terça-feira, 13 de setembro de 2016

EPISÓDIO 05 

(No Final do Episódio Anterior...)


Úgui se arrastou para longe dos holofotes e da metralha, que não se cansava de morder a noite. Seu chefe bem que lhe dissera que um dia ia precisar de um lugar só seu. “Pra ver como é sem o bando, entendeu?”. Não, não entendera. Nascera e vivera sempre no bando. Na época, não conseguia imaginar sendo qualquer coisa sem o bando. Agora, ia ter de aprender.
“ E se... meu chefe não sabia todas as respostas? Eu tive de fingir que sabia. Vai ver, ele fingiu também... ”




A HORA DAS SOMBRAS 

               
                O pessoal da Delegacia  Setor 12 costumava chamá-los de “Os Malucões”.  Já eles se chamavam de “A Grande Dupla”.
                Eram quase sempre os primeiros a chegar aos locais de conflito. E sempre ultrapassavam os turnos obrigatórios de serviço. Esticavam suas patrulhas. E isso porque adoravam percorrer a sua “zona de caça”, como a chamavam, em seu blindado. E, mais ainda, Zuca e Bazu gostavam da companhia um do outro. 
                Zuca era mais jovem. Seu posto era na torre, operando o holofote, o canhão da rede e a metralhadora. Tinha uma pontaria nervosa, dispersa. Mas, gostava de apertar os disparadores. Além da arma na torre, tinha a sua metralhadora portátil, para quando saía do blindado, em ocasiões especiais.
                Bazu era o veterano da Delegacia.  Cuidava das comunicações e pilotava o blindado. Era famosa a facilidade com que guiava por entre os monturos mais altos e íngremes, pressentindo as fossas movediças, e atravessando em velocidade as crateras.
                - É o único jeito de pegar os pivetes! – dizia. – Depois que enxergam nossas luzes, enfiam-se em suas tocas. Somem! Precisamos ser rápidos.
                As demais equipes reclamavam que um ataque deveria ser uma operação de equipe. Que, se os veículos dessem o bote juntos, cercariam as presas e haveria capturas para todo mundo. Do jeito como Zuca e Bazu se lançavam à frente, afugentavam os bandos, que conseguiam se dispersar. Além disso, queixavam-se dos dedos soltos de Zuca, na metralhadora da torre.
                - Não estamos na rua por diversão! – argumentavam. – Ninguém compra pivetes mortos!
                No entanto, jamais abriam a boca para criticá-lo cara a cara. Ou para falar mal de um na frente do outro.
                Zuca era um jovem corpulento, talvez exageradamente grande para caber na apertada cabine da torre. Piscava os olhos sem parar, ria meio descontrolado, e quando fazia isso esfregava compulsivamente  sua metralhadora portátil, pressionando-a contra o baixo ventre. Muitos colegas da delegacia teriam se recusado a tê-lo com o parceiro.
Ainda mais confinados dentro de um blindado, sob calor infame, submetidos ao abafamento do ar e ao fedor das ruas, à névoa que fazia os olhos, narinas, garganta e pulmões arderem.
                Frequentemente, os demais tiras da Delegacia 12 pediam a Bazu para controlar seu parceiro. Mas, o veterano se limitava a dar gargalhadas. Não via nada de errado com Zuca. Se ele dava calafrios em seus colegas, “era porque aqueles moleirões não estavam nas ruas nos velhos tempos,  quando a coisa pegou pra valer!”.
                 E exigia:
                 - Deixem o garoto em paz! E daí se ele cantarola, quando está disparando sua metralhadora? É um cara feliz! Que tem de mal nisso?
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(05 ... continuação)

                Naquela noite, Bazu estava mais feliz ainda com seu parceiro. Afinal, ele havia lançado a rede com precisão. Uma garota e um garoto.  Os dois estavam de olhos arregalados, apavorados, abraçados, chorando baixinho. O garoto protegia a cabeça da garota no peito, evitando olhar para seus captores.
                - E aí? – indagou Zuca.
                - Ninguém vai poder reclamar desta vez – disse Bazu, satisfeito. – Estão vivos. Debaixo da sujeira, são bonitinhos. Sem cicatrizes no rosto, Nenhum olho furado. Só estão muito magros.
                - Hum... – grunhiu Zuca.
                - Duas semanas de engorda na delegacia, antes de passar ao comprador do Condomínio. Daí, a grana melhora.
                - Hum... – grunhiu de novo Zuca.
                - O que foi? Não gosta mais de dinheiro?
                - Hum... – fez o operador da torre mais uma vez. – Estavam correndo de mãos dadas.
                -   Ah, é? – exclamou Bazu, contrariado. Então, agachou-se junto à garota e apalpou seu ventre. – Não, sem barriga. Mas, podemos fazer um teste na delegacia. Se estiver grávida, ainda vai estar no início. Daí, damos um jeito. – A seguir sorriu de novo e disse, tentando animar o parceiro: - Foi um belo arremesso de rede, garoto!
                Zuca sorriu, enfim. Adorava, quando Bazu elogiava sua habilidade com o equipamento. O casal adolescente continuava choramingando, ambos tremendo, abraçados.
                - A gente podia tentar arrancar deles mais alguma coisa. O esconderijo do bando deve ser aqui por perto.
                  - É a tal história, Zuca... Até a gente conseguir entender esse dialeto cretino que eles falam, vão ter evacuado o lugar. Eles se mudam depressa. Já nasceram nessas ruas, os desgraçados. Conseguem se esconder como baratas!
                - Não acertei nenhum hoje... – lamentou Zuca.
                - Mas, capturamos  esses dois – replicou Bazu, algemando o garoto e a garota a uma trave metálica.
                - Hum! ...
                - Olha você de novo, Zuca!
                - É que eu queria tanto... ter estado lá! – disse Zuca, piscando depressa.
                - Ah,  que cisma! Você era criança, quando a coisa aconteceu!
                - Conta...
                - Bem, a cidade enlouqueceu! Sabe, como é...
                - Não sei... – disse Zuca, olhando para baixo, com a voz embargada. – Mas, deve ter sido demais! Você teve... alguma ocorrência aqui?
                - Aqui, na orla marítima? Mas, claro. Ainda havia montes de gente nas ruas. Por toda a parte, havia... muita gente. Todos loucos! Quebrando tudo. Saqueando as lojas. Gente que era normal, pai, mãe, madrinha, filho de alguém... Pegando o que podiam. Água, roupas, comida. Nem viam o que pegavam. Precisavam ser contidos. Eram nossas ordens! De qualquer jeito, a gente precisava acabar com aquilo!

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(05... continuação)

O rádio do veículo os interrompeu. Outros blindados vinham chegando. Até mesmo de uma delegacia vizinha.
                - Esses espertalhões! – reclamou Zuca. – Querendo faturar no nosso território!
                Houve uma breve discussão sobre jurisdição. Outros reclamavam do açodamento da Grande Dupla. Zuca não prestava atenção na transmissão. Já esfregava sua metralhadora na virilha. Olhos piscando rápido, febril, imaginava as cenas que seu parceiro mencionara.
                - A choradeira de sempre! – disse Bazu, desligando o rádio. Se quisessem continuar a reclamar, agora, ninguém os escutaria. Não naquele blindado. Deu partida no veículo, enquanto Zuca punha os olhos, suplicantes, sobre ele.
                - Conta mais! -  disse Zuca.
                - Olha, bem aqui... – disse Bazu, apontando um ponto no mapa cortado por coordenadas, na sua tela. Ficava a dois quarteirões dali, descendo o que fora aquela avenida.  – Havia uma loja de guarda-chuvas nessa esquina. Já imaginou, no meio daquela zorra e gente quebrando uma vitrina para roubar guarda-chuvas? Mas, aconteceu. Eles invadiam tudo. Ficaram doidos. Eu me lembro bem... Botei abaixo a fachada da loja, com os vagabundos lá dentro. Naquele tempo, eu operava a bazuca. Na torre. Como você, hoje em dia, garoto! Eu era muito bom. Como você!
                - E tinha.,.. muita gente dentro da loja? – perguntou Zuca, ofegante.
                - Tinha. Muita gente, sim. Tinha. E gente em volta do blindado, também. Meu parceiro é que era o piloto. Teve de sair pela comporta e ficou em cima do veículo, disparando o lança-chamas.
                - Lança-Chamas...? – quis confirmar Zuca.
                - É... Pra acabar com a bagunça, não fizeram economia. Davam lança-chamas pra gente, na época.
                - Lança-chamas... – repetiu Zuca.
                - Tivemos de abrir caminho, na multidão. Estavam furiosos com a gente.
                - Queria.. .ter estado lá.
                Zuca deixou os ombros caírem, deprimido. Depois, içou-se até a torre, debruçou sobre a metralhadora e começou a chorar e a soluçar. Embaixo, Bazu tentava consolá-lo:
                - Mas, garoto! Como você podia ter estado lá? Escute... tive uma ideia... Já ganhamos o nosso por hoje, não é? E se a gente desse uma rodada pela beira da praia.
                Zuca riu nervosamente, em resposta, e recompôs-se. Pouco depois, o veículo descia para a areia da praia, rolando lentamente em suas esteiras,e com faróis  apagados.  Foi Zuca quem avistou o clarão a alguma distância e deu o aviso:
                - Ali! Tem um acampamento.
                Zuca acendeu os holofotes.  Bazu acelerou o veículo ao máximo, arremessando-o num solavanco à frente. Logo vencia a duna que os separava do alvo. Os mendigos já estavam desfalecidos, bêbados, esparramados, ao redor da fogueira. Uma tribo das grandes. A metralhadora começou a fazer a areia crepitar. Eram uivos, gemidos. Muitos tentaram se erguer. E  a maioria foi atingida pelos disparos sem sequer se dar conta do que estava acontecendo.
                - A granada, Zuca! Joga a granada!
                Haviam comprado a peça no mercado negro da polícia e a estavam guardando para uma situação especial. Zuca abriu a comporta da torre e arremessou a granada, mergulhando a seguir de volta no interior do blindado, para escapar dos estilhaços. Um clarão alaranjado e a expansão súbita, fervente, do ar, envolveu o veículo. 
                - Dizem que dá azar matar esses dementes, Bazu! – disse o operador da torre, ao cair junto do colega, que o recebeu num abraço, sorridente:
                - O pessoal naqueles dias também estava louco, Zuca!  Matei dezenas! Centenas!  Vão dizer que tive azar por isso? Como, se   agora ganhei o parceiro perfeito?
                De tão contente, lágrimas vieram aos olhos de Zuca. Mas, seu parceiro mais velho já não se continha. Agarrou a metralhadora portátil e saiu pela escotilha para apreciar a cena, os cadáveres, os feridos se arrastando pela areia ... Espremidos um contra o outro, no interior do veículo, o casal de prisioneiros chorava, apavorado. Lá fora, o matraquear da metralhadora, dissparada por Bazu, era alto, mas não o bastante para abafar a poderosa voz dos policiais entoando sua versão particular do Hino da Força Policial:
                - Somos mais que piratas! Muito mais que caubóis! Somos a Grande Dupla!
               
(Episódio 06 ... no ar em 11/01)


(Aperitivo do Próximo Episódio)

               
                O pai de Liana era encadernador de livros e restaurador de volumes antigos. A oficina, com cheiro de gesso e cola, e o quartinho atrás, com a cama e o pequeno fogareiro, eram o mundo que ele permitira a Liana conhecer.
                A oficina não tinha janelas para a rua. Ficava nos fundos de um sobrado, que já era antigo na época em que a cidade ainda tinha vida. A fachada estava desabada, mas, a parte  oculta das ruas era habitável.
                Por vezes, o pai levava Liana por uma passagem lateral estreita e, indicando uma escada de degraus de cimento, que descia até um portão de ferro, sempre fechado, dizia, com lágrimas nos olhos:

                - Foi por ali que sua mãe saiu, naquele dia. Ela nunca mais voltou. Nós três poderíamos ter vivido aqui para sempre, escondidos. Mas, ela não aguentou. Saiu por aquela porta. Nunca atravesse aquela porta, minha filha! 

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