sexta-feira, 21 de outubro de 2016




UM ROMANCE

SOBRE A CRIAÇÃO 

DA LITERATURA




NADA MAIS POP DO QUE UM BOM HOMERO


                 Meu HOMERO Aventura Mitológica, em algumas instâncias, foi classificado como "Reconto". Entendia-se assim que se tratava de uma adaptação de Ilíada e Odisseia. Discordo dessa classificação, não somente porque nunca foi minha proposta adaptar os poemas homéricos, mas , principalmente, o que eu entendo que fiz foi destacar Homero como o criador da arte de narrar histórias, ou seja, dos recursos literários que nos permitem ter, usufruir, degustar, nos divertir com Literatura.
                  Sem os recursos que Homero criou para narrar suas histórias "épicas" (ele criou a narrativa épica), seria impossível, hoje em dia lermos um romance ou um conto vivenciando a emoção do mistério, do terror, da história de amor. Seria impossível até mesmo dar uma risada, lendo  uma cena. Porque não existiram cenas. Nem diálogos, nem personagens (quanto mais personagens carismáricos, consistentes, sedutores). Nem ação. Nem tramas. Homero engendrou os recursos que proporcionariam à narrativa a capacidade de ENVOLVER seu leitor. (1)
             É o que Aristóteles destaca na sua Poética, na qual Homero é o personagem e homenageado principal. Sem querer entrar na "Questão Homérica" - se Homero existiu ou não - e mesmo sem explorar (embora admirando, assimilando) a compreensão de Heródoto de que Homero inventou os deuses e a Mitologia, aqueles dois poemas, Ilíada  e Odisseia, originaram arte de contar histórias,  independente de quem os tenha composto (2), inventando, cunhando, forjando,  para o que viria a ser a Literatura, recursos que lhe permitiram entrar em ação (ou Imitar a ação/a vida, na compreensão de Aristóteles). Homero antecipou, abriu caminho para, criou a Literatura.
           Creio que esses recursos teriam sido inventados,  de qualquer maneira, em algum momento posterior, se não tivesse existido um Homero. Mas é fantástico perceber que a obra desse poeta, criada há cerca de 3 mil anos (descontando a Questão Homérica), gerou fundamentos válidos até hoje (atualizados, dinamizados, envenenados é claro, por séculos de experiência literária) para escrever Literatura.
            Meu livro é sobre isso. O que há ali de adaptação (traduções mais generosas, sem firulas indecifráveis para mortais) de Ilíada  e Odisseia  entram em cena como personagens, para ilustrar ou dar ação e vida a esse ponto crucial.
            Escrevi também esse livro como uma biografia ficcional de Homero (já que ninguém tem certeza se ele existe, e nada se sabe sobre sua biografia real, e ainda ignorando essa falta de compreensão corrente para a possibilidade de a Literatura reunir esses dois termos, biografia  e ficcional, numa obra só... Os leitores compreenderão! E se envolverão com o ardil - homérico). Pego então Homero criança, um menino abandonado na antiga Esmirna, e conto toda uma história sobre ele, de aventura, angústia e luta - enquanto ele se torna o poeta mais inovador da Humanidade e compõe os poemas que se tornariam patrimônio imortal da imaginação. Conto até a luta dele contra os deuses (principalmente Apolo) para conquistar a liberdade de criar uma poesia que seria considerada profana para a época e aos olhos dos Olimpianos.
           No entanto... acima de tudo...
           ...  Escrevi um livro sobre a Criação da Literatura.
            Uma homenagem (da qual ele não precisaria, é claro) e uma declaração de admiração devotada a esse poeta que criou meu ofício, arte, sentido e paixão de vida.


Ver outro artigo neste BLOG em ... (Fora de Ordem):
De HOMERO ao LADRÃO DE RAIOS
luizantonioaguiar.blogspot.com.br/search?q=Homero



(1)      Não é por acaso que as teorias (principalmente para o Teatro) de vanguarda, modernistas, se voltaram contra os atributos que Aristóteles identificou como as maiores qualidades em Homero. Toda a arte de provocar efeitos de leitura (como a catarse) no público foi condenada em favor de uma atitude racionalista que jamais deixasse o público (leitor) se esquecer de que o que vivenciava era uma representação; e que portanto não poderia vivenciá-la com sentimentos e reações reais.  A momentânea ilusão,  transporte,  prestidigitação e, novamente, o que sintetiza tudo isso, o envolvimento do leitor/espectador no ato de leitura, ao qual esse leitor estava habituado, precisavam ser rompidos, pelos parâmetros modernistas. Homero precisava ser revogado.
2) ... e eu acho que foi um sujeito que identificamos hoje com o nome de Homero, e que inclusive forjou um diálogo entre os dois poemas, uma resposta de Odisseia para o dilema mortalidade/imortalidade de iIlíada, ou seja  Odisseu/Ulisses responde a Aquiles. Uma resposta que Eça de Queirós vai ecoar, milênios depois, no seu conto A perfeição.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O ESCRITOR QUE REINVENTOU O BRASIL:

JOSÉ DE ALENCAR








Luiz Antonio Aguiar




“N’O Guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça.”

                   José de Alencar, Como e porque sou romancista.

               


                Como e por que sou romancista é um documento notável, atípico na Literatura, principalmente a brasileira, mas muito coerente com  José de Alencar (1829-1877), um escritor que, entre outras qualificações, se identificava como polemista.
E em muitas polêmicas, ele se envolveu. Nunca deixou de responder às críticas que recebia, fosse em seus prefácios, em seus ensaios, e mesmo sob fantasia de algum de seus personagens. Jamais concordaria em falsear sua Literatura. Em apresentá-la domesticada, privada de corte, a serviço do status quo, nem das conveniências ou mediocridade oficiais. Sua Literatura servia somente à Literatura. E ao seu projeto.
Sim, Alencar era um escritor com  um projeto. Um ideal literário, que era também político. E fazia questão de lutar por isso em todos os espaços de que dispunha e nos que criava.
                Esse projeto era reinventar o Brasil.
                Não o Brasil geográfico, é claro, mas um imaginário de Brasil, capaz de dar cria a um povo – os brasileiros
                Sumariamente, explicando ...



PERI NÃO PODIA SER GUARANI


                O processo de Independência, entre muitas conjuras, revoltas, insurreições, se concretizou com a expulsão de D. Pedro I, em 1831. Em meio a muita luta, foi revogada nossa ligação política e cultural (e também, em certa media, do nosso imaginário) com Portugal. Abriu-se uma espécie de lacuna em nossa identidade. Alencar via a necessidade de reinventar o Brasil, um Brasil sem Portugal para cobrir essa carência.
Foi essa a ousada proposta de José Martiniano de Alencar: a Literatura reinventando o Brasil. Criando um novo Brasil. Foi a causa que ele mais apaixonadamente abraçou.   
                Leitor do romancista americano Fenimore Cooper (O último dos moicanos, 1757) e do inglês Walter Scott (Ivanhoé, 1820), concebia que um sentimento de nacionalidade, de pertencimento, de algo em comum, essa liga que torna população/habitantes em Um Povo não surge, nem muito menos se consolida no íntimo das pessoas, sem mitos compartilhados. O Guarani é isso. É essa proposta, essa tentativa.
                Já na sua época (e mais ainda a partir do Modernismo), o personagem Peri era criticado como inverossímil, e até mesmo falso, tanto pelo modo de agir como o de falar. Não era um índio de verdade.
Já o fato de ser identificado como Goitacás torna esse guarani pouco confiável.
Os goitacases foram extintos no século XVIII por uma epidemia de varíola espalhada entre eles por prisioneiros portugueses infectados e abandonados pelos colonizadores para serem devorados pelos nativos, que assim seriam contaminados por uma doença contra a qual seus corpos não possuíam nenhum tipo de imunidade. O ardil genocida impediu que chegassem até nós registros mais apurados sobre seu modo de vida, qualquer conhecimento sobre seu idioma e mesmo sua etnia. Não pertenciam ao grupo Tupi-Guarani, e mesmo a palavra “Goitacás” tem sua origem no tupi – que certamente não era a língua deles.
Ou seja, Peri ou era Guarani, ou era Goitacás. A não ser que se estivesse supondo o significado original da palavra “guarani”, em Tupi-Guarani: Guerreiro.
Agora, a pergunta é: E daí?
Alencar (é só ler Como e por que sou romancista), não se propôs a fazer um tratado antropológico.
Queria criar um mito.
Peri é um Ivanhoé, de Scott, mito-referência para a identidade/ nacionalidade inglesa, é um Uncas, de Cooper, mito-referência para a identidade/nacionalidade norteamericana. Não seria de se admirar se Alencar jamais tivesse visto um índio na vida, nem no Ceará, nem na Corte, Rio de Janeiro. E com certeza, diferente dos antropólogos, sertanistas e indianistas do século XX, jamais enveredopu em expedições pelas florestas para  vê-los em estado original e em seu mundo próprio.
Ora,  uma vez independentes, não poderíamos mais ter como referência Portugal e seu passado, nem a Europa, para nosso sentimento de identidade/nacionalidade/pertencimento. Já não seria a história medieval ibérica a nos dar uma raiz em comum. No entanto,  dentro do projeto de Alencar, poderíamos nos  mirar no índio e nos identificarmos com a sua bravura, sua força, simbolizando a exuberância da natureza tropical.
E isso mesmo que esse indígena, como também reconhece Alencar (ver citação acima), não tivesse tido uma presença de fato nem na sociedade colonial, nem na sociedade e cultura (independente) que se formava.
Também isso não importava.  Cabia era construir um mito. Uma liga. Plasmar um povo. Ou cunhá-lo, como se cunham metáforas.
É bom lembrar que Alencar é ainda mais explícito no caso de Iracema, que tem como subtítulo Uma lenda do Ceará. É a história mítica da geração de um povo, filho do invasor português com a semideusa indígena. 
Outros escritores, além de Alencar,  participaram da corrente denominada Indianista. No entanto, ele foi mais extremado, já que seu projeto, além da construção do Índio-herói, enfatizava outros aspectos.




O ESCRITOR MILITANTE


                Em vários de seus escritos polemistas, Alencar ergueu a bandeira de criar uma Literatura Brasileira. Compreendia essa militância de uma maneira bastante avançada para o seu tempo, já que não a resumia a compor histórias ambientadas no Brasil, com personagens brasileiros, algo puxado ao exotismo, ao abacaxi com bananas. O que visava  era captar um público desejoso de uma Literatura com nossa cara mestiça,  e apto a embarcar em dramas, conflitos e tramas ambientados no Brasil, interpretadas por personagens brasileiros.
Ele próprio um leitor de Eugene Sue, na juventude, de Dumas e outros clássicos europeus, compreendia a dependência de nosso imaginário, nossa pouca habilitação a aceitar uma história vivida por uma  Aurélia, ou uma Lúcia,  ambientada na Rua do Ouvidor, ou em Botafogo, ou no Rio Comprido, para quem estava acostumado a sonhar apenas quando transportado para a elegância dos bulevares franceses ou para os mistérios submersos no fog londrino. O já escasso público leitor brasileiro lia traduções de folhetins franceses. A isso considerava Literatura. Nesses, é que se dispunha a embarcar. 
Percebam que não necessariamente está em jogo aqui um intuito nacionalista, de valorizar o que é nosso, ou algo semelhante. Alencar superava o propósito simplório, visando (ao meu ver) obter aval do público para criar uma Literatura que pudesse refletir (como é próprio da Literatura) sobre nós mesmos, em vez de se fantasiar de europeia. Que pudesse usar nossos dramas como matéria-prima para a Literatura.
Já  bastava a Rua do Ouvidor que, em pleno verão carioca, para seguir a moda francesa, obrigava as mulheres a vestirem veludos, mangas compridas e longas caudas, chapéus e luvas. Que nossa Literatura pudesse atacar esse caiporismo, seria seu propósito, e a única maneira de perseguir seu projeto – a Literatura forjando um Brasil longe do complexo de vira-lata (uma expressão que viria bem depois e em outro contexto, mas que poderia se aplicar aqui). Seria a afirmação de que poderíamos ser civilizados sem sermos uma caricatura, europeus imperfeitos, uma aberração híbrida, privada da identidade.
Alencar, em seu projeto, precisava trazer a Literatura para reescrever o Brasil.



COMO É GOSTOSO MEU BRASILEIRO


                Também em vários momentos, Alencar rebateu a crítica ao abrasileiramento  do português em seu texto. Sim,  muitos o condenavam porque  seus personagens e narradores falavam como o português era falado no Brasil, e não com o jeito lusitano.
                Muitas e muitas vezes, respondeu que não escrevia assim por uma displicência, ou frouxidão, em relação à linguagem, mas por procurar construir a verossimilhança – proporcionar aos leitores no Brasil a oportunidade de escutar sua própria voz nos personagens, falando como eles falavam e não com a submissão ao erudito, ao superado (o português foi atualizado á brasileira, no Brasil), ao colonizado.
                Uma heroína, um personagem conflituado, dilacerado por dilemas morais e/ou sociais, poderia expressá-los num linguajar brasileiro. Alencar tinha consciência de que, se conseguisse isso,   grande parte de seu projeto estaria ganho. Note-se que, mais uma vez, temos aqui um escritor que prioriza a composição literária, a criação, a construção da verossimilhança, e não o que é considerado culto, correto, de bom tom.
Devemos essa bandeira a Alencar.


UM PAÍS SE FAZ COM MULHERES E LIVROS

                Alencar reinventou o Mapa do Brasil.
                Escreveu histórias passadas no Sul, no Centro, no Norte.
                E reinventou também o passado, dando ao Índio-Mitológico que criou o papel de protagonista na formação da nação (que reinventou). Muita coisa pode ser questionada em seus objetivos e na tática que utilizou. Mas, é curioso que esse político conservador, não-abolicionista, monarquista, filho de uma sociedade patricarcal, quando partiu para transformar a Corte (o Rio de Janeiro) em histórias/Literatura, elegeu como suas protagonistas, as mulheres.
                Lúcia. A prostituta de coração virgem, que revoltou aos conservadores (e ao Imperador) por não ser condenada pelo seu autor. Mas que outro escritor teria a coragem de colocar o dedo na chaga dissimulada pela auréola de santidade familiar e conjugar da Corte? Lucíola, o romance que denunciava a hipocrisia de uma sociedade que hostilizava e maltratava suas prostitutas em público, fechando os olhos para o fato de que eram os maridos, jovens desejosos de aventuras e iniciação sexual, noivos determinados a preservar a virtude de suas prometidas, os clientes da prostituição.

Tutorial de "Luciola", na Coleção 
Descobrindo os Clássicos


E num trecho do livro, o protagonista masculino, Paulo, desafia (As asas de um anjo, peça teatral de Alencar com enredo muito semelhante teve a exibição suspensa, poucos dias após a estreia, e o teatro ocupado pela polícia): “Que raivem os moralistas!”
Ou ainda, que outro escritor se recusaria a usar sua Literatura para fazer parte do jogo de aparências ...
                 E expor o aspecto de arranjo no matrimônio, no esquema social vigente, em que a mulher não era dona nem sequer de seus bens, mas sim o esposo ... Do comércio, oferta e caça de dotes por conta da necessidade das famílias de arranjar maridos para suas filhas... De  descarnar uniões em que o afeto e o amor e a lealdade raramente prevaleciam?
 Em Senhora, estrelado pela surpreendente Aurélia Camargo,  o casamento é tratado como contrato, negócio, de compra (o marido) e transferência de propriedadede (a noiva). E isso já nos títulos das partes da novela:  “Preço”, “Quitação”, “Posse”, “Resgate”.
                No Brasil reinventado por Alencar, a Corte, o Rio de Janeiro, o fígado que recebia as influências europeias e as metabolizava. O cérebro e coração do país. O presente e as possibilidade de futuro (já que o Indianismo  era o nosso passado, nosso legado, patrimônio míitico) foram seus Perfis de Mulher. Todos os romances do Mapa Literário do Brasil Reinventado por Alencar, ambientados na Corte, eram protagonizados por mulheres. Poderia não ser a chefe da casa, oficialmente falando, mas se tornou, em Alencar, dona da História.





O LEGADO

Tutorial de "Senhora"



                Quando Machado de Assis, um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, escolheu o patrono da cadeira que lhe cabia (no.23), indicou José de Alencar. E, ao celebrar a inauguração da estátua de Alencar, no Catete (bairro do Rio de Janeiro), e em outras ocasiões, reconheceu a influência que o autor de Lucíola e Senhora teve sobre ele.
                Como Alencar, Machado foi criticado por usar um português abrasileirado, considerado pobre, em comparação a seus contemporâneos... Já o filho de Alencar, Mário Alencar, foi um crítico fundamental para reconhecer em Machado o herdeiro do mesmo projeto literário de seu pai e esclarecê-lo para os demais críticos. Foi um grande defensor da Literatura de Machado. Graças a ele, a crítica, ou pelo menos parte dela, deixou de cometer muitas injustiças contra o romancista.
Assim como Alencar,  Machado também sonhava em conquistar leitores. Via no abrasileiramento da linguagem e no das ambientações e personagens um caminho para poder tornar a Literatura um elemento de reflexão sobre nossos dilemas diante do mundo. Nada contra ler  Cervantes, Shakespeare, Poe, que foram diletos de Machado. Mas, para que  o questionamento dos  nossos caprichos culturais atravessassem a carne do leitor e entrassem na sua corrente sanguínea, Brás Cubas  tinha, sim, de ser um egresso da elite brasileira, abastada, devotada ao ócio, que desperdiçou suas vantagens e privilégio por vaidade extremada (vaidade somada a inépcia é patético, às vezes trágico: e já aí está um bom núcleo para qualquer ficção) e por incompetência de viver, de produzir, de criar, de ser.  Brás Cubas não funcionaria para o leitor brasileiro se fosse um parisiense, um londrino, um alemão.  
                Ora, a Literatura é um dos mais complexos e férteis modos de o ser humano reconhecer o mundo, recriá-lo, situar-se nele. E o legado de Alencar, ou seja, seu projeto, foi assumido (como nas corridas de revezamento, já que Alencar morreu precocemente) por Machado de Assis, que o desenvolveu, e envenenou-o, até com ingredientes  de cunho universal, existencial e metafísico, os quais o transformaram num  prodígio da Literatura. Machado, ao meu ver, era um escritor mais poderoso do que Alencar, e nos deixou uma obra mais soberba.  O que não impediu Machado de lhe ser grato e a nós, de prestar reconhecimento  àquele que fundou o que se pode entender como Romance Brasileiro.
                Ou seja, a Alencar devemos a invenção do Ser Brasileiro, que ainda está em vigor (e assim continuará até nova ruptura cultural) e a próxima reinvenção do Brasil.

Que, creio, também será empreendida pela Literatura.  

Estátua de José de Alencar, inaugurada em 1897 



segunda-feira, 10 de outubro de 2016

MEU AMIGO INDIOZINHO


Dois meninos.

Um conflito grave entre a tribo indígena e os habitantes da cidade.

Tremenda Dividida...
Mas, no futebok e na Amizade, o jogo é jogado.

Quem conta a história é a bola correndo!

DIVERSIDADE é mais complexa do que slogans oficiais!!!!

Venha ler e curtir! Uma entrevista super no Blog
sobre um livro que desafia quem joga (e pensa) na retranca!




http://www.blogbirutagaivota.com.br/papeando/papeando-com-luiz-antonio-aguiar/

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O Triste Fim de Policarpo Quaresma

Adaptação em Graphic Novel/Quadrinhos
Roteiro: Luiz Antonio Aguiar
Imagens: César Lobo


DO CLÁSSICO AO HQ:
A Adaptação Autoral de uma Leitura da Obra-Prima de Lima Barreto

Comentário / Pós-Escrito

Luiz Antonio Aguiar






                O triste fim de Policarpo Quaresma (1911) me encanta. Há aspectos preciosos - tanto históricos, quanto culturais e humanos - a serem lidos (e pensados) nesse romance que é o mais conhecido, o mais popular e certamente a obra-prima de Lima Barreto .
A trama é ambientada no crítico período inicial  da República. Deodoro, que nunca fora um republicano, foi transformado em protagonista da Proclamação por manobras do grupo político que armou a derrubada da Monarquia (que, por sinal, enfraquecida, anêmica, precisou de pouco para ser expelida do palácio e do país) e a tomada do poder. Radicais idealistas, como Silva Jardim e Lopes Trovão, foram excluídos do processo, e a República demorou um quase nada para mostrar a que veio e ao que não veio, para desencantar (e trair) os mais apaixonados.
O Marechal renunciou antes de seu mandato completar dois anos. Pela Constituição em vigor, novas eleições deveriam ser convocadas. Mas, Deodoro tinha um Vice, Floriano Peixoto, que num golpe de estado assentou-se no poder e denominou-se presidente. Perseguiu, mandou assassinar, exilou, fez sumir, reprimiu, executou, debelou revoltas com sangue, ludibriou, mentiu. E foi com tais recursos que granjeou o apelido de Marechal de Ferro.
É justamente nesse momento da desilusão dos republicanos idealistas – como o personagem Policarpo Quaresma e o próprio Lima Barreto – e da repressão às tentativas de defender a Constituição, que se passa O triste Fim... O triste fim do personagem Policarpo, de um sonho, o da República, e o fim/extermínio físico de toda uma geração que se propunha a remover a Monarquia para mudar o país. Os intestinos do poder, os pequenos ditadores do interior, os aproveitadores de sempre, os que estão atentos às oportunidades e nunca perdem nomeações, os corruptos agregados aos empossados e à cata das sobras dos poderosos  – nada disso mudou, para desespero dos que sinceramente acreditaram que o país romperia o novo Século com uma vocação nova, progressista, iluminista, republicana.





Policarpo é um visionário. Sonha com um Brasil que construa uma nova identidade, nativista, consolidando o processo de Independência, iniciado décadas antes, e se desenvolva no projeto republicano mais avançado. Ilude-se, como muitos, com a presença forte dos militares, que se apresentam como fiadores desse ideal. E com a truculência inescrupulosa de Floriano Peixoto. Confunde-a com a autoridade que julgava necessária para limpar o país.
Tudo isso o leva ao seu triste fim. Ele seria o último idealista, a ainda acreditar nos arroubos iniciais da República, que jamais vingaram de fato, que jamais passaram de discurso e de entusiasmo de jovens, vendidos à malícia  dos arranjos palacianos e da alta caserna.  O lado quixotesco – acreditando e empenhando a sua vida numa República que jamais chegou a existir - de Policarpo Quaresma foi uma das conclusões – da leitura que Lobo e eu tiramos da obra, para adaptá-la. Ficou bem destacado nas citações de Doré em meio ao espetáculo icônico que é essa Graphic Novel.




O Quixote na sua Biblioteca, cercado dos personagens que lhe infundiam fantasias e aventuras, está lá. E também o mais épico, decidido, o heroico. A própria figura do Quaresma de Lobo é inspirada no Dom Quixote mais conhecido, o de Gustavo Doré.  



Assim como Quixote, Policarpo Quaresma mistura tragédia e humor – algo de certo modo, Machadiano, com sua galhofa + melancolia, igualmente cervanteana -; é impossível lê-lo a contento, se enxergarmos uma única faceta; ambas se fusionam. Ele voa, devaneia, celebra, ri, brinca, festeja, e aí carrega embutida a anunciada devastação da sua inocência:  sua tragédia.
Já aqui entregamos um dos princípios desta adaptação: seu caráter autoral.




Jamais pretendemos simplistamente transpor O triste fim de Policarpo Quaresma para essa Graphic Novel. Nunca nos resumiríamos a copiar o texto de Lima Barreto e dar—lhe um paste com desenhos, que o acompanhassem. Para nós, era necessário recriar a obra. Isso, por várias razões. Uma obra literária, vertida para os quadrinhos, tem de incorporar, generosa, harmônica e efusivamente os recursos dos quadrinhos. Aventurar-se neles, explorá-los, deixar o desafio dessa linguagem, dessa maneira diferente (que o autor original jamais concebeu, jamais previu) de contar a história se apossar do trabalho a ser realizado. Entram em cena a imagem, a dinâmica/narrativa dos cortes, dos enquadramentos – da decupagem, tudo isso.
Além do mais, nenhum texto traz em si todas as soluções para ser adaptado. É necessário interpretar, criar, arriscar-se a colocar nos HQs, sem medo, uma visão (pessoal) do personagem, da ambientação, da trama, de cada cena, de cada página e quadro. Senão, a adaptação não ganha vida.





Foi isso o que fizemos. A adaptação partiu de uma leitura, e foi essa leitura que foi quadrinizada. Foi o que virou história, cenas, quadros, closes e cenários, expressões de rosto de personagens, alguns diálogos, o silêncio – os rostos emudecidos, congestionados de emoções – toda a textura da composição, enfim...
Outro fundamento da nossa adaptação de O triste fim de Policarpo Quaresma foi destacar  alguns temas que nos cativaram. Houve aqui uma seleção, é claro, o que é mais um ingrediente autoral. Um deles é o da loucura. Quaresma passa uma temporada num asilo para doentes mentais, assim como Lima Barreto sofreu várias internações. Então, para descrevermos o hospício, o “cemitério de vivos”, como Lima Barreto o chama, num relato devastador sobre essa sua experiência, chamamos o próprio autor a uma participação especial na história em  quadrinhos, compondo o monólogo com as  as palavras de seu próprio texto .



Outro destaque para nós foi a discriminação contra o violão (representando aqui a aversão da cúpula golpista, inculta, algo grosseira, embora tenha tomado o poder,  contra a cultura; particularmente a local, dos subúrbios e ruas do centro do Rio. Tido como instrumento de “malandro”, a vizinhança de Policarpo se choca ao vê-lo tocar violão. Tanto quanto ao descobrir que ele possui muitos livros em casa – os vizinhos não podem entender para que alguém poderia querer tantos volumes, algo que consideram abusadamente suspeito. É na biblioteca da casa que Policarpo toma suas lições de violão com um artista boêmio, seu amigo. Policarpo considera o violão um instrumento tipicamente brasileiro, e por isso se dedica a tocá-lo. Mas, o violão de seu professor é quebrado por militares, durante uma caça que empreendem nas ruas, à cata de pessoas para alistarem à força. O violão se torna símbolo, na adaptação, da repressão da época, da rigidez que se tenta impor ao Brasil, ao Rio de Janeiro – totalmente diversa, oposta, inimiga da festa-pindorâmica em que Policarpo sonha transformar o país.





Também um elemento bastante importante para nós foi a atualidade de Policarpo Quaresma. Os ideais traídos, as reformas frustradas por grupos que manipulam as mudanças para que nada mude. Isso é tão evidente em Lima Barreto – e tão doloroso para nós, vivendo o Brasil de hoje –, que explode na última cena, justamente quando Policarpo, encontrando seu triste fim diante de um pelotão de fuzilamento, sobe ao céu, ou melhor, incorpora-se ao futuro de lutas populares que pontilharão a história brasileira.




E embora já se tenha neste comentário chegado ao final da história, restam ainda dois pontos, deixados para agora , propositalmente, com o fito de  destacá-los ainda mais. O primeiro é o belíssimo contraste entre três personagens femininos: Adelaide, Ismênia e Olga. Creio que podemos ler nessas três mulheres uma análise linda e dilacerante da posição da mulher na sociedade brasileira. São três tipos diferentes, embora, contracenando, componham um quadro tremendamente expressivo.
Adelaide, a irmã de Policarpo, tem como ambiente exclusivo o espaço doméstico, seu lar. Nunca é vista em cenas externas (já é assim na obra de Lima Barreto), na rua. Sua função é cuidar da casa e do irmão, tão prática, simplista e pé no chão como um Sancho Pança. É o passado, e não questiona sua posição. Tudo o que pede é que não alterem nada do pequeno mundo que lhe é dado viver.





Há a trágica Ismênia, filha de vizinhos de Policarpo. Ela inicia suas aparições ocupando, igualmente um espaço doméstico e buscando realizar-se nesse espaço. Está preparando seu enxoval. Mas, seu noivo tarda demais para marcar a data do casamento, ou seja, para confirmar o compromisso. Ela vai ficando, ficando, os parentes, principalmente o pai, lhe cobrando, como se fosse falha sua, que o rapaz não se decida. E, nessa agonia, ela se esfacela, enlouquece. Quando se convence de que o jovem não vai se casar com ela, e que assim ela não se realizará no ideal de mulher doméstica, caseira,  começa a vagar pela casa, delirante, até que se deixa morrer. E, numa cena final quase nelsonrodrigueana, a seu pedido, a vemos em seu caixão com seu vestido de noiva. É a mortalha (que envergou ainda em vida) com que será enterrada.




Seu martírio, em nossa adaptação, é simultâneo, paralelo, simbólico, do próprio martírio dos ideais republicanos. Da desilusão final de Policarpo – chocado com a brutalidade dos militares na repressão aos oposicionistas, com a mesquinhez e as traições de Floriano. O desespero íntimo, a morte moral de Policarpo, está em paralelo, numa página dupla (um close antológico de Cesar Lobo), com a  morte da noiva Ismênia. Ela é a República vislumbrada – por Policarpo e por Lima Barreto (que declarou na época que aquela não era a república dos seus sonhos); ou melhor, a República lesada, traída, assassinada. 






Enfim, temos Olga, a afilhada de Policarpo. Também tenta a vida convencional, o casamento seguro, a proteção do poder patricarcal, em que a moça é passada do pai para o marido, sem amadurecimento, nem atenuação da sua posição submissa. Ou assim deveria ser, mas não no caso de Olga, que não se adapta ao papel. Ela escapa ao confinamento doméstico tanto por ser mais culta, mais crítica, em virtude também de suas ligações com o padrinho, mas, primordialmente pelas cenas finais do drama.
Policarpo é sentenciado por traição – porque ousou denunciar abusos dos militares contra os rebeldes e a população -, e ela se apronta, aflita, para sair de casa e fazer uma desesperada tentativa, um apelo às autoridades que vão matar Policarpo, para que o poupem. Afinal, de traidor ele não tem nada; ele é honestidade, ideal, integridade, entrega pura. (Daí, a impossibilidade de ser digerido pela República.)
Olga resolve prostestar  a inocência do padrinho. Na porta, o marido tenta detê-la. Ele teme que ela atraia  ódio e vingança das autoridades. Além disso, se arroga a proibir que ela saia de casa e se exponha dessa maneira, publicamente. Chega a lhe dar um ultimato: ou ela desiste e fica em casa, ou que não volte mais.
E ela sai. Manda o marido pastar.  Vai ao palácio do presidente – que evidentemente não a recebe – e faz questão de colocar-se ao lado do tio, para despedir-se dele, antes do fuzilamento. Ganha o espaço público, assim, a rua, a dignidade, a afirmação de sua autonomia, como mulher, pessoa e cidadã, sua liberdade. É uma belíssima mulher anunciando os tempos modernos, que conquista sua nova posição no mundo como a antecipação de uma Pagu, de uma Tarsila do Amaral.




Vejam, portanto, que nada disso está evidente em Lima Barreto. Trata-se de leituras, interpretações justificadas (ou justificáveis) dentro da composição da obra, sim, claro, mas que, reunidas, destacadas dessa maneira, se tornam o que chamamos uma Adaptação Autoral. Finalmente, como suplemento à Graphic Novel, temos um making of no qual o leitor pode comparar três momentos importantes do trabalho de adaptação. Há um trecho do original de Lima Barreto, o mesmo trecho vertido para o roteiro de HQs e finalmente ganhando vida, nas imagens de Cesar Lobo. Uma curiosidade, mas também uma observação importante sobre entrecruzamento de linguagens e o espírito da adaptação.




Enfim, esse é o nosso trabalho em HQ. Espero que estes comentários tenham atiçado seu apetite para ler tanto a obra de Lima Barreto quanto nossa adaptação autoral.  Afinal, sermos lidos, termos leitores, cativá-los, entretê-los, contemplá-los por sua leitura, esse é o anseio maior de um trabalho como este que levou cerca de três anos para ser realizado.

Lima Barreto
                              1881-1922