terça-feira, 13 de setembro de 2016

Episódio 03

               
                Náique farejava o ar pestilento do interior do velho cinema, como se pudesse distinguir o cheiro de Úgui.
                E talvez pudesse. Era um excelente caçador. Os garotos o admiravam muito por isso.
                O grupo era o mesmo que havia emboscado o chefe deposto. Náique e mais quatro. Eram os únicos que tiveram coragem de entrar nas ruínas do que fora o cinema Roxy. O resto do bando, amedrontado com a história do vampiro, esperava lá fora, fazendo o cerco.
                Úgui movia-se silenciosamente, ao longo da murada do balcão superior. Acompanhava as chamas das tochas que circulavam entre as fileiras de poltronas destroçadas da plateia. Náique estava exatamente embaixo dele.
                “Um salto bem dado e quebro o pescoço do traidorzinho. Daí,  ele  não vai ter o gosto de ficar de chefe no meu lugar!”
                Mas... e se apenas machucasse Náique levemente? E se levasse a pior na queda? E o que faria, quando os outros garotos viessem para cima dele?
                No entanto, sabia que terminaria mesmo por arriscar alguma coisa desesperada. Náique tinha instintos. Adivinhava o que sua caça pretendia fazer.  
                Logo, pressentiu que Náique comandava os garotos para o balcão do segundo andar:
                “O pivete desgraçado aprendeu tudo comigo!”, rugiu Úgui por dentro, lembrando-se...
                - Pra onde a gente vai quando os bichos-blindados pegam a gente?
                Era Náique, ainda pequeno. Os olhos cheios de lágrimas, depois de ter assistido a uma cena cruel. Úgui sentira enorme embaraço, sem conseguir responder. De repente, teve uma ideia:
                - Você lembra – disse, abraçando o menino ... – que eu contei que o pessoal de antigamente achava que a gente era levado para o céu...?
                - Quando morre...? – murmurou Náique.
                - É... – disse, hesitando, Úgui. – Daí, a gente vai ficar bem. Lá no céu! Diferente daqui!
                - Mas, não podiam levar a gente... de um jeito bom?...
               
<<<>>> 


(03 ... continuação)
- Vai ver... não é tão ruim assim. Náique, não se preocupe. Os bichos-blindados só pegam os garotos mais velhos. Você é pequeno ainda.  
                - Mas, e quando eu crescer?
                - Daí, você vai ter aprendido a escapar dos bichos-blindados. Como eu.
                Naique não pareceu satisfeito. Logo, disse, magoado:
                - Você mentiu, não foi?
                - Menti, o quê?
                - Você tinha dito que quem levava a gente para o céu era anjo. Mas,  o bicho-blindado jogou uma rede e pegou a Iéssi. A rede ficou presa, daí eu vi. Saindo do blindado.  Os tiras. Arrastaram a rede para dentro dele, com a Iéssi. Tiras! Nada de anjos!  Nem se importaram com os berros dela. E ela estava apavorada, chorando. Se debatendo. Implorando que soltassem ela. Machucaram ela.  Bateram. Muito. Não eram anjos. Anjos não iam fazer assim. Para onde foi minha Iéssi?
                Era Iéssi quem cuidava de Náique no bando. E, quando ela foi capturada, Úgui ficou com o menino. Sempre soube que tinha desapontado Náique, com aquela história sobre anjos. Só que nem que quisesse poderia ter sido mais convincente.
                “Ele vai aprender isso. É o chefe do bando, agora!”... pensou Úgui, se esgueirando. Sabia que Naíque sabia que ele estava ali. Logo seu esconderijo se tornaria uma arapuca, e ele precisava escapar. No entanto,  se naquela noite, anos atrás, tivesse arranjado respostas melhores, Náique talvez não o tivesse deposto, nem estaria lá embaixo, agora, atiçando os garotos para encontrá-lo.
                E já haviam terminado a revista do andar debaixo.
                Fora o mesmo Náique, já maior, quem acusara Úgui. Na frente de todos, de abandonar o bando. Úgui se ausentava por vários dias sem dizer a ninguém aonde ia. Aquilo vinha se repetindo.  O bando se ressentia da sua falta. Principalmente, os garotos menores, que ficavam sem respostas para suas perguntas.
                Úgui não se perdoava por ter deixado de perceber que, aos poucos, Náique fora tomando seu lugar no coração do bando. Ou então, percebera, mas estava sendo tão importante se afastar, ficar a sós com suas próprias perguntas...
                Se bem que, essas,  não havia ninguém para responder.
                Úgui treinara Náique. E Náique se tornara o melhor guia que Úgui já vira. Quando algum membro do bando era capturado – e havia o risco do esconderijo ser delatado -, precisavam mudar-se rapidamente. Sempre havia um outro lugar, já escolhido, de reserva. Mas era uma escolha do chefe e somente o chefe sabia onde ficava.
                Nem sempre estavam todos reunidos. Muitos estavam explorando. Caçando. Atravessando a noite, nas ruas. Os guias, como Náique, iam atrás dos grupos dispersos e os conduziam ao novo esconderijo. Náique raramente deixava de encontra-los. Também era ótimo para encontrar as crianças menores, que viviam se perdendo. E ninguém era valente como ele, nas brigas com os outros bandos. Fabricava estiletes – os furadores  -, socadeiras, porretes e armadilhas como ninguém.
                “Ficou melhor do que eu em tudo...”, disse a si mesmo Úgui. E agora, era Náique que o estava caçando. Que iria mata-lo, se o agarrasse. Escutou os garotos lá embaixo conversando entre si. Era mau sinal, que não se preocupassem em abafar a voz. Que não se importassem que Úgui os ouvisse...
<<<>>> 


(03... continuação)
                - Acha mesmo que ele está aqui dentro, Náique?
                - O sangue no lixo lá fora. Tem um rastro até aqui. Ele perdeu os tênis, não foi?
                Úgui quase foi à loucura, lembrando as muitas e muitas noites que saíra com Náique, somente os dois, para ensinar seu aprendiz a enxergar rastros nos monturos de lixo.
                Agora, sem sentir, havia rastejado para junto do cartaz do vampiro, Os olhos do monstro tentavam atraí-lo de novo! Entretanto, Úgui tinha mais com que se preocupar. Não tinha tempo para ficar com medo. Mandou, em pensamento, o vampiro, então, fosse o que ele fosse, para algum lugar bem sujo e indecente.
                Conseguira encontrar um cano de ferro. Era sua única arma. Contava ainda que teria algum tempo, devido à dificuldade dos garotos de escalar os destroços até o segundo andar. Sabia que Náique viria na frente. Daí, quando pulasse para o balcão, Úgui saltaria da escuridão e esmigalharia seus miolos. Era esse seu plano.
                “Então, jogo destroços nos outros. Vão estar no meio da subida. Se eu acertar, eles despencam! É minha vez de emboscar vocês, otários!”
                No entanto, Náique permanecia imóvel, examinando a subida até o segundo andar.
                “Sobe logo, cretino! Vem me pegar”, torcia mudamente Úgui,  com raiva, desespero, trêmulo. Mas, Náique não se movia.
                Quando um dos garotos fez menção de enfiar o pé num dos buracos da parede e começar a subir, Náique o puxou para trás.
                - Não!... – disse o novo chefe.
                - Mas...
                - Ele está esperando a gente!
                Então, segredou algo no ouvido do garoto, que puxou os demais e retornou à plateia principal. Náique ficou de vigia, no pé do monturo de escombros, seus olhos varrendo a escuridão do andar superior.
                Do seu esconderijo, Úgui percebeu o clarão. Escutou a algazarra dos garotos, os gritos para todos saírem do cinema. Não teve a menor dúvida do que ia acontecer. Se fosse ele o chefe, usaria  uma tática parecida. Nunca iria seguir pelo caminho previsto. Nunca entraria obedientemente numa armadilha. Tinha ensinado isso a Náique. E só não entendia como ele próprio não soubera se defender, quando Náique e os outros montaram a cilada contra ele.  Talvez, estivesse cansado. De tudo.
                O estofamento das poltronas queimava depressa. Todo o cinema logo se encheu de fumaça. O calor transformou o interior do prédio num forno. Úgui sabia que dispunha de pouquíssimo tempo. Mas, também ele  não se renderia ao lance forçado. Não faria o que esperavam que fizesse.
                Com retalhos do plástico que forrava as poltronas, às pressas, fabricou proteções para os pés. Daí,  um naco de cimento numa mão, o cano na outra, passou correndo pelo retrato do vampiro. O reflexo do fogo, naqueles olhos já vermelhos, parecia fazer todo o rosto do monstro sorrir. Até então, Úgui não sabia que a maldade era capaz de sorrir. De assistir a cena, vê-lo, ali, morrer queimado... e sorrir. Ser cruel e feliz ao mesmo tempo.
                - Você vai queimar, maldito! Ouviu, vampiro canalha? É o seu fim!
                Na plateia, os garotos seguiram Náique, abandonando rapidamente o cinema. As chamas iluminavam o salão, agora, que , desse modo, pareceu crescer. E com o crepitar do fogo, era possível imaginar como seriam aquelas poltronas ocupadas por uma garotada alegre, barulhenta, rindo, fazendo bagunça, gritando de ansiedade pelo filme que já iria começar.
                As paredes começaram a rachar. Poeira e fumaça negra, espessa preencheram tudo. Mal enxergando em volta, Úgui lançou-se pelo monturo abaixo, pronto para enfrentar seus perseguidores. Mas, não havia mais nem sinal de Náique e dos outros garotos. Já previra isso. Só que não tinha alternativa. Precisaria sair do prédio. Mesmo sabendo que Naique e todo o bando estavam aguardando, do lado de fora,  para cair sobre ele e espancá-lo até a morte.


(uma provinha do ...EPISÓDIO 04)

                A marquise do velho cinema ruiu com enorme estrondo e muita poeira, sobre as colunas que a sustentavam e que foram pintadas de vermelho, um dia. Enormes pedaços da fachada se desprendiam, enquanto o prédio de cerca de quinze andares vinha abaixo em meio a uma inacreditável nuvem de destroços. Tudo desabou de repente, cedendo de podre, depois de anos e anos de deterioração. O incêndio só fizera enfraquecer de vez as estruturas. Bolas de fogo foram projetadas à distância. A destruição era tanta que foi como se  um míssil tivesse acabado de ser lançado sobre quarteirão.


(Episódio 04 continua... dia 28 de dezembro) ...

Nenhum comentário:

Postar um comentário