terça-feira, 21 de março de 2017

EPISÓDIO 2




Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!










                 Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário. 
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar. 
... E mais todos os paparicos  que esperava receber do pai e da mãe. 
... E o ciumeco que contava causar em  seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter de aturar Nani na posição de dono da festa. 
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu. 
Para piorar, entraram no jogo uns certos DADOS amaldiçoados, que haviam sido encontrados no Grande Bazar de Istambul, tempos atrás... 
Aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido. 




De volta ao Estranho Aniversário de Nani
13 de Agosto
10 hs da manhã

               
Danado da vida por ter sido abandonado pela sua família, Nani resolveu dar uma descida e ir à Além da Imaginação, ver se encontrava amigos, ou qualquer um que não tivesse esquecido seu aniversário.
No térreo do prédio, ao longo da calçada, além da portaria do edifício, que dava acesso para os apartamentos residenciais, havia uma fileira de lojas. Havia uma lanchonete, na esquina, a Sucos e Sucatas, com os sanduíches mais trash do bairro, depois o (In)famous, um salão de cabelereiro e manicura, a 1001 Bolos, cujo nome dispensa explicações, e a maior delas, a Além da Imaginação.
Maior até porque, além da parte da frente, onde se atendiam os clientes – antro dominado pela Lúcio Sorriso e seus rancores contra qualquer ser vivente  -  havia toda a parte dos fundos, onde a garotada da vizinhança costumava se reunir. A passagem era protegida por um biombo alto, com desenhos escandalosamente vermelhos-sangue escorrendo pelo fundo negro das placas de madeira. 
Era quase um clube secreto. (Era chamada assim  mesmo: Clube.)  Lá , nerd não precisava se proteger com identidade secreta, sentia-se dentro da sua caverna,  rodeado sua tribo. Nani vivia mais lá do que em seu apartamento, até porque seu melhor amigo, Lucio Filho, era filho do dono da loja.
 Isso sem contar que Nani era o considerado O Fera nos joguinhos de computador. Um verdadeiro rei do pedaço. O cara a ser batido. E estava crente que a turma – todos já sabendo que era aniversário dele, e logo 13 anos numa sexta-feira, 13 de agosto, uma data nobre – ia armar uma homenagem nerdiana para ele. No mínimo, iam se posicionar em duas alas e erguer os sabres de luz como num túnel, para que ele passasse sob eles, recebendo reverências.
No entanto, menos de três segundos depois de ter aberto a porta, empolgadíssimo com o que esperava encontrar lá dentro, murchou.
Não tinha ninguém lá.
Nenhum de seus companheiros de batalhas.
O que era estranhíssimo para um feriado.
Nem mesmo Lúcio Pai. O silêncio era tamanho que Nani chegou a sentir falta dos resmungos do Sr. Sorriso.
“Será que estão entocados no Clube?”, pensou esperançoso...
Mas, já sabia que não ia encontrar nada disso. Tudo quieto demais. Parado demais. Dava para sentir que não havia vibração nenhuma vindo de lá...  
E, de fato, o Clube estava deserto.
Metade da manhã de um feriado (mesmo sendo um feriado que ninguém explicara até agora, só decretara e pronto), e ninguém à vista.
E o mais esquisito...
Nada da bagunça que os frequentadores da loja, por hábito, faziam.
As prateleiras estavam absolutamente arrumadas e em ordem. Nada largado sobre os balcões. Os bonecos de personagens de jogos e filmes, todos aqueles bruxos, extraterrestres e extragalácticos, monstros e heróis e guerreiros, princesas enfeitiçadas, robôs e autômatos, com seus olhos parados, pareciam ter algo para contar, mas estavam mais imóveis e silenciosos do que nunca. Até mesmo as estantes de livros do Clube estavam perfeitamente arrumadas, nenhum livro retirado e aberto sobre alguma das mesas em torno da qual a galera se reunia. Nada, nada, nada.
Um nada sobrenatural.
Como se num determinado instante, todos as criaturas vivas tivessem sido sorvidas dali – para onde, não se podia saber – e extraídas para fora dos cenários.
Cenários que haviam permanecido mornos, como se a presença humana recente tivesse deixado rastros que ainda não haviam se apagado completamente. E isso dava nos nervos do garoto.
“Sim, é mais ou menos isso...”, entendeu Nani. “Uma presença invisível... Como se alguma coisa estivesse aqui... Só que a gente não vê...Que raio!”...
De repente...
Um esqueleto.
Despencando sobre Nani.
Se requebrando, rebolando, agitando os braços como se estivesse na torcida do Mengão. E com um sorriso cretino no rosto. Ou melhor, não havia rosto. Havia o crânio, os buracos de onde olhos havia caído, as mandíbulas, aqueles dentes muito brancos e gastos...
 A coisa ossuda deu uma cambalhota no ar – braços e pernas numa pirueta desconjuntada, mandíbulas batendo como se fosse um chocalho.
E estendeu para ele, não exatamente seus braços, mas o que foram seus braços, antes do túmulo e dos vermes, ou seja... seus úmeros, rádios e ulnas... Estendeu-os para ele, como se tentasse agarrá-lo.
Nani berrou.
Um desses berros que a gente somente solta nos pesadelos... quando a coisa medonha que está para nos agarrar dá o bote às nossas costas. A gente não vê. Pressente. A sombra pesada desabando em cima da gente. As garras da coisa. Quase perfurando nossa carne... quase... chegando, chegando e ... quase...
E só o que resta é mesmo berrar!
Paralisado...
...o berro dele ecoando nas paredes do Clube.
... a  coisa ainda mais chacoalhada, mais desconjuntada...
... Então...



JOCA


                - Guri! – gritou, irritado Lucio Pai, surgindo de repente. – Cuidado! Não quebre o Joca!
                Tarde demais. Nani saltou de banda e a coisa veio abaixo, trincando vários de seus ossos.
                - Mas, que raio  ...? Hem?
                -  Não olha por onde anda? Você esbarrou nele!   – continuou gritando Lucio Pai, correndo para socorrer o esqueleto.
                O dono da loja, tão popular por seu sorriso constante, recolheu Joca do chão, com o maior afeto que se pode ter por uma ossada. Não conseguiu evitar que o crânio de Joca se deslocasse e ficasse pendurado.
                - Essa coisa é de verdade? – gaguejou Nani, se levantando.
                - Mais de verdade do que você. E tinha que berrar daquele jeito? Você me deu um susto, sabia?
                - Eu... dei um susto em você? Puxa, desculpe...
                Naquele instante, Lucio Filho entrou no Clube. Vinha apressado e com uma expressão tensa, como se tivesse algo muito importante para fazer. Chegou a ensaiar uma careta, quando deu com Nani ali. Lucio Pai desapareceu numa salinha lateral, onde tinha a sua oficina, na loja, carregando seu amigo e resmungando.
                - Oi, cara! – disse Lucio Filho. – Olha, é uma hora ruim, tá sabendo? Tô ocupado. Não marquei nada  com você hoje, marquei?
                - Como é que é? – exclamou, injuriado Nani. – Mas, você esqueceu que dia é hoje?
                - Hem?... – murmurou o garoto, parecendo zonzo.
                - Ah, deixa pra lá... -,  disse Nani, chateado. – Cadê o resto da turma? Como é que não tem ninguém aqui num feriado?
                -  Feriado?
                - É, hoje não é feriado?
                - Nem sabia... é?
                - Você reparou que não teve colégio hoje? –
                - É, não tive, mas, não me lembro por quê... Olha, Nani. Tô falando sério. Tenho uma coisa importante pra fazer. Foi por isso que mandei mensagem pra galera, dizendo pra ninguém aparecer. Vamos até fechar mais cedo, hoje.
                - Vocês...? Mas, que raio! Tá todo mundo me abandonando! Fui esquecido no mundo!
                - Nani, do que é que você está falando?
                - Não interessa... Você é só o meu melhor amigo, por que ia saber?
                - Hem? Como é que é? Nani... você está esquisito à beça!
                - Eu! Tá... Então, tô esquisito. E não vai aparecer ninguém no Clube, hoje. Ninguém se lembrou, né?
                - Não vai, não!... Peraí! Lembrar o quê? Olha... – Lucio respirou fundo e deu uma espiada de quina para o lado da oficina do pai. A porta dele estava fechada. – Nani, sério. Tô numa encrenca. Mas, meu pai não pode saber de nada.
                - Pensei que bruxo pudesse ler pensamentos.
                - Larga disso, Nani! – o garoto hesitou por um instante, depois puxou a manga da camiseta do amigo. – Vem cá. Vou mostrar a você. Mas, não pode contar pra ninguém, tá?
                - Um joguinho novo? – indagou Nani curioso.
                - Queria que fosse... ! – disse Lucio, e atravessou o Clube, até um canto onde havia um armário, no qual o garoto guardava suas coisas.
                “É impressão minha, ou as mãos do LFo estão tremendo...?”, preocupou-se Nani, enquanto o amigo erguia a tampa da arca.
                - Aqui! Meu pai ainda não deu pela falta! E agora eu não sei se vai dar pra devolver...
                Nani aproximou-se. Nas mãos do amigo, estava uma pequena caixa de madeira escura. Tinha um símbolo gravado em dourado, na tampa, que parecia um “D”.



 UM SINISTRO TILINTAR METÁLICO

                - É por causa do meu tio, que seu pai está ... um pouco... mais mal-humorado do que de costume? Ele passou aqui na loja, hoje?
-  Nada disso, cara! – protestou Lucio Filho. Tô falando sério!
 Nani sabia que a Além da Imaginação corria o risco de fechar. E só de pensar nisso, sentia uma certa culpa. Porque o vilão dessa história era o irmão da mãe dele, a quem o pai de Nani, Felipe, chamava de Ricard-o-Ogro,  o dono daquelas lojas, no térreo do prédio. O caso é que  agora ele estava querendo um aumento de aluguel tipo arrasador. Não ia dar para o Lucio Sorriso bancar.
                -  Vou acabar com ele, nas próximas eleições para síndico! – prometia Felipe. – Ele acha que só porque mora na cobertura vai ficar eternamente no cargo? E grosso do jeito que ele é? Ganha sempre no grito, assustando todo mundo na assembleia dos condôminos! Mas, vou me candidatar! Vou concorrer também! Ah, dessa vez, ele vai ver só!
                Marieta, a mãe de Nani, nascera num circo. O dono era pai dela, o famoso Palhaço Crisoldo. Ela e o irmão haviam sido criados sob tendas, dentro de trailers. Depois, foram estudar cada qual numa cidade, e perderam contato por anos. Um belo dia, ela e Felipe receberam a notícia de que Ricardo  vinha morar no mesmo prédio que eles.  A alegria do reencontro  durou menos de um mês. Ricardo havia se transformado num sujeito que tomava atitudes que Marieta não aprovava. Já Felipe, não o aturava de jeito nenhum.  Mesmo assim, a mãe de Nani, não se tocava tanto com as raivas do marido e, sobre a disputa dos dois, cortava direto:
                - Briga de garotos! – resmungava ela.
                E o deboche da mulher deixava Felipe ainda mais zangado.
Mas, nem mesmo Ricard-o-Ogro seria capaz de cravar aquele olhar assustado no rosto de Lucio Filho. Não, não... Nani já tinha percebido que só podia ser outra coisa...
Sempre preocupado, vigiando a porta da oficina do pai, Lucio Filho levantou a tampa da caixa. O interior era forrado de veludo vermelho. E nela havia três dados de bronze. Não havia números nas faces dos dados, mas desenhos que Nani nunca vira nem em joguinho de fantasia multidimensional, nem em filme extragaláctico, nem  em livros sobre segredos ultratemporais...
                -  Dados? – estranhou Nani. – Dados de verdade? Quer dizer... não são digitais?
                - Já disse que não é um joguinho de computador – disse Lucio Filho aflito, como se tivesse pouco tempo de sobra.
                - E o que é, então, cara? Não vai me dizer? Ou não sabe?
                - Droga! – exclamou Lucio Filho balançando a cabeça. – Eu não deveria ter tirado essa coisa da oficina do meu pai. Mas, dei com essa caixa esquisita, abri, tinha os dados dentro... Achei legais os dados, então quis experimentar. Mas, quando peguei essas coisas e rolei elas na mão, começaram a acontecer umas coisas...
                - Que coisas? – perguntou Nani, cada vez mais intrigado, mais curioso. E seus dedos começaram a formigar de vontade de pegar naqueles maneiríssimos dados de bronze.
                - Coisas estranhas... – respondeu Lucio Filho em voz baixa, quase um cochicho, olhando para todos os lados, agora. Nani entortou a boca, com jeito de quem diz que não estava entendendo nada, mas começava a achar que o amigo estivesse delirado. Então, Lúcio Filho finalmente falou: –  Tem uma maldição nesses dados.
                - Hem? – exclamou Nani, recuando um passo.
                - Você nunca escutou falar em Mestre Diábolo, né?
                - Nerd novo na loja?
                - Não! – replicou Lucio Filho impaciente. – Nem perto... !
                - Cara, do que é que você está falando, hem? Ou melhor, do que é que a gente está falando?
                Nesse momento, escutou-se um chocalhar de ossos. Lucio Filho fechou a tampa do  baú de madeira escura e o escondeu, rapidamente, atrás das costas. A porta da oficina se abriu e o rosto fechado de Lucio Pai surgiu lá de dentro:
                - Filho! Me ajuda aqui! Preciso de ajuda para colar o Joca, que esse seu amigo desastrado aleijou!
                - Tô indo, pai! – respondeu o garoto.
                Lucio Pai desapareceu de novo dentro da oficina, deixando a porta aberta atrás de si. O filho agachou-se, por trás de uma poltrona, e escondeu o baú de madeira lá. Então, cheio de pressa, passou por Nani, cochichando:
                - Não mexe em nada, tá? Senão...!  Volto num segundinho!
                - Tá... -, respondeu o aniversariante frustrado do dia.
                Mas, o caso é que Nani já sabia que estava mentindo. Nunca iria conseguir fazer  o que amigo tinha pedido. Ou melhor, nunca seria capaz de não fazer o que ele, bastante diretamente, tinha lhe dito que não fizesse.
E, sim, ele fez...
Ah, aquela pequena arca, com o símbolo estranho gravado (“Em fogo? e tinta de ouro por cima? UAU!!!D+++++! ”) era irresistível, não era?
                Mal Lucio Filho sumiu pela porta da oficina, Nani correu para a poltrona, tirou o baú do esconderijo e o abriu. Lá estavam os dados.
                Era certo que Lucio estava estranho. Ou melhor, um pouco mais estranho do que de costume. “Afinal, ter um pai desses deve deixar qualquer um maluco”, dizia sempre Nani para si mesmo. Ou seja, um pai do tipo que, numa estante da sua oficina, segundo Lucio Filho contava (Nani nunca se atrevera a entrar no antro do zumbi),  tinha frascos com rótulos como: “Saliva Cristalizada de Aranha Devoradora de Gente, coletada no período de digestão da Língua de um Político Corrupto Defendendo-se das Acusações em Público”; ou  “Escamas de Encantadores de Serpentes que nisso foram transformadas por Feitiços, mas que originalmente eram Agiotas”; ou “Fiapos de Hálito de Aves de Rapina, depois de comerem Carcaça de Quem Nunca Assistiu um Filme Nerd nem leu um livro do Gênero”...)
                - São somente nomes de código – explicara Lúcio Filho, na ocasião.  – É para ninguém descobrir os ingredientes que ele usa nas alquimias dele. No fundo, meu pai tem uma pontinha de bom humor, sabia?
                - Não, nunca desconfiei – respondeu Nani. E completou sem perceber que o amigo traíra na voz um certo tom de mágoa. –  Ele guarda esse segredo bem à beça, né?
                - Para de zoar com meu pai, tá? Ele... é ele e pronto! Faz mal a alguém, por acaso?
Lucio Filho detestava que todo mundo debochasse  do pai pelas costas e que o achassem tão de outro universo... um ser exodimensional, ou algo assim. Além disso, vivia dizendo que achava o pai solitário demais, desde que a mãe, a mulher de Lúcio, tinha morrido, quando o menino ainda era bem pequeno.
Mas, Nani passou batido por todos esses pensamentos. Estava impaciente, Lucio Filho demorava  a voltar, e lá estavam os dados, no baú. Parecendo mais antigos do que nunca e possuir mais segredos do que era possível imaginar. Ao alcance dos dedos, da mão.
                Horas depois, Nani se perguntaria se naqueles últimos momentos era ele mesmo pensando, ou alguma voz vírtuo-qualquer-coisa-também infectando seus miolos.
                Foi sem sentir. Em dois segundos, tinha os três dados na palma da mão. E os estava rolando, fazendo se chocarem e emitir um tilintar metálico que pareceu ao garoto mais alto do que deveria. Ou não pareceu. Nani não se indagou sobre nada. Não perguntou mais nem por quê, nem como.  Remexia os dados e os dados rolavam em sua mão. Os dados e ele. Ele e os dados.
                De repente, trazendo num susto o garoto de volta, uma explosão abafada aconteceu dentro da oficina.




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