruas do centro do Rio. Tido como instrumento de “malandro”, a vizinhança de
Policarpo se choca ao vê-lo tocar violão. Tanto quanto ao descobrir que ele possui
muitos livros em casa – os vizinhos não podem entender para que alguém poderia
querer tantos volumes, algo que consideram abusadamente suspeito. É na biblioteca da casa que Policarpo toma suas lições de
violão com um artista boêmio, seu amigo. Policarpo considera o violão um
instrumento tipicamente brasileiro, e por isso se dedica a tocá-lo. Mas, o
violão de seu professor é quebrado por militares, durante uma caça que
empreendem nas ruas, à cata de pessoas para alistarem à força. O violão se torna
símbolo, na adaptação, da repressão da época, da rigidez que se tenta impor ao
Brasil, ao Rio de Janeiro – totalmente diversa, oposta, inimiga da festa-pindorâmica em que Policarpo sonha
transformar o país.
Também um elemento bastante
importante para nós foi a atualidade de Policarpo Quaresma. Os ideais traídos,
as reformas frustradas por grupos que manipulam as mudanças para que nada mude.
Isso é tão evidente em Lima Barreto – e tão doloroso para nós, vivendo o Brasil
de hoje –, que explode na última cena, justamente quando Policarpo, encontrando
seu triste fim diante de um pelotão
de fuzilamento, sobe ao céu, ou melhor, incorpora-se ao futuro de lutas
populares que pontilharão a história brasileira.
E embora já se tenha neste
comentário chegado ao final da história, restam ainda dois pontos, deixados para
agora , propositalmente, com o fito de destacá-los
ainda mais. O primeiro é o belíssimo contraste entre três personagens
femininos: Adelaide, Ismênia e Olga. Creio que podemos ler nessas três mulheres
uma análise linda e dilacerante da posição da mulher na sociedade brasileira. São
três tipos diferentes, embora, contracenando, componham um quadro
tremendamente expressivo.
Adelaide, a irmã de Policarpo,
tem como ambiente exclusivo o espaço doméstico, seu lar. Nunca é vista em cenas
externas (já é assim na obra de Lima Barreto), na rua. Sua função é cuidar da
casa e do irmão, tão prática, simplista e pé no chão como um Sancho Pança. É o
passado, e não questiona sua posição. Tudo o que pede é que não alterem nada do
pequeno mundo que lhe é dado viver.
Há a trágica Ismênia, filha de
vizinhos de Policarpo. Ela inicia suas aparições ocupando, igualmente um espaço
doméstico e buscando realizar-se nesse espaço. Está preparando seu enxoval. Mas,
seu noivo tarda demais para marcar a data do casamento, ou seja, para confirmar
o compromisso. Ela vai ficando, ficando, os parentes, principalmente o pai, lhe
cobrando, como se fosse falha sua, que o rapaz não se decida. E, nessa agonia,
ela se esfacela, enlouquece. Quando se convence de que o jovem não vai se casar
com ela, e que assim ela não se realizará no ideal de mulher doméstica,
caseira, começa a vagar pela casa, delirante, até que se deixa morrer. E,
numa cena final quase nelsonrodrigueana, a seu pedido, a vemos em seu caixão com
seu vestido de noiva. É a mortalha (que envergou ainda em vida) com que será
enterrada.
Seu martírio, em nossa adaptação,
é simultâneo, paralelo, simbólico, do próprio martírio dos ideais republicanos.
Da desilusão final de Policarpo – chocado com a brutalidade dos militares na
repressão aos oposicionistas, com a mesquinhez e as traições de Floriano. O
desespero íntimo, a morte moral de Policarpo, está em paralelo, numa página
dupla (um close antológico de Cesar Lobo), com a morte da noiva Ismênia. Ela é a República vislumbrada
– por Policarpo e por Lima Barreto (que declarou na época que aquela não era a república dos seus sonhos); ou melhor, a República lesada, traída, assassinada.
Enfim, temos Olga, a afilhada de
Policarpo. Também tenta a vida convencional, o casamento seguro, a proteção do
poder patricarcal, em que a moça é passada do pai para o marido, sem
amadurecimento, nem atenuação da sua posição submissa. Ou assim deveria ser,
mas não no caso de Olga, que não se adapta ao papel. Ela escapa ao confinamento doméstico tanto por ser mais culta, mais crítica, em virtude também de suas ligações com o
padrinho, mas, primordialmente pelas cenas finais do drama.
Policarpo é sentenciado por traição – porque ousou denunciar abusos
dos militares contra os rebeldes e a população -, e ela se apronta, aflita, para
sair de casa e fazer uma desesperada
tentativa, um apelo às autoridades que vão matar Policarpo, para que o poupem. Afinal,
de traidor ele não tem nada; ele é honestidade, ideal, integridade, entrega pura. (Daí, a impossibilidade de ser digerido pela República.)
Olga resolve prostestar a inocência do padrinho. Na porta, o marido tenta detê-la. Ele teme que ela atraia ódio e vingança das autoridades. Além disso, se arroga a proibir que ela saia de casa e se exponha dessa maneira, publicamente. Chega a lhe dar um ultimato: ou ela desiste e fica em casa, ou que não volte mais.
Olga resolve prostestar a inocência do padrinho. Na porta, o marido tenta detê-la. Ele teme que ela atraia ódio e vingança das autoridades. Além disso, se arroga a proibir que ela saia de casa e se exponha dessa maneira, publicamente. Chega a lhe dar um ultimato: ou ela desiste e fica em casa, ou que não volte mais.
E ela sai. Manda o marido
pastar. Vai ao palácio do presidente –
que evidentemente não a recebe – e faz questão de colocar-se ao lado do tio,
para despedir-se dele, antes do fuzilamento. Ganha o espaço público, assim, a
rua, a dignidade, a afirmação de sua autonomia, como mulher, pessoa e cidadã,
sua liberdade. É uma belíssima mulher anunciando os tempos modernos, que conquista sua nova
posição no mundo como a antecipação de uma Pagu, de uma Tarsila do Amaral.
Vejam, portanto, que nada disso
está evidente em Lima Barreto. Trata-se de leituras, interpretações
justificadas (ou justificáveis) dentro da composição da obra, sim, claro, mas
que, reunidas, destacadas dessa maneira, se tornam o que chamamos uma Adaptação Autoral. Finalmente, como
suplemento à Graphic Novel, temos um making
of no qual o leitor pode comparar três momentos importantes do trabalho de
adaptação. Há um trecho do original de Lima Barreto, o mesmo trecho vertido
para o roteiro de HQs e finalmente ganhando vida, nas imagens de Cesar Lobo.
Uma curiosidade, mas também uma observação importante sobre entrecruzamento de linguagens e o espírito da adaptação.
Enfim, esse é o nosso trabalho em
HQ. Espero que estes comentários tenham atiçado seu apetite para ler tanto a
obra de Lima Barreto quanto nossa adaptação autoral. Afinal, sermos lidos, termos leitores,
cativá-los, entretê-los, contemplá-los por sua leitura, esse é o anseio maior de
um trabalho como este que levou cerca de três anos para ser realizado.
1881-1922
Nenhum comentário:
Postar um comentário