terça-feira, 13 de setembro de 2016


EPISÓDIO 08


NO EPISÓDIO ANTERIOR... 
(enquanto Úgui e Liana têm um turbulento primeiro encontro num shopping em ruínas...) 

Aquilo fora uma avenida muito movimentada. Lojas, cinemas, bancos, academias de ginástica, estabelecimentos de serviços, no térreo. Prédios com escritórios, consultórios, residências, nos andares superiores. Tudo aquilo que estava tão silencioso, agora, tão parado como se nem o ar circulasse.




                Aos trancos, Úgui arrastou Liana pelos corredores do shopping. A garota lutava como podia. Acertava chutes no seu captor, arranhava-o. Conseguiu até mesmo, em dado momento, se desvencilhar dele e correr. Mas, Úgui a alcançou, derrubou-a, e dominou-a a tapas.
                O garoto estava indo ao desespero, sem saber mais o que fazer para conter Liana. E ainda acreditava que, de uma hora para a outra, o bando dela invadiria o lugar – seu esconderijo secreto, seu abrigo das últimas semanas.
                Se um bando descobrira a entrada para o shopping pelo alto da ladeira,  Úgui teria de fugir dali. Caso fosse capturado, não poderia esperar que o deixassem vivo. Era necessário que a garota não desse nenhum alarme.
                 - Seu pessoal vai procurar você, não vai? Vão demorar? Você é quem procura entradas nos prédios para o  bando? O seu grupo é grande? Diz!
                Liana não respondia. Continuava a se debater, o que deixava Úgui ainda mais nervoso. Estava perdendo tempo.
                - Escute ... Quem sabe posso entrar para o seu bando? Sou valente! Sei fazer muita coisa! Sei até mesmo treinar os menores. Faço isso bem! E pode dizer ao seu chefe que nunca vou querer tomar dele. Que tal assim?... Você fala com o seu chefe? É  a namorada dele?
                Liana conseguiu soltar um dos braços e deu no garoto uma bofetada que pegou em cheio na sua cara. Espantado, o menino foi lançado para trás. Mais uma vez, Liana fugiu dele, mas tropeçou em alguma coisa e rolou no chão. Já ia se levantando, ofegante, aos soluços, quando Úgui caiu sobre ela. Mas, dessa vez não bateu na garota.
                - Escute... Tô falando sério. Jogo aberto! Olha, eu estou sózinho. Não é uma armadilha. Não sou mais de bando nenhum. Escute... por favor!
                Só então Úgui reparou nas roupas que Liana vestia. Apesar de um pouco enlameadas, estavam em boas condições. Os rasgos haviam sido cerzidos cuidadosamente pelo pai da garota. Agarrou a seguir uma das mãos dela e examinou intrigado a pele sem manchas, as unhas, aparadas, limpas. Até o corte de jeitoso que Liana usava,  seus cabelos encaracolados caindo simetricamente sobre os ombros, lhe pareceu estranho. Nada parecido com o grosseiro corte que os membros do bando faziam uns nos outros. E havia mais uma porção de detalhes curiosos na garota, demonstrando cuidado, bons tratos... Nada indicava a vida de abandono que Úgui conhecia.
                - Mas, de onde você veio, menina?

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[08 ... continua]

                Liana o encarou com raiva. Lágrimas desciam, quentes, por suas faces. Os lábios tremiam.  Nem assim  a garota baixava a cabeça. Nem dizia coisa alguma. De repente, ela soltou um gemido e se encolheu toda.
                - O que foi? – exclamou Úgui, olhando em volta.
                Ele não poderia entender. Não havia como saber que naquele momento uma imagem do pai passara pela cabeça de Liana. E ela lembrara dos medos do encadernador. De suas recomendações contra tudo o que pudesse existir no mundo fora da oficina. O mundo onde ela estava agora. Sozinha, sem o pai.
                A cada soluço, o corpo da garota estremecia. Úgui não sabia o que fazer. Compreendeu que ela não tentaria mais escapar. Apurou os ouvidos, tentando pegar algum ruído. Mas, não parecia haver mais ninguém, naqueles corredores. Daí, puxou Liana e a fez levantar. Sem brutalidade dessa vez. Com calma.
                - Vem... vem...
                Conduzindo-a pela mão, Úgui penetrou numa das lojas. No fundo dela, havia um enorme rombo, por onde a luz exterior entrava. Deixando Liana de lado, um instante, o rapaz enfiou o corpo na abertura e assim teve uma visão completa da parte frontal do shopping e da paisagem em torno.
                - Não tem ninguém aí fora! – disse, voltando para Liana.
                Se um bando estivesse invadindo o shopping, um grupo pequeno entraria na frente, explorando, enquanto o resto do bando cercaria o lugar. Mas, não havia ninguém nos arredores.
                - E ainda está claro. Um bando não se arriscaria nas ruas a esta hora. Você está... sozinha, não está?
                Era uma ideia estranha. Sozinha. Sem bando. Mas, podia ser, sim. Ainda mais aquela garota que, pela aparência, nunca vivera nas ruas.
                No entanto, o garoto já havia entendido que não deveria esperar respostas dela. Sentou-se no piso esburacado, coçou a cabeça, confuso, e examinou outra vez a menina, de alto a baixo, procurando arrumar os pensamentos.
                - Vi por onde você caiu aqui dentro. Foi um desabamento, não foi? Vai dar um trabalhão para tapar o buraco. Fica alto demais. Mas, por fora, dá para alcançar. Pelo telhado, sabe? Vou fazer isso de noite. Ninguém pode descobrir o que tem aqui dentro, entende? A minha entrada é mais escondida. Era por onde os carros entravam aqui. Carros, entende? Tem uns carros lá na garagem. Estão quebrados, enferrujados, agora. Mas, as pessoas costumavam rodar pelas ruas dentro deles. Você sabe do que estou falando? A minha entrada secreta é pela ladeira. Dali, uma fenda na parede, e a gente passa para a garagem. Mas, está camuflada. Ninguém vai encontrar. E  a gente não precisa sair daqui para nada. Tem tudo aqui dentro. É, a gente acha um bocado de coisa boa, aí pelos corredores. Quer viver comigo, aqui dentro? Não vou mais bater em você. Eu prometo!

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[08... continua]

                A lembrança do pai e de seus temores iam e vinham. Mas, Liana simplesmente não sentia mais medo de Úgui. Não compreendia direito o que ele dizia. Não era só o dialeto do bando. O jeito de falar estranho, de gente das ruas, que ela jamais havia escutado. Ele também se referia a coisas que ela não conhecia. Mas, pelo menos, carros, ela sabia o que era. Vira fotos nos livros. E desenhos, nas histórias em quadrinhos que seu pai tinha na estante.
                Só que não estava interessada em conversar com Úgui.  Os tapas que ele lhe dera ainda doíam. Quando se convenceu de que ele não a agarraria de novo, deu-lhe as costas. Havia visto no chão algo  de que precisava. Um espelho de parede. Podia ver seu corpo inteiro nele. Em seu quarto, no sobrado, ela tinha um espelho de mão. Muito menor do que aquele.
                - Você não pode ficar solta pelas ruas. Você já é maior. Se um bando pega você, vão obrigar você a ser namorada de alguém. Ou matam você, se pensarem que é espiã de outro bando. E tem os mendigos, de dia. A gente nunca sabe o que eles podem fazer, se pegarem alguém. E os bichos-blindados. Esses são os piores, sabia? Levam você embora, daí você nunca mais volta.
                A superfície do espelho estava coberta de poeira. Com a barra da blusa, Liana limpou-a. E afastou-se alguns passos para poder ver-se, refletida.
                - Sei de muitas histórias também. De como as coisas eram antigamente. Conto para você, se quiser. Você pode ficar aqui. Vai ser melhor para você!
                Mais para o lado, havia uma trave de parede a parede, com alguns cabides pendurados. Liana começou a recolhê-los. Úgui perdeu a paciência e tentou levá-la para fora da loja. Com um safanão, Liana livrou-se, e não aceitou sair dali até ter apanhado todos os cabides. Enfiou-os no braço, um por um, então deu a mão a Úgui. Foi assim que deram seu primeiro passeio por aqueles corredores.
                De fato, a primeira vez em muitos anos que alguém voltava a caminhar de mãos dadas pelos corredores daquele shopping. E chegando mesmo a parar nas vitrines que, entre um ou outro objeto quebrado, ou pedaço de roupa rasgado, tinha coisas para se olhar.
                - O pessoal costumava vir aqui... acho que de tarde... para fazer compras! Compras, sabe o que é isso? Quer dizer, tinha muitas coisas aí dentro dessas lojas. Daí,  escolhiam o que queriam nas vitrinas e levavam. Eu sei disso porque meu chefe... meu antigo chefe... o cara que me criou... Ele me contou. Morreu num desabamento, mas.., Olhe! Essa loja tinha coisas para comer. Tudo o que você quisesse comer, eles tinham. Era só pegar. Antigamente, era assim. Como é seu nome? Eu me chamo...
                Vez por outra, Liana soltava a mão de Úgui e ia recolher alguma coisa do chão, ou de dentro de uma vitrina. Como estava fazendo, antes de o garoto aparecer, cada vez que seus braços ficavam cheios, empilhava os objetos, perfeitamente arrumados, num canto, e recomeçava o trabalho.
                Úgui não sabia se a garota estava prestando atenção, ou não, ao que ele dizia. Por via das dúvidas, não parava de falar.

[Episódio 09... dia 01/02]



[No Próximo Episódio]
                Mas, havia uma coisa em Úgui que assustava Liana. E muito. Ele também tinha uma loja que era só dele. Era no segundo andar. Fechava-se ali dentro e havia proibido Liana de entrar. Ela sentiu que, pelo menos dessa vez, era melhor obedecer.
                Ele passava algum tempo lá todos os dias. E era o jeito dele, quando saía, que assustava Liana.
                O melhor, o jeito como olhava para ela.

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