terça-feira, 13 de setembro de 2016

Episódio 06


No Episódio Anterior ...


                De tão contente, lágrimas vieram aos olhos de Zuca. Mas, seu parceiro mais velho já não se continha. Agarrou a metralhadora portátil e saiu pela escotilha para apreciar a cena, os cadáveres, os feridos se arrastando pela areia ... Espremidos um contra o outro, no interior do veículo, o casal de prisioneiros chorava, apavorado. Lá fora, o matraquear da metralhadora, disparada por Bazu, era alto, mas não o bastante para abafar a poderosa voz dos policiais entoando sua versão particular do Hino da Força Policial:
                - Somos mais que piratas! Muito mais que caubóis! Somos a Grande Dupla!
               




               
                O pai de Liana era encadernador de livros e restaurador de volumes antigos. A oficina, com cheiro de gesso e cola, e o quartinho atrás, com a cama e o pequeno fogareiro, eram o mundo que ele permitira a Liana conhecer.
                A oficina não tinha janelas para a rua. Ficava nos fundos de um sobrado, que já era antigo na época em que a cidade ainda tinha vida. A fachada estava desabada, mas, a parte  oculta das ruas era habitável.
                Por vezes, o pai levava Liana por uma passagem lateral estreita e, indicando uma escada de degraus de cimento, que descia até um portão de ferro, sempre fechado, dizia, com lágrimas nos olhos:
                - Foi por ali que sua mãe saiu, naquele dia. Ela nunca mais voltou. Nós três poderíamos ter vivido aqui para sempre, escondidos. Mas, ela não aguentou. Saiu por aquela porta. Nunca atravesse aquela porta, minha filha!
                - Mas, você sai por ali e sempre volta! – replicava quase sempre Liana.
                Na verdade, Liana estava perguntando ao pai  se ele também, algum dia, sairia por aquela porta para nunca mais voltar. Ele compreendia e a abraçava, suplicando intimamente que pudesse protegê-la para sempre. Depois, ajeitava os óculos de lentes grossas, enquanto retornavam para os fundos do sobrado e sorria.
                - Hoje tenho uma encomenda.
                Acontecia com alguma frequência. Uma encomenda... Debruçava-se então sobre sua mesa de trabalho e passava as horas seguintes em silêncio, á luz das velas, manuseando algum livro, livrando as páginas de pragas, recompondo-as, montando a nova encadernação. Lidava com livros com imenso carinho. Liana sentia que era o mesmo amor, que ele lhe dava. Mas, não sentia ciúmes.
                Só que nem sempre havia encomendas. Por um lado, Liana ficava feliz, porque o pai não precisaria sair para entregá-las. Por outro, era ruim. Cada livro restaurado valia um pacote de velas, álcool para o fogareiro, enlatados...
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[06 ... continuação]


                - Para quem você restaura os livros?
                - Antigamente, minha oficina não era aqui. Vivia cheia de clientes.
                - Mas, hoje...?
                - Entrego para um mensageiro. Pego os livros com ele, trago para casa, trabalho... Depois entrego de volta a ele. Uma vez por semana, vou até o lugar do encontro e vejo se tem encomenda.
                - E por que ele não entrega o livro a você aqui?
                - Não quero que ele saiba onde a gente mora. Ninguém pode saber.
                O pai falou aquilo com a voz assustada. Olhando fixamente Liana. E a menina ficou assustada, por causa do medo dele. Mas, havia mais uma coisa que queria saber.
                - É ele quem lê os livros?
                - Não... Acho que ninguém os lê. Ficam em estantes. De enfeite. Ou eles dão de presente uns para os outros. São poucos clientes, na verdade.
                - Quem são eles?
                O pai deu de ombros. Não sabia ao certo o que poderia responder.     
                Depois, segurou-a com força pelos braços e a fez jurar mais uma vez que nunca sairia à rua. Daí,  foi trabalhar num livro tão pequeno que mal ocupava a palma da sua mão. Liana lembraria para sempre esse último momento de felicidade. Assistiu em silêncio seu pai virar as páginas com a ponta dos dedos, esquecido de tudo o mais que havia em volta.
                Naquela tarde, ele sairia para entregar a encomenda. E foi dessa vez que o pai de Liana não voltou.
                Nunca mais voltaria.
                Liana o esperou dias e noites. Esperou até que as velas acabassem. E a comida. E o álcool do fogareiro. Esperou até que a escuridão – que nunca havia enfrentado sozinha – começasse a apavorá-la mais do que o medo que tinha de sair do prédio. E que a fome a fizesse escutar coisas arranhando as paredes, querendo entrar e arrastá-la dali.
                Então, pela primeira vez atravessou a estreita passagem e desceu os degraus da escada de cimento,  chegou no portão de ferro e o abriu.  Foi menos difícil do que imaginava. Já entender o cenário que a rodeava, seria outra história. O portão era num muro, que arrodeava o terreno do sobrado. Em muitos pontos, estava desabado. E, para além do muro, o caos. Incompreensível. Fossas. Morros de entulhos. De lixo. Tudo recoberto por uma camada de lama já descorada.   Nada parecia levar a lugar nenhum.
A garota não conseguia entender como poderia penetrar naquela paisagem hostil, sufocante, mal-cheirosa, embaçada de neblina cinzenta. E, principalmente, tinha quase certeza de que, bastariam algumas dezenas de passos e jamais encontraria o caminho de volta. 
                Nos livros que o pai restaurava, vira fotos e desenhos da cidade. Lera histórias, com personagens que habitavam aquelas ruas. Sobre como viviam e sobre seus sonhos.
                Ela também chegara a sonhar com o que havia ali. Desejara tanto ver. Conhecer a cidade.
                Mas, nada ali era reconhecível. Era um outro mundo. Um silêncio morto.
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[06 ... continuação]

                Seu primeiro impulso foi voltar pelo portão e fechar-se dentro de casa. Gritou, chamando o pai. Se ele aparecesse, retornariam para dentro e ela jurava que nunca mais teria de deparar-se com toda aquela desolação. Poderia até mesmo esquecê-la. Ou começar a acreditar que fora um pesadelo. 
                Finalmente, cansou-se de gritar.  Sua voz foi sumindo. As lágrimas secaram. Então, desceu um pé no que fora a calçada da sua rua e começou a caminhar. Desviou-se de uma cratera aberta, como um rasgão no asfalto, onde o chão cedera e desmoronara sobre as galerias subterrâneas. Galgou o alto de um morrote de escombros, e só então olhou para trás. Ainda dava para ver o muro, o portão – que tivera o cuidado de fechar.
                Mas, ao mesmo tempo, sabia que estava se despedindo...
                Inclusive, do seu pai. A única pessoa que tinha para conversar. A única pessoa que existia no mundo.
                Continuou andando. Percebeu que subia. Uma ladeira puxada, sem fim. Estava exausta.
Quando escutava algum ruído, agachava-se, escondia-se. Ou então fugia bem depressa. Tomou muitos tropeções, quedas. Cortou-se. Suas roupas já estavam sujas daquela lama gosmenta. E não tinha direção para seus passos. Tanto fazia para onde estava indo. A fome a esgotou rapidamente.
                De repente,  o chão afundou. Por um instante, ela se debateu no vazio. Mas, caiu sem gritar. O medo – a lembrança do medo que seu pai tinha, sem nunca ter explicado qual era a ameaça, o perigo que corriam – trancou sua garganta.
                Bateu forte no chão, alguns metros abaixo. A pancada doeu, mas não chegou a fraturar nada. Da rachadura no teto, por onde despencara,  caíram destroços e poeira sobre ela. Havia poças no chão. E, no instante em que atingiu o solo, escutou um desagradável ruído de centenas de pequenas patas fugindo,  e suas garras raspando no piso.  Estava tudo no escuro. Mas, olhinhos raivosos chegaram a mirá-la, por um instante – e depois desapareceram.
                Tropeçando, tateando, galgou degraus que não via, enfiou-se em pânico por um labirinto de passagens, aproveitando restos de claridade ínfimos, e finalmente deu de cara numa parede invisível.
                Com alguma dificuldade, compreendeu que era uma porta envidraçada, numa parede também de vidro. Empurrou-a com o corpo e conseguiu abri-la. Foi dar então num corredor largo. A luz do dia passava por enormes rombos nas paredes do que haviam sido as lojas de um shopping center.
                Liana seguiu explorando os corredores. Vez por outra, parava diante das vitrinas quebradas e examinava, curiosa, algum objeto. Havia  muita coisa ali que jamais vira.
                Numa vitrina, encontrou um porta-lápis de acrílico vermelho. Noutra, um pente gigantesco, de madeira. Noutra, estranhos dispositivos, que cabiam na sua mão, com telas de vidro e alguns botões. Apertou os botões, esperando que algo despertasse neles, mas sem resultado. De qualquer modo, estavam rachados, como se tivessem sido pisoteados ou atirados contra uma parede. Não lhe pareceram interessantes.
                Ia catando tudo o que parecia mais ou menos inteiro. Ou objetos que a intrigavam, pretendendo descobrir mais tarde o que eram. Quando não conseguia carregar mais nada, deixava tudo bem arrumado, numa pilha, num canto, e recomeçava a coleta.
                O que mais admirava era o chão. Liso, sólido. Estava gostando de caminhar ali.
                Sabia que precisava achar comida. E talvez houvesse alguma por perto. Então, reparou que o cheiro do lugar era diferente. Não havia o abafamento e o fedor das ruas, ali dentro. Até mesmo aspirava alguns restos de cheiro agradável, como se algum perfume tivesse sido vaporizado, de leve, no ar. Deteve-se, inspirou profundamente. Decidiu que respirar, ali, lhe dava prazer.
                Foi quando ele saltou de um dos cantos mais escuros e derrubou-a, fazendo-a bater com força no piso.  Nem assim Liana gritou. Seus braços, então, foram rudemente torcidos para trás, enquanto algo era berrado nos seus ouvidos. Mas, não conseguia entender o que ele  lhe perguntava. Ainda mais daquela maneira, tão assustadora. Teve certeza de que o garoto a mataria logo em seguida, e se debatia, tentando fugir.
                - Seu bando, onde está? – repetiu Úgui aos berros, sacudindo a garota. – Estão vindo aí? Pare de se remexer! Parece um cachorro louco! Fica quieta e responda, ou vai se arrepender! 

[Episódio 07... No ar dia 18/02]








No próximo Episódio ...

                Foi nesse momento que a imagem do encadernador retornou a sua mente. Naquele dia, em que o seguiu, antes de perdê-lo de vista, vira-o recolhendo algo do chão. A distância, pareceu-lhe uma boneca. Só então deu-se conta do significado disso.
                - Ou o cara é maluco, ou tem uma filha. Uma menina... nascida e criada fora das ruas...
Estaria bonita, saudável. Uma presa lucrativa. Muito lucrativa. Vendê-la aos chefes, no condomínio, iria mudar sua vida! Mesmo com a parte que teria de dar aos intermediários. E ao seu gerente. Ou talvez, pudesse ir direto ao chefe... Como? 
Isso fazia anos...

- A menina deve estar grandinha agora – disse o motoboy, que costumava ter essas conversas consigo mesmo em voz alta.  Era um serviço solitário. Passava dias sem cruzar  com ninguém que pudesse estar interessado em trocar ideias com ele. -  Uma adolescente. Sim... Uma presa muito lucrativa! 

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