terça-feira, 21 de março de 2017

EPISÓDIO 3

Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!










                 Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário. 
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar. 
... E mais todos os paparicos  que esperava receber do pai e da mãe. 
... E o ciumeco que contava causar em  seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter de aturar Nani na posição de dono da festa. 
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu...
A sua família havia sumido. O irmão apareceu transformado. E até na Além da Imaginação começaram a acontecer lances pra lá de sinistros... MISTERIOSOS! 
Definitivamente, aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido. 







OS DESAPARECIDOS

                Além de descobrir passagens que ninguém mais farejava, entre dimensões virtuais paralelas, enfiando-se por frestas que se abriam para outros universos... e de ser o mais feroz caçador de monstrinhos digitais, desses que passeiam como quem não quer nada mas querendo, pelos diferentes  mundos... Bem, além dessas aptidões, tão preciosas para um garotão que quer sobreviver hoje em dia... Nani se orgulha de ser um tremendo detetive.
                Esperto pacas – é o que ele se acha.
                Daí, quando a tal “explosão abafada” aconteceu, ele correu para a porta da oficina do Zumbi-Sorriso, já com três ou quatro conjecturas detetivescas na cabeça. Mas nenhuma delas o preparou para encontrar o que o esperava...
                Nada.
                A oficina estava vazia.
                E, pelo que Nani sabia,  não havia nenhuma porta secreta  nos fundos, nem nenhum alçapão, nem cabine de transporte, nada que pudesse permitir que os dois Lúcios, pai e filho, saíssem de lá sem passar por ele, na entrada.
                 Nani ficou parado na porta. Estava meio escuro lá dentro. E ele ficou com medo de entrar. Mas, não precisava atravessar a porta para saber que não tinha ninguém ali. Era uma paradeira mal-assombrada. Um silêncio de abismos.
                Ou melhor, só para ser mais preciso... Nani, apertando a vista, teve a impressão de ver uma espécie de névoa pairando no ar. Muito tênue, muito fina. Quase invisível. Quase desaparecendo. Quase podendo ser somente impressão dele, ilusão de ótica...
                Ou não.
                Era de arrepiar. Como se os Lucios tivessem desaparecido naquela névoa.
                Ou  transformado nela: PUFSHT!
                De repente, escutou um chocalhar metálico. Tlect! Tlect! Tlect!
                Levou alguns segundos para querer acreditar. Eram os dados. Os dados estavam na sua mão. E ele os estava rolando, rolando... Tlect! Tlect! Tlect!
                No mesmo instante, ele se sentiu cercado de olhos, como se criaturas o espionassem, ocultas pelos véus entre as dimensões paralelas.
                - Lucio! – chamou ele. – Ei, cara!  A brincadeira acabou, tá? Tô começando a ficar apavorado de verdade! Chega, cara! Aparece aí!
                Mas, ao mesmo tempo, um a voz lhe dizia que, se fosse uma piadinha de Lucio Filho, para fazê-lo de bobo, o garoto precisaria ter convencido o pai a entrar numa brincadeira...
“ E ele não é disso! Deve ser um problema de alergia dele, ou...”
                Seu estômago roncou tão alto, que Nani se assustou, lembrando ao garoto que ele não tomara café da manhã. “Fica quieto, traidor!”, exigiu, em pensamentos, olhando para os lados para ver se alguém  ou algo havia escutado. Mas, nada parecia capaz de perturbar o fúnebre silêncio da loja. Da loja inteira. E não podia ser normal. Ninguém entrava. Os Lúcios desaparecidos. Aqueles dados, que ele não conseguia parar de rolar e de espremer uns contra os outros, só para continuar escutando o barulho que faziam em sua mão.
                - Toma essa coisa de volta! – disse, largando os dados, de passagem no balcão da loja. – Não pode ter dado para pegar a maldição se eu fiquei tão pouquinho com eles, pode?
                “ Mas, que maldição, irra!” – pensou, já impressionado por começar a levar a sério os avisos de Lúcio Filho. “Não tem maldição nenhuma! Que história é essa?”...
                Jurava que, se estivesse se olhando num espelho, teria impressa no rosto a mesma expressão de medo que vira no amigo. Na hora, ainda pensou também que Lúcio Filho era tão bom quanto ele para inventar enredos, personagens, um poderoso Mestre de Jogos. Nani e Lucio Filho viviam em disputa permanente, um sempre tentando passar a perna no outro. Nos jogos, se fossem adversários, saía faísca, até briga podia dar. Daí, Nani ficar com um pé atrás sobre a “história”...
                “Se bem que nem o Lúcio é tão bom de encenação assim. Nossa! Ele tava com medo de verdade! E esse lance do desaparecimento duplo, ele e o pai? E a fumacinha que ficou no ar... ? Catso! Tudo isso pra rir na minha cara depois? Um pouco demais, né? “
                Mas, com a esperança de que fosse tudo uma jogada... E mesmo que essa esperança fosse acumulando mais e mais furos, quanto mais pensava no assunto... Ele voltou para casa, esperando... torcendo... Vá lá: rezando!... para seus pais estarem atrás da porta, numa de lhe dar um susto,  e saltarem sobre ele gritando: Feliz Aniversário!, acompanhado de beijos bem babados. E numa altura dessas, até mesmo receber parabéns do Monstro, que estaria se esforçando para fazer uma cara bem raivosa,, mas parecendo de fato totalmente imbecil,  seria bom à beça, não seria?  
                Ah, o Monstro!
                Ah, um almoço de aniversário no capricho! Família de volta. Família inteira. Inteirinha, sem faltar pedaço nenhum! Ah...!
                Ah, o Fator Gogoia, anunciado e prometido pela própria, para aquele dia!
                Ah... Ah, nada. Totalmente nada!
                O apartamento estava deserto.
                Um túmulo! (Foi Nani que pensou isso, mas se arrependeu na velocidade da luz!)
                 Então, começou a reparar nuns detalhes. Não tinha certeza se estavam lá, mais cedo, e ele é que não tinha notado. Mas... Era estranho um copo de água pela metade, deixado na beirada da mesa. Seus pais não faziam dessas coisas – viviam evitando  acidentes. O Monstro, sim, aprontava dessas e  piores. Mas, fazia questão de beber água e tudo o mais somente em sua caneca-monstro, talhada em pedra de caverna profunda, escura e fedida. Era uma caneca horrenda, pesadona, desajeitada... Mas era bem ele. Quem mais ia largar aquele copo ali?
                Nani então resolveu dar uma busca pela casa. Viu um par de tênis da mãe deixado na soleira da porta do banheiro. Muito, muito estranho... Ela jamais se calçava ali, e nunca iria deixar os tênis no meio do caminho. E, no banheiro, viu a escova de dentes do pai sobre a tampa da privada... e mais... o celular dele, deixado no chão de ladrilho. Assim! Sem mais nem menos! Largadão!
                Mas, o estranho dos estranhos foi entrar no quarto do Monstro e encontrar a cama arrumada, como se ninguém tivesse dormido ali. O Monstro nunca arrumara a cama na vida, e jurara que jamais iria fazer isso. E ainda seria cedo para a mãe passar a ronda nos quartos e dar aquela arrumada básica, de toda a manhã, antes de ir trabalhar. O pai de Nani também não teria feito isso. O departamento dele nos afazeres domésticos era cozinha, supermercado, feira, e não quartos...
                Então? Então...?
                E foi nesse momento, vendo a rotina e a organização do seu lar toda revirada, que Nani começou a acreditar que algo esquisito estava mesmo acontecendo em sua vida.



MONSTRO


                “Mas, o que será que deu nessa minha família maluca? Será que ficaram sem paciência de esperar eu acordar e saíram? E vão fazer o meu almoço de aniversário sem mim? Isso não se faz, Dr. Felipe e Sra. Marieta! Isso não se faz!”
                “Ou será que o Monstro conseguiu convencer todo mundo de que eu não sirvo para ser irmão dele?”...
                “Mas, não é possível...! Esqueceram tudo o que houve entre nós? 13 anos! Uma vida, cara! Minha vida! Como pode...?”
                “Tudo em cima, um feriado bem no dia, tudo  para eles me paparicarem à vontade. Café da manhã especial. Levado na cama, por que não?  São só por 24 hs. É demais? No resto do ano, dá-lhe bronca, cobrança, tem de fazer isso, tem de fazer isso também... Mas, hoje! É o meu dia! Minha vez! E eles somem...”
                Na verdade, não fazia nem uma semana, Nani teve uma brigona em casa, reclamando que os planos para a comemoração do seu aniversário estavam “de gente velha”. Almoço em restaurante! E com o irmão de contrapeso? Tudo como no ano passado? Como sempre e sempre? Que chatice!!!!
                - Você quer desconvidar seu irmão caçula? – inquiriu a mãe, zangada.
                - Eu não tenho culpa de ele ser meu irmão! Eu nunca quis ter irmão nenhum!
                - Não fala uma coisa dessas, Nani! – murmurou a mãe. – Eu sei... que você não está falando de coração!
                E lá das profundezas do apartamento, soou um grunhido...
                E outro...
                E mais um...
                De repente, Nani se deu conta de que não estava mais lembrando do que tinha acontecido dias antes. E que o grunhido estava soando naquele instante... E bem ás costas dele...
                Então, se virou...
                - Zé!
                (Outro grunhido...)
                Nani engoliu em seco.
                Se era para chamar o irmão de Monstro, como o menino queria ser chamado, nunca ele havia merecido mais esse nome do que ali, naquele momento. O rosto do Monstro estava contraído, como se seus músculos tivessem levado uma descarga elétrica e ainda não tivessem se recolocado nos lugares nem na vibração certa. Os lábios estavam tortos. Da boca, escorria alguma coisa amarronzada. Baba, e da grossa. O olhar dele cravara-se como alfinetes em Nani. E o corpo todo estava algo torcido, um pouco pra lá, outro pouco pra cá. Tinha ainda as mãos, que pareciam pontudas, como se tivessem virado garras, de repente. Ou qualquer coisa meio assim muito, mas muiiito esquisita.
                - Monstro... – gemeu, engasgado, agora, Nani, sob a pressão do visual. E logo ele que nunca havia dado confiança ao irmão de chama-lo pelo apelido que o menino elegera. – Onde está o pai? E a mãe? Vocês se esqueceram de que dia é hoje?
                Mais um grunhido... E então o Monstro falou:
                - Jura... seu otário... que você não desconfiou dessa armação de feriado?
                 - Hem...? Mas, a mãe falou...
                - E que feriado é hoje, hem? Você sabe? Ela disse?
                - Eu... sei lá!
                - Falou em dia de folga, você se encantou tanto que nem pensou no assunto. É 13 de agosto... Dia de...? Da...? Do...? Dia do Nani? Não brinca que você engoliu essa! Que feriado é esse, cara?
                E tudo isso numa voz meio chiada, sibilante. Feito cobra em filme bruxesco.
                - Cadê todo mundo, cara? – reagiu Nani.
                Monstro deu uma gargalhadinha seca, como se fosse motor de máquina de lavar grimpado. Mais cacarejo do que gargalhada, de fato. E cacarejando sempre, virou as costas, deiando o irmão sem resposta.
                Nani deu duas engolidas em seco, paralisado, bobão. E foi o que bastou para Monstro sumir de vista. Quando Nani correu atrás dele, não o encontrou mais. Mas, reparou numa outra coisa muito estranha. Muito contra todo o jeito como funcionava a casa: em vez do seu lugar, na escrivaninha do quarto do casal,  o laptop do pai estava sobre a mesa de jantar da sala – onde nunca ficava – e com algo na tela, piscando, mostrando que estava ligado – como seu pai nunca o deixava. Parecia que tinha sido abandonado de repente.
                Só que, como se esquecesse do irmão, quando Nani parou diante da tela, sofreu um arrepio. E dois. E três. Porque a imagem na tela não era bem um pisca-pisca. Tinha uma coisa rodopiando lá. Ou melhor, três coisas. Três dados. Os três dados de bronze.
                No que Nani os reconheceu, quase fugiu correndo. Quase. Para o seu quarto. De volta pra cama, morrendo de vontade de, quem sabe, dormir e acordar para ver se o dia começava de novo. Mas, não dava mais para escapar.
                Nani chegou junto da tela, tocou-a, e a imagem se desfez. Sobre um fundo de cores que rodopiavam, misturando-se ou se dissolvendo, alternadamente, apareceu a caixa pedindo a senha. Nani conhecia a senha do seu pai. Na verdade, todo mundo conhecia,  até o peixinho dourado que seu Zildo, o zelador, criava num aquário, que deixava sobre a  mesa da portaria... O pai de Nani tinha algumas manias... Além da eterna birra entre ele e Ricard-o-Ogro, era nerdíssimo em Astronomia,  Cosmologia e Filosofia da Ciência. Ensinava  Astrofísica numa universidade e muita gente dizia que somente outros três caras no mundo falavam a mesma língua, quando danavam de conversar sobre labirintos científicos, pirações hiperdimensionais e cósmicas. E era tipo plugado em telas. Nunca desligava seu laptop. Seu mascote era o jabuti Azazel Fisto  (o único poupa-tela, de todas as dimensões virtuais, com nome e sobrenome), que lá ficava, se arrastando, borrando cores, abrindo clarões e passagens entre universos paralelos. O nome dele era a senha: AZAZEL.
                Só que, quando Nani digitou o nome do bicho, nada aconteceu.
                Azazel Fisto devagar passava e devagar continuou passando, ignorando o Nani.
                - E eu que esperava uma mensagem tipo Feliz Aniversário! O pessoal aqui endoidou? Todo mundo, até esse jabuti?
                Nada, nada, absolutamente nada.
                Toda casa fica meio mal-assombrada quando está vazia. É um ventinho que entra por uma fresta da janela ou um vão por baixo da porta e acaba remexendo a cortina da sala, ou os papéis em cima da mesa. São os estalidos no encanamento, que a gente só ouve quando não tem  barulho de gente em casa, e que ecoam por dentro das paredes, como se tivesse um morto-vivo sepultado por trás do reboco, exigindo ser solto. Ou então aquela impressão de que, se as pessoas que moram ali saíram, não saíram totalmente. Alguma coisa ficou para espantar os intrusos. No mínimo para ficar rondando...
                Nani estava começando a se sentir vigiado, ali dentro. Como se ele fosse o intruso. Como se alguém, alguma coisa, algo tivesse entrado, tomado conta do apartamento, e era quem mandava no pedaço agora.
                - Tudo contra mim! Que jogo sujo! – disse alto Nani, encarando a tela, Azazel Fisto e o que mais estivesse ali.
                A coisa era tão, tão pirante, que ele começou a observar o Azazel Fisto pelo canto do olho, se perguntando qual seria a possibilidade de um jabuti virtual ser o responsável por todas as estranhices que estavam acontecendo. E se ele fosse...?
... O tal!
“Só falta acontecer que nem num joguinho e o Azazel Fisto ter virado  uma entidade milenar do Mal, hiperpoderosa. Ou ter sido dominado pela dita cuja. Mente possuída, miolos infectados, o esquimbau... Ou qualquer enredo desses e... Nossa! Que miolos, Cara? Jabuti virtual lá tem miolos?  De onde eu tirei essa história?”.
                Daí, ele teve uma ideia. Ou um certo tilintar metálico dentro do seu bolso, que ele se recusou a reconhecer (“Os dados! Claro que são os dados! Mas, eu não deixei essas coisas lá na loja?”) ... Enfim, algo que passou na sua cabeça, mesmo ele preferindo que tivesse passado muito mais longe. E a ideia veio, ficou,  ele obedeceu ao impulso e digitou: “Diábolo”.
                 Azazel Fisto voltou-se para o garotão e fez para ele uma careta irritadíssima, que não deveria estar programado para fazer. Então, as letras da senha se reviraram, se contorceram, e logo estavam grossas e vermelhas, na tela, escorrendo em pingos feito sangue, deformando-se. Por um segundo, os filetes de sangue se enroscaram, uma ponta na outra, uma ponta engolindo a outra. Mas, o rodopio acentuou-se e, logo,  Nani tinha a impressão de enxergar mais alguma coisa, como um espectro ao fundo, uma caveira sorridente. Rindo para ele, ou rindo dele. Então berrou, recuou dois passos, assustado, pego numa zonzeira, uma tontura. Daí, a tela piscou algumas vezes, então um texto começou a aparecer, subindo linha por linha...



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