terça-feira, 13 de setembro de 2016



                                                                  EPISÓDIO 02


                                                                    A HORA DAS SOMBRAS



Luiz Antonio Aguiar


                O gerador de energia elétrica da delegacia continuava soltando fumaça.  Estava nas últimas. Irritado, e depois de mais de duas horas tentando inutilmente consertá-lo, o detetive Zeromeia deu-lhe uma cusparada e retornou à sala do plantão.

                - E aí? – perguntou o delegado Zerossix, com os fartos pelos do peito saltando fora da camisa aberta e mesmo assim suando desesperadamente. – Já podemos ligar o ar-condicionado?

                - Só se for para explodir de vez aquela porcaria. Cheira forte a  queimado,  o motor está travando e por dentro é só ferrugem. Nada mais encaixa direito! Uma buraqueira!

                - Então, vamos ter de continuar com as janelas escancaradas!... – suspirou Zerossix. - Respirando esse ar nojento!

                Zeromeia fez uma careta. O cheiro das ruas invadia a delegacia. Grudara-se nas paredes, nas roupas deles. Era insuportável.

                -  Quando é que nosso patrocinador vai se convencer de que precisamos de outro gerador? Entre outras coisas...

                Zerossix deu de ombros. Estava cansado de escutar aquela mesma reclamação de seu subordinado.  Pegou num canto um pequeno aparelho de tevê e começou a colocar as pilhas nele. Tirava sempre as pilhas, depois do uso, para poupá-las.

                - Não me diga que vai assistir ao programa político de hoje! – esbravejou Zeromeia. – Que desperdício de pilhas!

                - A esta hora, é só o que passam na tevê. Lembra dos programas de antigamente? Shows, novelas...? Pelo menos, com a tevê ligada, o plantão fica menos chato.

                - Mais tarde, tem os desenhos animados.

                - A tevê é minha. As pilhas também. Dá licença?


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(02/continuação ...)



                Zeromeia desistiu de discutir. Foi para sua mesa redigir mais um memorando ao patrocinador.


PARA:

SUPERVISÃO DO CONDOMÍNIO FORTIFICADO ATLÂNTICA SEREIA

DE:

                DELEGACIA SETOR 12

ASSUNTO:

                REPOSIÇÃO DE EQUIPAMENTOS


- A resposta vai ser como das vezes anteriores – grunhiu Zerossix, sem precisar olhar para o detetive. Já sabia o que ele estaria fazendo... O que sempre fazia... – Já têm o carimbo pronto: “INDEFERIDO POR CORTE DE CUSTOS”...

- Pelo menos, eu tento.

- É... – Zerossix soltou um escandaloso bocejo. Mas, a seguir, lembrou-se: - Ah... Recebi um comunicado pelo rádio, agorinha. Parece que um bando está fazendo uma barulheira enorme, numa das áreas da orla marítima.           

A imagem da tevê estava borrada de chuviscos. O som era fanhoso. Zerossix tentava sintonizar melhor, mas o aparelho de tevê não ajudava.

- Quer que eu mande um blindado para lá?  Acho que os malucões estão na ronda de hoje!

- Ah, os malucões... sim! Peça para trazerem algum prisioneiro vivo, desta vez.

- Se fosse tão fácil, já estávamos ricos.  Aqueles pivetes sabem andar por aí. São silenciosos como baratas. Espalham sempre vigias. Quando vêem as luzes do blindado, dão alarme e todos fogem. Cada um para um lado.  E é difícil avançar com um blindado no meio do lixo. Tem ainda os buracos... Se a gente tivesse helicópteros, como os seguranças dos condomínios da Zona Oeste...

-  Só que não temos! – cortou Zerossix. – E nosso trabalho é assim. Se estiver cansado, peça demissão!

Zeromeia bufou. Quase explodiu. Por precaução, a mão direita de seu chefe, discretamente, correu para a coronha da pistola, no coldre. Tudo isso sem olhar para o subordinado.


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(02/continuação...)


Por dois segundos, pouco mais, a situação ficou tensa. Mas, Zeromeia cuidou de desfazer o clima, lembrando:

- Na semana passada, conseguimos capturar uma garota. Foi uma boa venda!

- Pura sorte. Ela perdeu-se do bando. Isso é raro. Tentou voltar para o esconderijo e caiu numa cratera. Ficou atolada no lixo, desmaiada.  Se estivesse solta na rua, ia ser mais difícil. Shhhh! – fez ele. – Cala a boca. Vai começar!

- Outro discurso! – rugiu Zeromeia, erguendo-se ameaçadoramente.

Zerossix puxou sua pistola e soltou a trava de segurança. Zerossix encarou-o por um segundo. Sabia que seu chefe tinha uma mira letal. Então, preferiu baixar a cabeça e sentar de volta, enquanto um senhor de terno escuro,  caro, olhar confiante, meio sorriso nos lábios, cabelos com mechas brancas e unhas bem tratadas, conclamava:

- Concidadãs! Concidadãos!

- É o Presidente! – murmurou Zerossix, num tom de quem propõe trégua.

- Presidente do quê? – resmungou Zeromeia.

– Ora...! – Zerossix deu de ombros.

Zeromeia insistiu:

- E onde ficam esses caras?

- No exterior ... Eu não sei. Ninguém sabe! Quero ouvir!

                Zeromeia  disse a si mesmo que, inutilidade por inutilidade, preferia escrever outro memorando desaforado, que jamais seria lido por quem poderia tomar alguma providência. O presidente discursava:

                Desta vez, não tenho dúvidas em anunciar que retomaremos o rumo do progresso e reconstruiremos nossa pátria. Quase trinta anos de recessão fizeram muitos esquecerem coisas importantes. Mas, não o Governo. Os governantes não podem nem por um instante deixar de trabalhar pelo bem nacional. Pelo país. E o país está no rumo certo. Há pessoas que dizem que o país não existe mais. Mas, esses não contam. Queremos os cidadãos de verdade. Os patriotas. Os que nunca deixaram de acreditar na possibilidade desta terra assumir de volta o lugar que merece entre as grandes potências mundiais. Queremos os que se dispõem a mais um sacrifício pelo futuro. Um sacrifício amargo, mas necessário.  Mais um pouco de paciência. Que se mantenham em ordem. Em paz. Colaborem com o bem comum, e logo os primeiros impostos serão cobrados. Impostos. Recadastramento geral dos cidadãos. Organização social. Estado trabalhando. É o futuro que nos aguarda. E prometo que isso acontecerá em breve. A falência da nossa economia está com os dias contados. A destruição moral de nossa pátria, a partir de hoje, começa a ser superada. Vamos fundar uma nova era. Uma nova economia. Um país novo! Uma nação unida em torno de seus ideais. De sua história. De suas esperanças. Povo e governo juntos na conquista deste grande momento nacional! Nação para todos! O amanhã começa AGORA!

                - Mas,  que governo? -  provocou  Zeromeia, exasperando seu chefe.

                - O nosso, idiota! – berrou Zerossix. - Eles venceram as pesquisas de opinião, não venceram?

                Foi a vez de Zeromeia ficar furioso e retrucar, abandonando de vez o memorando.

                - Eu é que sou idiota? Então, eles venceram as pesquisas de opinião! Mas, quem sobrou para responder as pesquisas, aí pelas ruas? As sombras? Ou será que foram bater de porta em porta das casas desabadas? Você respondeu a alguma pesquisa?

                - Claro que não! – disse Zerossix, acuado. – Mas, que ideias são essas? Você virou um revoltado?

                - Não! Sou um imbecil suado, que lava suas cuecas uma vez por semana, quando vem algum caminhão pipa por estes lados, e mora nos fundos da delegacia, no cortiço que chamam de alojamento dos tiras. E sou um cara que não sabe que porcaria de governo é esse, nem onde ele está trabalhando, se é que faz alguma coisa. Já você, sabe de tudo, e acha que tem governo! Que eles governam para a gente! Lá no bem bom para onde escaparam desta imundície em que nos deixaram!

                - Você é, sim, um revoltado, Zeromeia!  Eu já desconfiava. Esses seus memorandos...!

                Mais um instante de tensão. Ambos, quase sem sentir, estavam prestes a apontar suas pistolas. Mas, ambos também, quase ao mesmo tempo, tiveram o mesmo receio... que sua arma, tão antiga, sem manutenção adequada, engasgasse...

               

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(02/continuação...)


- Olha aqui, Zeromeia! – disse o Zerossix, em tom conciliador. – Não estou me importando se a gente tem governo ou não. Não é o meu governo. Não é governo de ninguém. Eu sei disso... Mas, esses seus memorandos me deixam preocupados. E se o patrocinador se irritar? E se romper o contrato? Tem muita delegacia querendo nosso cliente. Você sabe... Doidas para fornecer moleques para o Atlântica Sereia. As capturas estão rareando pra todo mundo. Não sobrou mais pivete vivo na rua como antigamente. Havia fartura deles, até um tempo atrás. Mas, isso acabou ... Paciência! Os negócios estão difíceis! É, estão...  Pra piorar, tem aqueles piratas contrabandeando pivetes para o exterior. É mole? E os centros de lazer dos funcionários não graduados dos condomínios? Eles têm serviço de captura próprio. Sabe o que isso quer dizer? Que a concorrência é dura. Não tem colega! Não tem respeito nem consideração. São todos uns canalhas! E o mais canalha é que vence! A gente não pode ficar fora do mercado, não é? Tá reclamando do alojamento? Do trabalho? Tem coisa pior! Bem pior...

                “Deixar de trabalhar pro patrocinador, por exemplo”, refletiu Zeromeia, emudecido. “Ficar sem emprego, na sarjeta...Ter de se garantir nas ruas!”...

                - Vou dizer só mais uma coisa – murmurou Zeromeia, sem querer se render de vez. – Vai ver são os patrocinadores que escolhem quem vai falar nesse programa político. Vai ver são eles quem escolhem quem fica no governo. Lá fora. Longe daqui. Numa boa. Reparou no terno do cara? Onde se compra uma coisa daquelas? Eu nem sei, você sabe? Duvido. Aqui, não tem nada parecido faz tempo. Mas, eles estão legais, lá fora, graças a esses títulos, presidente, ministro, essas coisas. Se o título é fajuto,  não interessa ao pessoal de lá. Gastam. Vivem no luxo. O resto que se dane. E o resto somos todos nós!

                - Você é um intelectual, Zeromeia! – disse, rindo Zerossix. – Já entendi essa sua história dos memorando para os patrocinadores. Quer ver se alguém acha você inteligente o bastante para aparecer na tevê.

                - Quem sabe? – sorriu, satisfeito, Zeromeia.

                - Legal! Deputado Zeromeia! Senador Zeromeia! Prefeito Zeromeia!... Opa! Acabou o programa político. Vão começar os desenhos animados... Quer... assistir comigo?

                Zeromeia levou sua cadeira para diante do pequeno aparelho. A imagem em preto e branco sumiu por instantes, para reaparecer depois, bastante chuviscada.

                - Eram coloridos, antes, os desenhos... não eram? – indagou, lamentando, Zeromeia.

                - Antes, eram – disse Zerossix, com um suspiro.

                E depois se calaram. Logo, estavam se contorcendo de rir das trapalhas do Coelho Patacomprida e do Pato Descarado... E riam tanto que começaram a tossir, os pulmões ardendo, o ar descendo áspero pela traqueia... Mas, pelo menos, a discussão entre os dois estava esquecida. Coisa de colegas. Besteiras. Ninguém iria estourar os miolos de ninguém por causa disso. Ainda mais sob o risco da sua pistola negar fogo e a do outro, por sorte, funcionar, e dele acertá-lo bem no meio da testa. 

               

(fim do Episódio 02... 
                                                                                                                                                       Episódio 03...  dia 21/12)

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