EUROPA
Da Ditadura Aqui Para o Banho de Internacionalismo do lado de Lá do Atlântico
Luiz Antonio Aguiar
Lembro até hoje do cerco, na cozinha dos meus pais. Minha gang (não chamávamos assim na época) de zorra, Argollo à frente, tentando me convencer:
- Mas o que é que você vai fazer na Europa, Bicho? Vem pra Bahia com a gente, passar o Carnaval! Vai ser uma doideira, lá na Bahia. E na Europa, um gelo, inverno brabo, coisa velha... Lá, você é estrangeiro. Vem com a gente!
Estava com a passagem comprada. E realmente me senti tentado. Aquela era minha turma. Pelas madrugadas do Rio, encostávamos nos bares mais marginais, querendo ser fora da ordem de qualquer maneira. Tempos de ditadura. E a gente ia pra Avenida Atlântica, subia nos bancos de pedra e declamava nossos poemas. Pensavam que a gente estava doido. Um dia, resolvemos mergulhar na água nús. Quando olhamos em volta, uma dezena de caras tinha aderido a gente, todos querendo nos agarrar. Fugimos correndo. Rebeldes, mas não tanto, na época. Mas, a vontade de se sentir marginal, fora do sistema, era grande.
- Bahia é coisa nossa! -, apelou o Argollo.
] Mas, eu fui mesmo para a Europa.
Quer dizer, Europa... Tinha pouquíssimo dinheiro de uma herança e uns acumulados. Escolhi passar dez dias em Londres, uma semana em Amsterdã e vinte dias em Paris. Era o que dava. Sem grana para um casaco bom para inverno, nem para comer direito (emagreci 10 quilos em um mês de Europa – andava o dia inteiro, comia pão e vinho... mas vinho nacional, na França!).
Não me arrependi de deixar a coisa nossa para lá... Em Londres, entre muitas lembranças, recordo do espanto de poder comprar os jornais dos diferentes partidos de esquerda na banca de jornais da esquina. E aquela moda deles, linda, de poder falar o que quisessem, até mal da Rainha, no Speakers Corner, contanto que subissem num banquinho, para não estarem pisando em solo britânico. Foi em Londres que me apaixonei por Van Gogh.
Não conhecia pintura, nem ligava para isso. Mas era uma quarta-feira de 5 graus negativos na rua (e eu de jaqueta jeans), e era também o dia da semana em que muitos museus ofereciam entrada grátis para estudantes. Havia aquecimento nos museus. Entrei num, o primeiro que apareceu na minha frente. Estava enregelado. De repente, dei com uma tela de Van Gogh. Caí sentado no chão, emocionado. Nunca tinha visto algo tão vivo, tão vibrante, na vida.
Momentos depois, um guarda do museu veio me sacudir falando rispidamente que eu não podia ficar arriado no chão daquela maneira, que não era o jeito de ver quadros, coisas assim... Viu logo que eu era estrangeiro, latino ainda por cima. E acrescentou isso às suas sacudidelas.
Tarde demais. Eu havia me apaixonado, e essa paixão dura até hoje. Quarenta anos depois, escrevi SONHOS EM AMARELO, sobre Van Gogh, um dos meus livros de maior sucesso, com prêmios e traduções no exterior – pouco reconhecido no Brasil; algumas resenhas das quais me orgulho, como a do professor Gustavo Bernardo. Era uma declaração de amor ao pintor que mudou minha vida. Diante daquele quadro, eu me senti no mundo, finalmente. Havia alcançado... Estava na Europa!
Em Amsterdã, vi pela primeira vez policiais civilizados, barbudos, mais com cara de hippies do que eu, que só tinha levado uma calça jeans (naquele tempo se dizia calça “lee”, e nem pensava em fazer shopping na Europa – dinheiro curto, muito curto, se já existia cartão de crédito, na época, eu ainda não havia sido apresentado). Dois guardas, muito sentados num banco, com um garoto no meio. O guri estava obviamente doidão. Doidaço. E os guardas, no papo, tentavam acalmá-lo. Nem se pensava em prendê-lo. Apenas evitar que se ferisse.
Fiz 20 anos em Amsterdã, mas a cidade me encantava tanto (principalmente os museus com quadros de Van Gogh), que me esqueci disso, e só fui lembrar da data depois das seis horas da tarde.
Depois foi Paris. É inenarrável o que eu senti. Passava o dia e a noite caminhando. Atravessava o Sena inúmera vezes, pelas pontes... Da margem esquerda, onde estava hospedado, para a direita, e voltava. Estava morando numa pensão na Rue Cujas, que saía para uma lateral da Sourbonne. Uma das portas por onde os estudantes entravam para as aulas. Todo dia, de manhã, eu saía para o meu não-café-da-manhã e não-desjejum (o jejum continuaria até a baguete com a garrafa com vinho que eu deixara gelando na soleira da janela na noite anterior) do final do dia. E rezava, sim, rezava, para um dia poder estudar naquela universidade.
Certa noite, fui a um show musical e vi algo que me embebedou – de vinho, em Paris, a gente nunca fica bêbado, ainda mais caminhando o dia inteiro. Era um pré-roqueiro famoso, americano, que ia tocar, Chuck Berry. Não havia ingresso para todo mundo, mesmo para quem podia pagar a entrada, o que não era o meu caso. A policia protegeu a frente do teatro, e a estudantada começou a se juntar.
De repente, começaram a tacar pedras na polícia, que avançou para eles. Numa manobra super bem apreendida, um grupo se deslocou para um lado, outro para o outro lado e brecou. A polícia, que em qualquer lugar do mundo avança toda unida, colada um no outro, obedecendo as ordens de um único comandante, não se dispersou como eles. Resultado. O grupo da frente começou a tacar pedras. O que se havia desviado, voltou por trás dos policiais e dá-lhe pedrada também. A polícia ficou encurralada. Era a primeira vez que vi a polícia – que também não apelou para a violência desmedida – se dar mal, num confronto de rua, derrotada e posta para correr pelos estudantes. Maio de 1968 ainda estava bem fresco na cabeça tática dos movimentos de rua, faziam tudo certo, como se tivessem ensaiado – estávamos, creio, em 1974.
Fiquei orgulhoso, como se já tivesse assento ao lado deles na Sourbonne. Além disso, havia as livrarias, onde podia comprar os livros mais proibidos no Brasil. Os cinemas, onde podia assistir aos filmes mais proibidos no Brasil. Vi O Último Tango em Paris e Laranja Mecânica, proibidos aqui, em Paris. E muitos e muitos mais. Lia todo dia L’Humanitè (chegava na banca e, me achando, pedia “L’Huma, s’il vou plait”), jornal oficial do Partido Comunista Francês, inclusive com várias matérias, denunciando as torturas, os assassinatos políticos e a censura no Brasil.
Sim, estava na Europa. Mas, chegou a hora de voltar. Na Alfândega, estavam revistando todo mundo. O cara da Polícia Federal meteu a mão na minha mala de livros Eu rezei. Ele sacou de lá um Heidegger, assoviou e falou: “Cuidado pra não ficar maluco, hem, garoto”.
Se tivesse fuçado mais, encontraria o Livro Vermelho de Mao, O Diário de Che, Lênin, Trotski, a banda toda, mais as brochuras vermelhos, com as atas e resoluções das reuniões da Internacional Comunista. Anos depois, essa mesma mala teve de ser entregue, no meio da madrugada, para um companheiro que eu não vi quem era, que passou de carro para recolhê-la, junto com os documentos da O. (nossa organização clandestina, não-militarista, a Organização de Combate Marxista-Leninista Política Operária – POLOP). Eu saí de casa naquela noite, a polícia bateu lá no dia seguinte. Minha mae, muito à vontade, recebeu os agentes na sala, ofereceu-lhes café e, quando perguntaram onde eu estava ela suspirou e disse: “Ah, o senhor sabe como esses garotos são... deve estar tendo uma aventura com alguma menina, por aí Volta amanhã ou depois”... Era o começo dos meus 6 meses de clandestinidade.
Estava de volta ao Brasil.
Tive sorte, não fui pego, cheguei a ser seguido, mas despistei os caras, e não passei nenhuma cana braba. Às vezes em que fui preso, foi pichando parede, ou em manifestações de rua, e nunca fui identificado como militante. Passei horas, uma noite no máximo, no DOPS na Rua da Relação. O delegado que nos recebneu, numa dessas, apontou uma parede, que na verdade era uma grade de cima a baixo, do teto ao chão e disse: “Se vocês passarem através daquela grade, aí o pau come”... Não tivemos de passar coisa nenhuma. Ficaram olhando para a cara da gente, a noite inteira e nos mandaram embora de manhã. Já na época, tinha amigos lá dentro, sabia que estavam sendo torturados barbaramente, sabia do que o delegado estava falando.
Entretanto, vivi meu tempo. Fiz o que tinha de fazer, no tempo em que era necessário fazer. Como agora, talvez pela última vez, também tenha de lutar contra uma tirania que amaça, como uma nuvem sombria, a todos nós.
Nunca esqueci a Europa. Voltei lá outras vezes. Foram viagens diferentes. Descobri outras coisas, fui acompanhado, apaixonado, enfim... Mas, daquela primeira vez foi quando compreendi o que era o mundo. Vi o mundo. O Mundo... essa possibilidade de uma grande, fraternal comunidade sem fronteiras. Que hoje, em todos os quadrantes, lutam assim como nós, contra o racismo, a homofobia, pela proteção dos povos indígenas e do meio ambiente. Pela democracia. E por tantas outras causas solidárias. Internacionalmente solidárias.
Foi da primeira vez que vi o mundo que esse sonho, essa utopia fértil e atualíssima, me pegou. De uma vez por todas e para sempre.
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