EPISÓDIO 2
Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!
Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!
Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário.
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar.
... E mais todos os paparicos que esperava receber do pai e da
mãe.
... E o ciumeco que contava causar em
seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter
de aturar Nani na posição de dono da festa.
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote
completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu.
Para piorar, entraram no jogo uns certos DADOS amaldiçoados, que haviam sido encontrados no Grande Bazar de Istambul, tempos atrás...
Aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido.
De volta ao Estranho
Aniversário de Nani
13 de Agosto
10 hs da manhã
Danado da vida por ter sido
abandonado pela sua família, Nani resolveu dar uma descida e ir à Além da
Imaginação, ver se encontrava amigos, ou qualquer um que não tivesse esquecido
seu aniversário.
No térreo do prédio, ao longo da
calçada, além da portaria do edifício, que dava acesso para os apartamentos
residenciais, havia uma fileira de lojas. Havia uma lanchonete, na esquina, a Sucos e Sucatas, com os sanduíches mais trash do bairro, depois o (In)famous, um salão de cabelereiro e
manicura, a 1001 Bolos, cujo nome
dispensa explicações, e a maior delas, a Além
da Imaginação.
Maior até porque, além da parte
da frente, onde se atendiam os clientes – antro dominado pela Lúcio Sorriso e
seus rancores contra qualquer ser vivente
- havia toda a parte dos fundos,
onde a garotada da vizinhança costumava se reunir. A passagem era protegida por
um biombo alto, com desenhos escandalosamente vermelhos-sangue escorrendo pelo
fundo negro das placas de madeira.
Era quase um clube secreto. (Era
chamada assim mesmo: Clube.)
Lá , nerd não precisava se proteger com identidade secreta, sentia-se
dentro da sua caverna, rodeado sua
tribo. Nani vivia mais lá do que em seu apartamento, até porque seu melhor
amigo, Lucio Filho, era filho do dono da loja.
Isso sem contar que Nani era o considerado O Fera
nos joguinhos de computador. Um verdadeiro rei do pedaço. O cara a ser batido.
E estava crente que a turma – todos já sabendo que era aniversário dele, e logo
13 anos numa sexta-feira, 13 de agosto, uma data nobre – ia armar uma homenagem nerdiana para ele. No mínimo, iam se
posicionar em duas alas e erguer os sabres de luz como num túnel, para que ele
passasse sob eles, recebendo reverências.
No entanto, menos de três
segundos depois de ter aberto a porta, empolgadíssimo com o que esperava
encontrar lá dentro, murchou.
Não tinha ninguém lá.
Nenhum de seus companheiros de
batalhas.
O que era estranhíssimo para um feriado.
Nem mesmo Lúcio Pai. O silêncio
era tamanho que Nani chegou a sentir falta dos resmungos do Sr. Sorriso.
“Será que estão entocados no Clube?”, pensou esperançoso...
Mas, já sabia que não ia
encontrar nada disso. Tudo quieto demais. Parado demais. Dava para sentir que
não havia vibração nenhuma vindo de lá...
E, de fato, o Clube estava
deserto.
Metade da manhã de um feriado
(mesmo sendo um feriado que ninguém explicara até agora, só decretara e
pronto), e ninguém à vista.
E o mais esquisito...
Nada da bagunça que os
frequentadores da loja, por hábito, faziam.
As prateleiras estavam
absolutamente arrumadas e em ordem. Nada largado sobre os balcões. Os bonecos
de personagens de jogos e filmes, todos aqueles bruxos, extraterrestres e
extragalácticos, monstros e heróis e guerreiros, princesas enfeitiçadas, robôs
e autômatos, com seus olhos parados, pareciam ter algo para contar, mas estavam
mais imóveis e silenciosos do que nunca. Até mesmo as estantes de livros do
Clube estavam perfeitamente arrumadas, nenhum livro retirado e aberto sobre alguma
das mesas em torno da qual a galera se reunia. Nada, nada, nada.
Um nada sobrenatural.
Como se num determinado instante,
todos as criaturas vivas tivessem sido sorvidas dali – para onde, não se podia
saber – e extraídas para fora dos cenários.
Cenários que haviam permanecido mornos, como se a presença humana
recente tivesse deixado rastros que ainda não haviam se apagado completamente.
E isso dava nos nervos do garoto.
“Sim, é mais ou menos isso...”,
entendeu Nani. “Uma presença invisível... Como se alguma coisa estivesse aqui... Só que a gente não
vê...Que raio!”...
De repente...
Um esqueleto.
Despencando sobre Nani.
Se requebrando, rebolando,
agitando os braços como se estivesse na torcida do Mengão. E com um sorriso
cretino no rosto. Ou melhor, não havia rosto. Havia o crânio, os buracos de
onde olhos havia caído, as mandíbulas, aqueles dentes muito brancos e gastos...
A coisa ossuda deu uma cambalhota no ar –
braços e pernas numa pirueta desconjuntada, mandíbulas batendo como se fosse um
chocalho.
E estendeu para ele, não
exatamente seus braços, mas o que foram seus braços, antes do túmulo e dos
vermes, ou seja... seus úmeros, rádios e ulnas... Estendeu-os para ele,
como se tentasse agarrá-lo.
Nani berrou.
Um desses berros que a gente
somente solta nos pesadelos... quando a coisa medonha que está para nos agarrar
dá o bote às nossas costas. A gente não vê. Pressente. A sombra pesada
desabando em cima da gente. As garras da coisa. Quase perfurando nossa carne...
quase... chegando, chegando e ... quase...
E só o que resta é mesmo berrar!
Paralisado...
...o berro dele ecoando nas
paredes do Clube.
... a coisa ainda mais chacoalhada, mais
desconjuntada...
... Então...
JOCA
- Guri!
– gritou, irritado Lucio Pai, surgindo de repente. – Cuidado! Não quebre o
Joca!
Tarde
demais. Nani saltou de banda e a coisa veio abaixo, trincando vários de seus
ossos.
- Mas,
que raio ...? Hem?
- Não olha por onde anda? Você esbarrou
nele! – continuou gritando Lucio Pai,
correndo para socorrer o esqueleto.
O dono
da loja, tão popular por seu sorriso
constante, recolheu Joca do chão, com o maior afeto que se pode ter por uma
ossada. Não conseguiu evitar que o crânio de Joca se deslocasse e ficasse
pendurado.
- Essa
coisa é de verdade? – gaguejou Nani, se levantando.
- Mais
de verdade do que você. E tinha que berrar daquele jeito? Você me deu um susto,
sabia?
- Eu...
dei um susto em você? Puxa, desculpe...
Naquele
instante, Lucio Filho entrou no Clube. Vinha apressado e com uma expressão
tensa, como se tivesse algo muito importante para fazer. Chegou a ensaiar uma
careta, quando deu com Nani ali. Lucio Pai desapareceu numa salinha lateral,
onde tinha a sua oficina, na loja, carregando seu amigo e resmungando.
- Oi,
cara! – disse Lucio Filho. – Olha, é uma hora ruim, tá sabendo? Tô ocupado. Não
marquei nada com você hoje, marquei?
- Como
é que é? – exclamou, injuriado Nani. – Mas, você esqueceu que dia é hoje?
-
Hem?... – murmurou o garoto, parecendo zonzo.
- Ah,
deixa pra lá... -, disse Nani, chateado.
– Cadê o resto da turma? Como é que não tem ninguém aqui num feriado?
- Feriado?
- É,
hoje não é feriado?
- Nem
sabia... é?
- Você
reparou que não teve colégio hoje? –
- É,
não tive, mas, não me lembro por quê... Olha, Nani. Tô falando sério. Tenho uma
coisa importante pra fazer. Foi por isso que mandei mensagem pra galera,
dizendo pra ninguém aparecer. Vamos até fechar mais cedo, hoje.
-
Vocês...? Mas, que raio! Tá todo mundo me abandonando! Fui esquecido no mundo!
- Nani,
do que é que você está falando?
- Não
interessa... Você é só o meu melhor amigo, por que ia saber?
- Hem?
Como é que é? Nani... você está esquisito à beça!
- Eu!
Tá... Então, tô esquisito. E não vai aparecer ninguém no Clube, hoje. Ninguém
se lembrou, né?
- Não
vai, não!... Peraí! Lembrar o quê? Olha... – Lucio respirou fundo e deu uma
espiada de quina para o lado da oficina do pai. A porta dele estava fechada. –
Nani, sério. Tô numa encrenca. Mas, meu pai não pode saber de nada.
-
Pensei que bruxo pudesse ler pensamentos.
- Larga
disso, Nani! – o garoto hesitou por um instante, depois puxou a manga da
camiseta do amigo. – Vem cá. Vou mostrar a você. Mas, não pode contar pra
ninguém, tá?
- Um
joguinho novo? – indagou Nani curioso.
- Queria
que fosse... ! – disse Lucio, e atravessou o Clube, até um canto onde havia um
armário, no qual o garoto guardava suas coisas.
“É
impressão minha, ou as mãos do LFo
estão tremendo...?”, preocupou-se Nani, enquanto o amigo erguia a tampa da
arca.
- Aqui!
Meu pai ainda não deu pela falta! E agora eu não sei se vai dar pra devolver...
Nani
aproximou-se. Nas mãos do amigo, estava uma pequena caixa de madeira escura.
Tinha um símbolo gravado em dourado, na tampa, que parecia um “D”.
UM SINISTRO TILINTAR METÁLICO
- É por
causa do meu tio, que seu pai está ... um pouco... mais mal-humorado do que de
costume? Ele passou aqui na loja, hoje?
-
Nada disso, cara! – protestou Lucio Filho. Tô falando sério!
Nani sabia que a Além da Imaginação corria o risco de fechar. E só de pensar nisso,
sentia uma certa culpa. Porque o vilão dessa história era o irmão da mãe dele,
a quem o pai de Nani, Felipe, chamava de Ricard-o-Ogro, o dono daquelas lojas, no térreo do prédio. O
caso é que agora ele estava querendo um
aumento de aluguel tipo arrasador. Não ia dar para o Lucio Sorriso bancar.
- Vou acabar com ele, nas próximas eleições para
síndico! – prometia Felipe. – Ele acha que só porque mora na cobertura vai
ficar eternamente no cargo? E grosso do jeito que ele é? Ganha sempre no grito,
assustando todo mundo na assembleia dos condôminos! Mas, vou me candidatar! Vou
concorrer também! Ah, dessa vez, ele vai ver só!
Marieta,
a mãe de Nani, nascera num circo. O dono era pai dela, o famoso Palhaço Crisoldo.
Ela e o irmão haviam sido criados sob tendas, dentro de trailers. Depois, foram
estudar cada qual numa cidade, e perderam contato por anos. Um belo dia, ela e
Felipe receberam a notícia de que Ricardo
vinha morar no mesmo prédio que eles. A alegria do reencontro durou menos de um mês. Ricardo havia se
transformado num sujeito que tomava atitudes que Marieta não aprovava. Já
Felipe, não o aturava de jeito nenhum. Mesmo assim, a mãe de Nani, não se tocava
tanto com as raivas do marido e, sobre a disputa dos dois, cortava direto:
- Briga
de garotos! – resmungava ela.
E o
deboche da mulher deixava Felipe ainda mais zangado.
Mas, nem mesmo Ricard-o-Ogro seria
capaz de cravar aquele olhar assustado no rosto de Lucio Filho. Não, não...
Nani já tinha percebido que só podia ser outra
coisa...
Sempre preocupado, vigiando a
porta da oficina do pai, Lucio Filho levantou a tampa da caixa. O interior era
forrado de veludo vermelho. E nela havia três dados de bronze. Não havia
números nas faces dos dados, mas desenhos que Nani nunca vira nem em joguinho
de fantasia multidimensional, nem em filme extragaláctico, nem em livros sobre segredos ultratemporais...
- Dados? – estranhou Nani. – Dados de verdade?
Quer dizer... não são digitais?
- Já
disse que não é um joguinho de computador – disse Lucio Filho aflito, como se
tivesse pouco tempo de sobra.
- E o
que é, então, cara? Não vai me dizer? Ou não sabe?
-
Droga! – exclamou Lucio Filho balançando a cabeça. – Eu não deveria ter tirado
essa coisa da oficina do meu pai. Mas, dei com essa caixa esquisita, abri,
tinha os dados dentro... Achei legais os dados, então quis experimentar. Mas,
quando peguei essas coisas e rolei elas na mão, começaram a acontecer umas
coisas...
- Que
coisas? – perguntou Nani, cada vez mais intrigado, mais curioso. E seus dedos
começaram a formigar de vontade de pegar naqueles maneiríssimos dados de
bronze.
-
Coisas estranhas... – respondeu Lucio Filho em voz baixa, quase um cochicho,
olhando para todos os lados, agora. Nani entortou a boca, com jeito de quem diz
que não estava entendendo nada, mas começava a achar que o amigo estivesse delirado. Então, Lúcio Filho finalmente
falou: – Tem uma maldição nesses dados.
- Hem?
– exclamou Nani, recuando um passo.
- Você
nunca escutou falar em Mestre Diábolo,
né?
- Nerd
novo na loja?
- Não!
– replicou Lucio Filho impaciente. – Nem perto... !
- Cara,
do que é que você está falando, hem? Ou melhor, do que é que a gente está
falando?
Nesse
momento, escutou-se um chocalhar de ossos. Lucio Filho fechou a tampa do baú de madeira escura e o escondeu,
rapidamente, atrás das costas. A porta da oficina se abriu e o rosto fechado de
Lucio Pai surgiu lá de dentro:
-
Filho! Me ajuda aqui! Preciso de ajuda para colar o Joca, que esse seu amigo
desastrado aleijou!
- Tô
indo, pai! – respondeu o garoto.
Lucio
Pai desapareceu de novo dentro da oficina, deixando a porta aberta atrás de si.
O filho agachou-se, por trás de uma poltrona, e escondeu o baú de madeira lá.
Então, cheio de pressa, passou por Nani, cochichando:
- Não
mexe em nada, tá? Senão...! Volto num
segundinho!
- Tá...
-, respondeu o aniversariante frustrado do dia.
Mas, o
caso é que Nani já sabia que estava mentindo. Nunca iria conseguir fazer o que amigo tinha pedido. Ou melhor, nunca
seria capaz de não fazer o que ele,
bastante diretamente, tinha lhe dito que não fizesse.
E, sim, ele fez...
Ah, aquela pequena arca, com o
símbolo estranho gravado (“Em fogo? e tinta de ouro por cima? UAU!!!D+++++! ”)
era irresistível, não era?
Mal
Lucio Filho sumiu pela porta da oficina, Nani correu para a poltrona, tirou o
baú do esconderijo e o abriu. Lá estavam os dados.
Era
certo que Lucio estava estranho. Ou melhor, um pouco mais estranho do que de
costume. “Afinal, ter um pai desses deve deixar qualquer um maluco”, dizia
sempre Nani para si mesmo. Ou seja, um pai do tipo que, numa estante da sua
oficina, segundo Lucio Filho contava (Nani nunca se atrevera a entrar no antro
do zumbi), tinha frascos com rótulos
como: “Saliva Cristalizada de Aranha Devoradora de Gente, coletada no período
de digestão da Língua de um Político Corrupto Defendendo-se das Acusações em
Público”; ou “Escamas de Encantadores de
Serpentes que nisso foram transformadas por Feitiços, mas que originalmente eram
Agiotas”; ou “Fiapos de Hálito de Aves de Rapina, depois de comerem Carcaça de
Quem Nunca Assistiu um Filme Nerd nem leu um livro do Gênero”...)
- São
somente nomes de código – explicara Lúcio Filho, na ocasião. – É para ninguém descobrir os ingredientes
que ele usa nas alquimias dele. No fundo, meu pai tem uma pontinha de bom
humor, sabia?
- Não,
nunca desconfiei – respondeu Nani. E completou sem perceber que o amigo traíra
na voz um certo tom de mágoa. – Ele
guarda esse segredo bem à beça, né?
- Para
de zoar com meu pai, tá? Ele... é ele e pronto! Faz mal a alguém, por acaso?
Lucio Filho detestava que todo
mundo debochasse do pai pelas costas e
que o achassem tão de outro universo... um ser exodimensional, ou algo assim. Além
disso, vivia dizendo que achava o pai solitário demais, desde que a mãe, a
mulher de Lúcio, tinha morrido, quando o menino ainda era bem pequeno.
Mas, Nani passou batido por todos
esses pensamentos. Estava impaciente, Lucio Filho demorava a voltar, e lá estavam os dados, no baú.
Parecendo mais antigos do que nunca e possuir mais segredos do que era possível
imaginar. Ao alcance dos dedos, da mão.
Horas
depois, Nani se perguntaria se naqueles últimos momentos era ele mesmo
pensando, ou alguma voz vírtuo-qualquer-coisa-também infectando seus miolos.
Foi sem
sentir. Em dois segundos, tinha os três dados na palma da mão. E os estava
rolando, fazendo se chocarem e emitir um tilintar metálico que pareceu ao
garoto mais alto do que deveria. Ou não pareceu. Nani não se indagou sobre
nada. Não perguntou mais nem por quê, nem como.
Remexia os dados e os dados rolavam em sua mão. Os dados e ele. Ele e os
dados.
De
repente, trazendo num susto o garoto de volta, uma explosão abafada aconteceu dentro
da oficina.
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