quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

MEU MONSTRO FAVORITO



                Vampiros são os astros mais bem sucedidos de qualquer superprodução pop.  E também, ultimamente, os zumbis – os Walking Deads da vida. Ou melhor, não rigorosamente da vida. Tem ainda múmias, Frankenstein’s e fantasmas de todos os tipos, desde os Perverso-Cômicos como Sir Simon de Canterville, em O fantasma de Canterville, de Oscar Wilde, até os tradicionais, os lúgubres, como os dos contos de Charles Dickens. Mas, embora ame todos esses, nenhum me comove, remexe, me invade e assombra tanto quanto os Lobisomens.
                Os Lobisomens são meus monstros favoritos.











ENTRANHAS

Quando  a vertigem  sideral me abandona, desperto
 imundo, cheirando a esgoto e coberto
de restos humanos decompostos. Além do fedor do suor
do meu corpo hediondo. Tão penetrante. Tão brutal .

Nunca me recordo do que fiz em possessão,
mas todos os gritos e toda dor que inflijo cravaram-se em meu coração.
 No homem persiste  a exultação da fera; a fúria lunática
geminiza a repulsa insone do homem.

Pela eternidade, a peçonha que repugna outros monstros
foge de  uma lembrança: seu horror de origem, seu horror maior...
(a verdade é que viver duas vidas é viver nenhuma)

Resistem  entranhas que não são minhas dentro de minhas entranhas.
Eu as profanei embora fossem a minha vida antes de ser dividida.
                        Não consigo digeri-las. Minha consciência é penumbra.(1)




                Cada um terá o seu (favorito). Vou aqui dar as minhas razões. Algumas são literárias; outras, nem tanto; mas todas são pop.
                A primeira é que  adoro botá-los nos elencos de minhas histórias.  Eles rendem muito drama!
Diferente das suas monstruosas concorrentes, o Loboisomem tem um dilema (que pode ser explorado tanto pelo lado trágico, como pelo cômico, como qualquer que seja a vontade do autor...) inerente ao fato de não ser um morto-vivo.
                O humano contaminado por um vampiro morre primeiro, para renascer como vampiro. O zumbi, nem se fala: é um morto que anda. Sem consciência, sem mente  nem espírito. Múmias, fantasmas, todos esses deixaram para trás sua natureza humana, para se tornar em assombrações. Mas, não o Lobisomem.
                O Lobisomem é um ser humano que, numa certa fase da Lua – mais ou menos correspondente a uma semana no mês – se transforma em fera. E, possuído dessa sua ferocidade, pode  trucidar e devorar qualquer um, até mesmo alguém que ame. Mas, terá que conviver com isso, durante as suas fases humanas. Mortos que andam e vampiros não são caracterizados pela culpa em relação às vítimas que abateram. São essencialmente predadores. Já o Lobisomem sofre, e muito, por força da bestialidade que toma conta dele e faz sua faceta humana perder o controle sobre sua consciência e seus atos. Nada de morto-vivo aqui. Ele tem sangue quente. Respira.

Muitos fogem do convívio humano, se acorrentam nas noites de Lua Cheia, etc... E cada recalque desses é uma novela fantástica. 










 SUBTERRÂNEOS


Quando eu era homem não comia ratos;
passeava pela superfície, transitava entre gentes, calçava sapatos.
Habitar subterrâneos, no entanto, é nada
comparado ao abismo voraz do vazio onde antes havia minha alma.

Retornar à luz? Mas que luz pode tornar a existir?
Não há mais luz no mundo.
Para mim, não há mais mundo.
Tampouco há retornos: a fera é minha refém,

meu álibi na escuridão habitada.
Trevas! Trevas! É olhar meu rosto e enxergar
o pressuposto da alma exilada em algum perdido além.

É deparar-se com meu eu enfurecido
e adivinhar, pressentir que mais brutal
é o humano íntimo antro corrompido. (2)









                É um tema quase universal. O  monstro que habita., oculto, dissimulado, nosso íntimo. O mal que, existindo em nós, estando nós contaminados por ele, pode então nos dominar totalmente. Esse é um dos nossos maiores terrores: que nosso mal íntimo aflore (vide O Médico e o  Monstro, de Stevenson). Trata-se do mote maior da Literatura Gótica do Romantismo, os clássicos do terror do século XIX, e de pops como os livros de Stephen King. Uma Literatura com longa e nobre linhagem, difícil de se criar, de se ler; bastante refinada. 
É muito mais do que saber dar sustos no leitor. É tocar uma corda submersa. Muuuuuito submersa.
Já o  dilema inerente,  íntimo, grudado ao espírito... o ser ou não ser... enriquece um personagem. Torna-o surpreendente – em suas falas, ações, em sua colocação no enredo e nas cenas.  
Acho Drácula, de Bram Stoker um prodígio único (à altura de Hamlet, de Shakespeare, ou de D. Quixote, de Cervantes). Só um gênio (mas valendo-se de uma linhagem de criadores de vampiros na Literatura) para compor um personagem ao mesmo tempo tão inumano, que nos olha como invólucros encarregados de manter o sangue aquecido e não-coagulado, e ao mesmo tempo portador de uma sedução maligna, da capacidade de atrair e fascinar suas vítimas e  o leitor.
No entanto,  a empatia de enxergarmos uma criatura dilacerada é própria dos personagens Lobisomens. Drácula não se dilacera – seu leitor, talvez, entre o medo e a tentação, mas não o Sugador de Sangue.
                Além disso, há várias fontes para as lendas dos lobisomens. Até mesmo mitológicas. Trata-se do mito de Lykos, um rei que teria sacrificado humanos a Zeus, e comido a carne deles (assim como se banqueteavam com o gado sacrificado aos deuses). Como castigo, Zeus o condenou a, uma vez por mês, se transformar em fera e, assim possuído, ser capaz até mesmo de matar aqueles a quem amava. De Lykos, vem a palavra licantropia, e os licantropos,  outra maneira de chamar os lobisomens.
                Há outras histórias nas lendas ciganas e orientais. E alguma menção à submissão dos lobisomens aos vampiros, na Literatura – como em O convidado de Drácula, de Bram Stoker (ver em Góticos 1, coletânea de contos clássicos de terror gótico, com ensaios e notas, editado pela Melhoramentos). É um personagem talhado para o papel de estrela de uma história.
Não é à toa, ora ... Se o vampiro clássico só sai da tumba à noite, se o zumbi é facilmente reconhecível como inumano, o Lobisomem pode ser um amigo, um parente – pode estar no metrô, no cinema às escuras...
Bem entre nós.










(1) e (2) em Sonetos nas Trevas, Edelbra. Ver anúncio/resenha na Etiqueta INÍCIO ou abaixo. 

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