EPISÓDIO 08
NO EPISÓDIO ANTERIOR...
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(enquanto Úgui e Liana têm um turbulento primeiro encontro num shopping em ruínas...)
Aquilo
fora uma avenida muito movimentada. Lojas, cinemas, bancos, academias de
ginástica, estabelecimentos de serviços, no térreo. Prédios com escritórios,
consultórios, residências, nos andares superiores. Tudo aquilo que estava tão
silencioso, agora, tão parado como se nem o ar circulasse.
Aos
trancos, Úgui arrastou Liana pelos corredores do shopping. A garota lutava como
podia. Acertava chutes no seu captor, arranhava-o. Conseguiu até mesmo, em dado
momento, se desvencilhar dele e correr. Mas, Úgui a alcançou, derrubou-a, e
dominou-a a tapas.
O
garoto estava indo ao desespero, sem saber mais o que fazer para conter Liana.
E ainda acreditava que, de uma hora para a outra, o bando dela invadiria o
lugar – seu esconderijo secreto, seu abrigo das últimas semanas.
Se
um bando descobrira a entrada para o shopping pelo alto da ladeira, Úgui teria de fugir dali. Caso fosse
capturado, não poderia esperar que o deixassem vivo. Era necessário que a garota
não desse nenhum alarme.
- Seu pessoal vai procurar você, não vai? Vão
demorar? Você é quem procura entradas nos prédios para o bando? O seu grupo é grande? Diz!
Liana
não respondia. Continuava a se debater, o que deixava Úgui ainda mais nervoso.
Estava perdendo tempo.
-
Escute ... Quem sabe posso entrar para o seu bando? Sou valente! Sei fazer
muita coisa! Sei até mesmo treinar os menores. Faço isso bem! E pode dizer ao
seu chefe que nunca vou querer tomar dele. Que tal assim?... Você fala com o seu
chefe? É a namorada dele?
Liana
conseguiu soltar um dos braços e deu no garoto uma bofetada que pegou em cheio
na sua cara. Espantado, o menino foi lançado para trás. Mais uma vez, Liana
fugiu dele, mas tropeçou em alguma coisa e rolou no chão. Já ia se levantando,
ofegante, aos soluços, quando Úgui caiu sobre ela. Mas, dessa vez não bateu na
garota.
-
Escute... Tô falando sério. Jogo aberto! Olha, eu estou sózinho. Não é uma
armadilha. Não sou mais de bando nenhum. Escute... por favor!
Só
então Úgui reparou nas roupas que Liana vestia. Apesar de um pouco enlameadas,
estavam em boas condições. Os rasgos haviam sido cerzidos cuidadosamente pelo
pai da garota. Agarrou a seguir uma das mãos dela e examinou intrigado a pele
sem manchas, as unhas, aparadas, limpas. Até o corte de jeitoso que Liana
usava, seus cabelos encaracolados caindo
simetricamente sobre os ombros, lhe pareceu estranho. Nada parecido com o
grosseiro corte que os membros do bando faziam uns nos outros. E havia mais uma
porção de detalhes curiosos na garota, demonstrando cuidado, bons tratos...
Nada indicava a vida de abandono que Úgui conhecia.
-
Mas, de onde você veio, menina?
<<<>>>
[08 ... continua]
Liana
o encarou com raiva. Lágrimas desciam, quentes, por suas faces. Os lábios
tremiam. Nem assim a garota baixava a cabeça. Nem dizia coisa
alguma. De repente, ela soltou um gemido e se encolheu toda.
-
O que foi? – exclamou Úgui, olhando em volta.
Ele
não poderia entender. Não havia como saber que naquele momento uma imagem do
pai passara pela cabeça de Liana. E ela lembrara dos medos do encadernador. De
suas recomendações contra tudo o que pudesse existir no mundo fora da oficina.
O mundo onde ela estava agora. Sozinha, sem o pai.
A
cada soluço, o corpo da garota estremecia. Úgui não sabia o que fazer.
Compreendeu que ela não tentaria mais escapar. Apurou os ouvidos, tentando
pegar algum ruído. Mas, não parecia haver mais ninguém, naqueles corredores.
Daí, puxou Liana e a fez levantar. Sem brutalidade dessa vez. Com calma.
-
Vem... vem...
Conduzindo-a
pela mão, Úgui penetrou numa das lojas. No fundo dela, havia um enorme rombo,
por onde a luz exterior entrava. Deixando Liana de lado, um instante, o rapaz
enfiou o corpo na abertura e assim teve uma visão completa da parte frontal do
shopping e da paisagem em torno.
-
Não tem ninguém aí fora! – disse, voltando para Liana.
Se
um bando estivesse invadindo o shopping, um grupo pequeno entraria na frente,
explorando, enquanto o resto do bando cercaria o lugar. Mas, não havia ninguém
nos arredores.
-
E ainda está claro. Um bando não se arriscaria nas ruas a esta hora. Você
está... sozinha, não está?
Era
uma ideia estranha. Sozinha. Sem bando. Mas, podia ser, sim. Ainda mais aquela
garota que, pela aparência, nunca vivera nas ruas.
No
entanto, o garoto já havia entendido que não deveria esperar respostas dela.
Sentou-se no piso esburacado, coçou a cabeça, confuso, e examinou outra vez a
menina, de alto a baixo, procurando arrumar os pensamentos.
-
Vi por onde você caiu aqui dentro. Foi um desabamento, não foi? Vai dar um
trabalhão para tapar o buraco. Fica alto demais. Mas, por fora, dá para
alcançar. Pelo telhado, sabe? Vou fazer isso de noite. Ninguém pode descobrir o
que tem aqui dentro, entende? A minha entrada é mais escondida. Era por onde os
carros entravam aqui. Carros, entende? Tem uns carros lá na garagem. Estão
quebrados, enferrujados, agora. Mas, as pessoas costumavam rodar pelas ruas
dentro deles. Você sabe do que estou falando? A minha entrada secreta é pela ladeira.
Dali, uma fenda na parede, e a gente passa para a garagem. Mas, está camuflada.
Ninguém vai encontrar. E a gente não
precisa sair daqui para nada. Tem tudo aqui dentro. É, a gente acha um bocado
de coisa boa, aí pelos corredores. Quer viver comigo, aqui dentro? Não vou mais
bater em você. Eu prometo!
<<<>>>
[08... continua]
A
lembrança do pai e de seus temores iam e vinham. Mas, Liana simplesmente não
sentia mais medo de Úgui. Não compreendia direito o que ele dizia. Não era só o
dialeto do bando. O jeito de falar estranho, de gente das ruas, que ela jamais
havia escutado. Ele também se referia a coisas que ela não conhecia. Mas, pelo
menos, carros, ela sabia o que era. Vira fotos nos livros. E desenhos, nas
histórias em quadrinhos que seu pai tinha na estante.
Só
que não estava interessada em conversar com Úgui. Os tapas que ele lhe dera ainda doíam. Quando
se convenceu de que ele não a agarraria de novo, deu-lhe as costas. Havia visto
no chão algo de que precisava. Um
espelho de parede. Podia ver seu corpo inteiro nele. Em seu quarto, no sobrado,
ela tinha um espelho de mão. Muito menor do que aquele.
-
Você não pode ficar solta pelas ruas. Você já é maior. Se um bando pega você,
vão obrigar você a ser namorada de alguém. Ou matam você, se pensarem que é
espiã de outro bando. E tem os mendigos, de dia. A gente nunca sabe o que eles
podem fazer, se pegarem alguém. E os bichos-blindados. Esses são os piores,
sabia? Levam você embora, daí você nunca mais volta.
A
superfície do espelho estava coberta de poeira. Com a barra da blusa, Liana
limpou-a. E afastou-se alguns passos para poder ver-se, refletida.
-
Sei de muitas histórias também. De como as coisas eram antigamente. Conto para
você, se quiser. Você pode ficar aqui. Vai ser melhor para você!
Mais
para o lado, havia uma trave de parede a parede, com alguns cabides pendurados.
Liana começou a recolhê-los. Úgui perdeu a paciência e tentou levá-la para fora
da loja. Com um safanão, Liana livrou-se, e não aceitou sair dali até ter
apanhado todos os cabides. Enfiou-os no braço, um por um, então deu a mão a
Úgui. Foi assim que deram seu primeiro passeio por aqueles corredores.
De
fato, a primeira vez em muitos anos que alguém voltava a caminhar de mãos dadas
pelos corredores daquele shopping. E chegando mesmo a parar nas vitrines que, entre
um ou outro objeto quebrado, ou pedaço de roupa rasgado, tinha coisas para se
olhar.
-
O pessoal costumava vir aqui... acho que de tarde... para fazer compras!
Compras, sabe o que é isso? Quer dizer, tinha muitas coisas aí dentro dessas
lojas. Daí, escolhiam o que queriam nas
vitrinas e levavam. Eu sei disso porque meu chefe... meu antigo chefe... o cara
que me criou... Ele me contou. Morreu num desabamento, mas.., Olhe! Essa loja
tinha coisas para comer. Tudo o que você quisesse comer, eles tinham. Era só
pegar. Antigamente, era assim. Como é seu nome? Eu me chamo...
Vez
por outra, Liana soltava a mão de Úgui e ia recolher alguma coisa do chão, ou
de dentro de uma vitrina. Como estava fazendo, antes de o garoto aparecer, cada
vez que seus braços ficavam cheios, empilhava os objetos, perfeitamente
arrumados, num canto, e recomeçava o trabalho.
Úgui
não sabia se a garota estava prestando atenção, ou não, ao que ele dizia. Por
via das dúvidas, não parava de falar.
[Episódio 09... dia 01/02]
[No Próximo Episódio]
Mas, havia uma coisa em Úgui que assustava Liana. E
muito. Ele também tinha uma loja que era só dele. Era no segundo andar.
Fechava-se ali dentro e havia proibido Liana de entrar. Ela sentiu que, pelo
menos dessa vez, era melhor obedecer.
Ele passava algum tempo lá todos os dias. E era o
jeito dele, quando saía, que assustava Liana.
O melhor, o jeito como olhava para ela.
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