EPISÓDIO 05
(No Final do Episódio Anterior...)
(No Final do Episódio Anterior...)
Úgui se arrastou
para longe dos holofotes e da metralha, que não se cansava de morder a noite.
Seu chefe bem que lhe dissera que um dia ia precisar de um lugar só seu. “Pra
ver como é sem o bando, entendeu?”. Não, não entendera. Nascera e vivera sempre
no bando. Na época, não conseguia imaginar sendo qualquer coisa sem o bando.
Agora, ia ter de aprender.
“ E se... meu
chefe não sabia todas as respostas? Eu tive de fingir que sabia. Vai ver, ele
fingiu também... ”
A HORA DAS SOMBRAS
O
pessoal da Delegacia Setor 12 costumava chamá-los de “Os Malucões”.
Já eles se chamavam de “A Grande Dupla”.
Eram
quase sempre os primeiros a chegar aos locais de conflito. E sempre
ultrapassavam os turnos obrigatórios de serviço. Esticavam suas patrulhas. E
isso porque adoravam percorrer a sua “zona de caça”, como a chamavam, em seu
blindado. E, mais ainda, Zuca e Bazu gostavam da companhia um do outro.
Zuca
era mais jovem. Seu posto era na torre, operando o holofote, o canhão da rede e
a metralhadora. Tinha uma pontaria nervosa, dispersa. Mas, gostava de apertar
os disparadores. Além da arma na torre, tinha a sua metralhadora portátil, para
quando saía do blindado, em ocasiões especiais.
Bazu
era o veterano da Delegacia. Cuidava das
comunicações e pilotava o blindado. Era famosa a facilidade com que guiava por
entre os monturos mais altos e íngremes, pressentindo as fossas movediças, e
atravessando em velocidade as crateras.
-
É o único jeito de pegar os pivetes! – dizia. – Depois que enxergam nossas
luzes, enfiam-se em suas tocas. Somem! Precisamos ser rápidos.
As
demais equipes reclamavam que um ataque deveria ser uma operação de equipe.
Que, se os veículos dessem o bote juntos, cercariam as presas e haveria
capturas para todo mundo. Do jeito como Zuca e Bazu se lançavam à frente,
afugentavam os bandos, que conseguiam se dispersar. Além disso, queixavam-se
dos dedos soltos de Zuca, na metralhadora da torre.
-
Não estamos na rua por diversão! – argumentavam. – Ninguém compra pivetes
mortos!
No
entanto, jamais abriam a boca para criticá-lo cara a cara. Ou para falar mal de
um na frente do outro.
Zuca
era um jovem corpulento, talvez exageradamente grande para caber na apertada
cabine da torre. Piscava os olhos sem parar, ria meio descontrolado, e quando
fazia isso esfregava compulsivamente sua
metralhadora portátil, pressionando-a contra o baixo ventre. Muitos colegas da
delegacia teriam se recusado a tê-lo com o parceiro.
Ainda mais
confinados dentro de um blindado, sob calor infame, submetidos ao abafamento do
ar e ao fedor das ruas, à névoa que fazia os olhos, narinas, garganta e pulmões
arderem.
Frequentemente,
os demais tiras da Delegacia 12 pediam a Bazu para controlar seu parceiro. Mas,
o veterano se limitava a dar gargalhadas. Não via nada de errado com Zuca. Se
ele dava calafrios em seus colegas, “era porque aqueles moleirões não estavam
nas ruas nos velhos tempos, quando a
coisa pegou pra valer!”.
E exigia:
- Deixem o garoto em paz! E daí se ele
cantarola, quando está disparando sua metralhadora? É um cara feliz! Que tem de
mal nisso?
<<<>>>
(05 ... continuação)
Naquela
noite, Bazu estava mais feliz ainda com seu parceiro. Afinal, ele havia lançado
a rede com precisão. Uma garota e um garoto.
Os dois estavam de olhos arregalados, apavorados, abraçados, chorando
baixinho. O garoto protegia a cabeça da garota no peito, evitando olhar para
seus captores.
-
E aí? – indagou Zuca.
-
Ninguém vai poder reclamar desta vez – disse Bazu, satisfeito. – Estão vivos. Debaixo
da sujeira, são bonitinhos. Sem cicatrizes no rosto, Nenhum olho furado. Só
estão muito magros.
-
Hum... – grunhiu Zuca.
-
Duas semanas de engorda na delegacia, antes de passar ao comprador do
Condomínio. Daí, a grana melhora.
-
Hum... – grunhiu de novo Zuca.
-
O que foi? Não gosta mais de dinheiro?
-
Hum... – fez o operador da torre mais uma vez. – Estavam correndo de mãos
dadas.
-
Ah, é? – exclamou Bazu, contrariado.
Então, agachou-se junto à garota e apalpou seu ventre. – Não, sem barriga. Mas,
podemos fazer um teste na delegacia. Se estiver grávida, ainda vai estar no
início. Daí, damos um jeito. – A seguir sorriu de novo e disse, tentando animar
o parceiro: - Foi um belo arremesso de rede, garoto!
Zuca
sorriu, enfim. Adorava, quando Bazu elogiava sua habilidade com o equipamento.
O casal adolescente continuava choramingando, ambos tremendo, abraçados.
-
A gente podia tentar arrancar deles mais alguma coisa. O esconderijo do bando
deve ser aqui por perto.
- É a
tal história, Zuca... Até a gente conseguir entender esse dialeto cretino que
eles falam, vão ter evacuado o lugar. Eles se mudam depressa. Já nasceram
nessas ruas, os desgraçados. Conseguem se esconder como baratas!
-
Não acertei nenhum hoje... – lamentou Zuca.
-
Mas, capturamos esses dois – replicou Bazu,
algemando o garoto e a garota a uma trave metálica.
-
Hum! ...
-
Olha você de novo, Zuca!
-
É que eu queria tanto... ter estado lá! – disse Zuca, piscando depressa.
-
Ah, que cisma! Você era criança, quando
a coisa aconteceu!
-
Conta...
-
Bem, a cidade enlouqueceu! Sabe, como é...
-
Não sei... – disse Zuca, olhando para baixo, com a voz embargada. – Mas, deve
ter sido demais! Você teve... alguma ocorrência aqui?
-
Aqui, na orla marítima? Mas, claro. Ainda havia montes de gente nas ruas. Por
toda a parte, havia... muita gente. Todos loucos! Quebrando tudo. Saqueando as
lojas. Gente que era normal, pai, mãe, madrinha, filho de alguém... Pegando o
que podiam. Água, roupas, comida. Nem viam o que pegavam. Precisavam ser
contidos. Eram nossas ordens! De qualquer jeito, a gente precisava acabar com
aquilo!
<<<>>>
(05... continuação)
O rádio do
veículo os interrompeu. Outros blindados vinham chegando. Até mesmo de uma
delegacia vizinha.
-
Esses espertalhões! – reclamou Zuca. – Querendo faturar no nosso território!
Houve
uma breve discussão sobre jurisdição. Outros reclamavam do açodamento da Grande
Dupla. Zuca não prestava atenção na transmissão. Já esfregava sua metralhadora
na virilha. Olhos piscando rápido, febril, imaginava as cenas que seu parceiro
mencionara.
-
A choradeira de sempre! – disse Bazu, desligando o rádio. Se quisessem
continuar a reclamar, agora, ninguém os escutaria. Não naquele blindado. Deu
partida no veículo, enquanto Zuca punha os olhos, suplicantes, sobre ele.
-
Conta mais! - disse Zuca.
-
Olha, bem aqui... – disse Bazu, apontando um ponto no mapa cortado por
coordenadas, na sua tela. Ficava a dois quarteirões dali, descendo o que fora
aquela avenida. – Havia uma loja de
guarda-chuvas nessa esquina. Já imaginou, no meio daquela zorra e gente quebrando
uma vitrina para roubar guarda-chuvas? Mas, aconteceu. Eles invadiam tudo.
Ficaram doidos. Eu me lembro bem... Botei abaixo a fachada da loja, com os
vagabundos lá dentro. Naquele tempo, eu operava a bazuca. Na torre. Como você,
hoje em dia, garoto! Eu era muito bom. Como você!
-
E tinha.,.. muita gente dentro da loja? – perguntou Zuca, ofegante.
-
Tinha. Muita gente, sim. Tinha. E gente em volta do blindado, também. Meu
parceiro é que era o piloto. Teve de sair pela comporta e ficou em cima do
veículo, disparando o lança-chamas.
-
Lança-Chamas...? – quis confirmar Zuca.
-
É... Pra acabar com a bagunça, não fizeram economia. Davam lança-chamas pra
gente, na época.
-
Lança-chamas... – repetiu Zuca.
-
Tivemos de abrir caminho, na multidão. Estavam furiosos com a gente.
-
Queria.. .ter estado lá.
Zuca
deixou os ombros caírem, deprimido. Depois, içou-se até a torre, debruçou sobre
a metralhadora e começou a chorar e a soluçar. Embaixo, Bazu tentava
consolá-lo:
-
Mas, garoto! Como você podia ter estado lá? Escute... tive uma ideia... Já
ganhamos o nosso por hoje, não é? E se a gente desse uma rodada pela beira da
praia.
Zuca
riu nervosamente, em resposta, e recompôs-se. Pouco depois, o veículo descia
para a areia da praia, rolando lentamente em suas esteiras,e com faróis apagados.
Foi Zuca quem avistou o clarão a alguma distância e deu o aviso:
-
Ali! Tem um acampamento.
Zuca
acendeu os holofotes. Bazu acelerou o
veículo ao máximo, arremessando-o num solavanco à frente. Logo vencia a duna
que os separava do alvo. Os mendigos já estavam desfalecidos, bêbados, esparramados,
ao redor da fogueira. Uma tribo das grandes. A metralhadora começou a fazer a
areia crepitar. Eram uivos, gemidos. Muitos tentaram se erguer. E a maioria foi atingida pelos disparos sem
sequer se dar conta do que estava acontecendo.
-
A granada, Zuca! Joga a granada!
Haviam
comprado a peça no mercado negro da polícia e a estavam guardando para uma
situação especial. Zuca abriu a comporta da torre e arremessou a granada,
mergulhando a seguir de volta no interior do blindado, para escapar dos
estilhaços. Um clarão alaranjado e a expansão súbita, fervente, do ar, envolveu
o veículo.
-
Dizem que dá azar matar esses dementes, Bazu! – disse o operador da torre, ao
cair junto do colega, que o recebeu num abraço, sorridente:
-
O pessoal naqueles dias também estava louco, Zuca! Matei dezenas! Centenas! Vão dizer que tive azar por isso? Como,
se agora ganhei o parceiro perfeito?
De
tão contente, lágrimas vieram aos olhos de Zuca. Mas, seu parceiro mais velho já
não se continha. Agarrou a metralhadora portátil e saiu pela escotilha para
apreciar a cena, os cadáveres, os feridos se arrastando pela areia ...
Espremidos um contra o outro, no interior do veículo, o casal de prisioneiros
chorava, apavorado. Lá fora, o matraquear da metralhadora, dissparada por Bazu,
era alto, mas não o bastante para abafar a poderosa voz dos policiais entoando
sua versão particular do Hino da Força Policial:
-
Somos mais que piratas! Muito mais que caubóis! Somos a Grande Dupla!
(Episódio 06 ... no ar em 11/01)
(Aperitivo do Próximo Episódio)
O
pai de Liana era encadernador de livros e restaurador de volumes antigos. A
oficina, com cheiro de gesso e cola, e o quartinho atrás, com a cama e o
pequeno fogareiro, eram o mundo que ele permitira a Liana conhecer.
A
oficina não tinha janelas para a rua. Ficava nos fundos de um sobrado, que já
era antigo na época em que a cidade ainda tinha vida. A fachada estava desabada,
mas, a parte oculta das ruas era
habitável.
Por
vezes, o pai levava Liana por uma passagem lateral estreita e, indicando uma
escada de degraus de cimento, que descia até um portão de ferro, sempre
fechado, dizia, com lágrimas nos olhos:
-
Foi por ali que sua mãe saiu, naquele dia. Ela nunca mais voltou. Nós três
poderíamos ter vivido aqui para sempre, escondidos. Mas, ela não aguentou. Saiu
por aquela porta. Nunca atravesse aquela porta, minha filha!
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