sexta-feira, 7 de agosto de 2020

LÍBANO

 LÍBANO

(ilustração: Márcia Széliga)



Luiz Antonio Aguiar

O alfabeto que usamos veio do Líbano.
Na verdade, é um lindo mito grego. Naquele tempo, o Líbano se chamava Fenícia. Os fenícios eram comerciantes marítimos, excelentes navegadores. Diz-se até que estiveram aqui por nossa terra, em tempos anteriores à História Ocidental.
No mito, havia uma princesa linda, no Líbano, chamada Europa. Muito jovem, virgem. Zeus, numa de suas chifradas famosas na esposa Hera, apaixonou-se por ela, disfarçou-se de um majestoso touro branco e apareceu a Europa. A moça, encantada, quis subir no lombo do animal, que o permitiu docemente. Mal ela se instalou nas costas do touro, ele decolou, raptando Europa. Europa nunca mais foi vista pelos mortais.
Cadmo, seu irmão, enlouquecido, não aceitou o sequestro, mesmo sabendo quem o havia praticado. Reuniu alguns de seus melhores homens e saiu em perseguição... a Zeus. Naturalmente, nunca o encontrou, mas chegou, sob orientação do Oráculo de Delfos, consagrado a Apollo, a uma região até então desabitada da Grécia.
Num confronto com um Dragão, filho do Deus Áries, a fera liquidou com todos os companheiros de Cadmo, mas o príncipe, sob orientação de Atená, matou o dragão, e extraiu seus dentes. Daqueles dentes, nasceram soldados, e a cada um desses soldados foi consagrado um dos símbolos do alfabeto fenício, que dessa forma introduziu a escrita na Grécia.
O alfabeto fenício tinha um diferencial de enorme praticidade em relação às demais escritas. Era fonético. Trazia símbolos, representando sons bocais, que, agrupados, formavam palavras. Assim, com 22 símbolos, se poderiam escrever o nome de todas as coisas, de tudo o que existia e se fazia no universo. Bem mais fácil do que decorar “desenhos”, ou pictogramas requintados, como as demais escritas de até então. O alfabeto fenício é o único, tecnicamente, que deve ter esse nome alfabeto, que numa tradução simples, quer dizer sequência de letras. Era portanto o único cujos símbolos representavam, não, coisas, mas letras.
Naquele lugar sagrado, Cadmo fundou a cidade de Tebas, que foi famosa ao fundo de toda a Mitologia Grega. Foi lá que nasceu Dioniso, filho bastardo de Zeus, em outra aventura com uma princesa, Sêmele, que, por vingança de Hera, morreu fulminada. Isso quer dizer que Tebas é a origem do Teatro Grego, da Tragédia, da Literatura. Lá também nasceu e viveu grande parte da sua vida, até partir para a realização dos 12 trabalhos, Herácles, o maior de todos os heróis de todos os tempos. E foi o palco da mais famosa e enigmática das tragédias clássicas, a de Édipo, rei de Tebas.
Meu avô, Alexandre José Farah, veio de Nahzé, perto de Beirute, para o Brasil. Não tenho ideia de como se fala Alexandre, em árabe; José é Iussuf, pelo que me ensinaram na casa da minha avó; e Farah quer dizer alegria, contentamento, em árabe.
Na verdade, foi como o funcionário da imigração que o recebeu grafou seu nome, na entrada no Brasil. Vários parentes vieram no mesmo navio. Cada um foi para um balcão, com um funcionário diferente, que grafava o nome conforme o escutava, ou decifrava. Assim, a família dividiu-se em Bufarah, Farath, Fará etc...
Meu avô foi para o Mato Grosso. Começou a ganhar a vida como mascate. Mais tarde, casou-se com uma italianinha, originária de um vilarejo perto de Nápoles. Ela tinha 13 anos e meu avô era mais velho do que o pai dela, que não aceitou o casamento. Então, minha avó “fugiu de casa” para se casar (atravessou a rua e ficou na casa de uma tia ou prima) , mas, absolutamente católica, disse que só entraria na igreja de braço dado com o pai. Os turcos, sírios, egípcios, libaneses da região, todos eles, cercaram a casa do meu bisavô, Luiz (Antonio era o pai dele, se não me engano), ou Luigi, e o levaram a força para a igreja. Minha avó, durona, deu-lhe então o braço e ele a entregou ao mascate, no altar.
Minha avó cozinhava muito bem, e meu avô também. Em casa, começaram a vender refeições para fora. Trabalhavam de sol a sol, tanto que juntaram dinheiro. Daí, meu avô abriu um armazém de importados da Arábia e da Europa. Os concorrentes puseram fogo no estabelecimento, mas meu avô, mesmo tendo perdido tudo, reconstruiu-o. Ganharam dinheiro de novo e se mudaram para o Rio de Janeiro.
Ao chegar aqui, ofereceram ao casal um terreno, um “matagal”, segundo avaliaram, por um preço mísero. O lugar não valia nada na época, e eles o recusaram, preferindo comprar um casarão em São Cristóvão que, por muito tempo, abrigou a família inteira, mesmo os que foram se casando e suas famílias. O tal matagal, hoje, é metade de Copacabana.
Meus avós tiveram 19 filhos, mas nem todos chegaram à idade adulta. Alguns morreram ao nascer, outros, bem jovens, e uma tia minha morreu no parto. Mas, a família continuou grande. E recebia todos os imigrantes do Líbano, principalmente de Nahzé, que chegavam. Ajudavam-nos a começar a via, como mascates, como meu avô. Vendiam frutas na rua, fugiam e apanhavam da polícia, mas foram progredindo. Na casa da minha avó (a casa era dela, não dele) , falava-se o árabe , principalmente ela, Dona Leonarda Olivieri Farah.
Ficou cega cedo, por catarata que naquela época não se operava. E mesmo assim, andava sozinha pela casa inteira, mandava em todo mundo, fazia macarrão no muque, uma massa que espalhava seu cheiro saboroso pela rua inteira, e , pela manhã, já mais para os anos 1960, pedia a um neto para conferir com ela a cotação da bolsa de valores, nos jornais. Sim, ela investia. O que não seria de admirar. Contavam lá em casa que um dia, os concorrentes de meu avô, ainda em Mato Grosso, mandaram um assassino de aluguel liquidá-lo. No que ele invadiu a casa, Dona Leonarda gritou: “No meu marido, não!”, agarrou a mão do cara e quebrou seu pulso, desarmando-o. Era muito baixinha, e uma maravilhosa contadora de histórias, à la Sherazade.
Meu avô morreu de uma das recidivas epidêmicas da febre espanhola, aí pelos anos 40. Minha infância foi marcada pelos enormes retratos a óleo que tinham em casa, lado a lado, e pelos almoços de domingo, onde a macarronada e o quibe eram imperativos. No mínimo, 50 pessoas, todos parentes. Ou patrícios, como os que meus tios encontravam na região do Centro do Rio, hoje chamada de SAARA, e que naquele tempo tinha sobrados onde a parte de baixo era um comércio qualquer, a de cima, a residência da família, todos de ascendência árabe, libanesa, ou turca. Lembro que, nesses almoços, as crianças roubavam da cozinha bocados de quibe crú, que preferiam, antes que as formas entrassem no forno.
E assim foi. Fora meus primos, já estou falando de pessoas falecidas, inclusive meus irmãos. Devem estar num grande almoço de família, como antigamente...
Mas, minha ligação com a cultura árabe (libaneses não têm origem árabe, mas o árabe é a língua mais falada; o inglês e o francês também são correntes, devido à história de colonizações) não termina por ai. Meu pai, embora cearense, descendente de holandeses e portugueses, me alfabetizou lendo para mim histórias das 1001 Noites (Alf Layla wa-Layla). Entre Ifrites, ou gênios, ou djins, e dançarinas de ventre, suks (os mercados a céu aberto) com barracas vendendo magia, e fartas refeições, varando a madrugada, em meio a uma troca de histórias entre os convivas, fui menino, minha imaginação voou por sobre as dunas dos desertos, invadiu segredos dos oásis, e deu no que deu.
Considerando ainda que tanto o "Olivieri" da minha avó, quanto o "Aguiar" do meu pai, são sobrenomes típicos de cristãos novos (ou antigos judeus), como todo aquele nascido neste país, sou portanto o resultado de uma mestiçagem fértil, étnica e cultural, e meu sentimento internacionalista, acima de qualquer nativismo, vem daí – creio. Por exemplo, acredito que a democracia é uma obra em aberto (como diria Umberto Eco), em construção, e será consolidada com movimentos mundiais, como é o antirracismo e a antihomofobia, a defesa do meio ambiente contra a voracidade gananciosa, hoje em dia, e a solidariedade aos refugiados e aos atingidos pelas catástrofes ou pelo genocídio de todas as matizes; por exemplo, o mundo se pergunta unido como salvar os povos indígenas da extinção patrocinada pelo Governo Federal.
Somos Cidadãos do Mundo e nos cabe, a cada geração, avançar na materialização da Utopia da Fraternidade Universal.
Assim, neste momento de dor, pelas vítimas no Líbano e por mais uma destruição de Beirute, quis contar essa história. O Líbano que não conheci está no meu sangue e nos meus sonhos. A dor do Líbano é também minha. É nossa!


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