segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O ESCRITOR QUE REINVENTOU O BRASIL:

JOSÉ DE ALENCAR








Luiz Antonio Aguiar




“N’O Guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça.”

                   José de Alencar, Como e porque sou romancista.

               


                Como e por que sou romancista é um documento notável, atípico na Literatura, principalmente a brasileira, mas muito coerente com  José de Alencar (1829-1877), um escritor que, entre outras qualificações, se identificava como polemista.
E em muitas polêmicas, ele se envolveu. Nunca deixou de responder às críticas que recebia, fosse em seus prefácios, em seus ensaios, e mesmo sob fantasia de algum de seus personagens. Jamais concordaria em falsear sua Literatura. Em apresentá-la domesticada, privada de corte, a serviço do status quo, nem das conveniências ou mediocridade oficiais. Sua Literatura servia somente à Literatura. E ao seu projeto.
Sim, Alencar era um escritor com  um projeto. Um ideal literário, que era também político. E fazia questão de lutar por isso em todos os espaços de que dispunha e nos que criava.
                Esse projeto era reinventar o Brasil.
                Não o Brasil geográfico, é claro, mas um imaginário de Brasil, capaz de dar cria a um povo – os brasileiros
                Sumariamente, explicando ...



PERI NÃO PODIA SER GUARANI


                O processo de Independência, entre muitas conjuras, revoltas, insurreições, se concretizou com a expulsão de D. Pedro I, em 1831. Em meio a muita luta, foi revogada nossa ligação política e cultural (e também, em certa media, do nosso imaginário) com Portugal. Abriu-se uma espécie de lacuna em nossa identidade. Alencar via a necessidade de reinventar o Brasil, um Brasil sem Portugal para cobrir essa carência.
Foi essa a ousada proposta de José Martiniano de Alencar: a Literatura reinventando o Brasil. Criando um novo Brasil. Foi a causa que ele mais apaixonadamente abraçou.   
                Leitor do romancista americano Fenimore Cooper (O último dos moicanos, 1757) e do inglês Walter Scott (Ivanhoé, 1820), concebia que um sentimento de nacionalidade, de pertencimento, de algo em comum, essa liga que torna população/habitantes em Um Povo não surge, nem muito menos se consolida no íntimo das pessoas, sem mitos compartilhados. O Guarani é isso. É essa proposta, essa tentativa.
                Já na sua época (e mais ainda a partir do Modernismo), o personagem Peri era criticado como inverossímil, e até mesmo falso, tanto pelo modo de agir como o de falar. Não era um índio de verdade.
Já o fato de ser identificado como Goitacás torna esse guarani pouco confiável.
Os goitacases foram extintos no século XVIII por uma epidemia de varíola espalhada entre eles por prisioneiros portugueses infectados e abandonados pelos colonizadores para serem devorados pelos nativos, que assim seriam contaminados por uma doença contra a qual seus corpos não possuíam nenhum tipo de imunidade. O ardil genocida impediu que chegassem até nós registros mais apurados sobre seu modo de vida, qualquer conhecimento sobre seu idioma e mesmo sua etnia. Não pertenciam ao grupo Tupi-Guarani, e mesmo a palavra “Goitacás” tem sua origem no tupi – que certamente não era a língua deles.
Ou seja, Peri ou era Guarani, ou era Goitacás. A não ser que se estivesse supondo o significado original da palavra “guarani”, em Tupi-Guarani: Guerreiro.
Agora, a pergunta é: E daí?
Alencar (é só ler Como e por que sou romancista), não se propôs a fazer um tratado antropológico.
Queria criar um mito.
Peri é um Ivanhoé, de Scott, mito-referência para a identidade/ nacionalidade inglesa, é um Uncas, de Cooper, mito-referência para a identidade/nacionalidade norteamericana. Não seria de se admirar se Alencar jamais tivesse visto um índio na vida, nem no Ceará, nem na Corte, Rio de Janeiro. E com certeza, diferente dos antropólogos, sertanistas e indianistas do século XX, jamais enveredopu em expedições pelas florestas para  vê-los em estado original e em seu mundo próprio.
Ora,  uma vez independentes, não poderíamos mais ter como referência Portugal e seu passado, nem a Europa, para nosso sentimento de identidade/nacionalidade/pertencimento. Já não seria a história medieval ibérica a nos dar uma raiz em comum. No entanto,  dentro do projeto de Alencar, poderíamos nos  mirar no índio e nos identificarmos com a sua bravura, sua força, simbolizando a exuberância da natureza tropical.
E isso mesmo que esse indígena, como também reconhece Alencar (ver citação acima), não tivesse tido uma presença de fato nem na sociedade colonial, nem na sociedade e cultura (independente) que se formava.
Também isso não importava.  Cabia era construir um mito. Uma liga. Plasmar um povo. Ou cunhá-lo, como se cunham metáforas.
É bom lembrar que Alencar é ainda mais explícito no caso de Iracema, que tem como subtítulo Uma lenda do Ceará. É a história mítica da geração de um povo, filho do invasor português com a semideusa indígena. 
Outros escritores, além de Alencar,  participaram da corrente denominada Indianista. No entanto, ele foi mais extremado, já que seu projeto, além da construção do Índio-herói, enfatizava outros aspectos.




O ESCRITOR MILITANTE


                Em vários de seus escritos polemistas, Alencar ergueu a bandeira de criar uma Literatura Brasileira. Compreendia essa militância de uma maneira bastante avançada para o seu tempo, já que não a resumia a compor histórias ambientadas no Brasil, com personagens brasileiros, algo puxado ao exotismo, ao abacaxi com bananas. O que visava  era captar um público desejoso de uma Literatura com nossa cara mestiça,  e apto a embarcar em dramas, conflitos e tramas ambientados no Brasil, interpretadas por personagens brasileiros.
Ele próprio um leitor de Eugene Sue, na juventude, de Dumas e outros clássicos europeus, compreendia a dependência de nosso imaginário, nossa pouca habilitação a aceitar uma história vivida por uma  Aurélia, ou uma Lúcia,  ambientada na Rua do Ouvidor, ou em Botafogo, ou no Rio Comprido, para quem estava acostumado a sonhar apenas quando transportado para a elegância dos bulevares franceses ou para os mistérios submersos no fog londrino. O já escasso público leitor brasileiro lia traduções de folhetins franceses. A isso considerava Literatura. Nesses, é que se dispunha a embarcar. 
Percebam que não necessariamente está em jogo aqui um intuito nacionalista, de valorizar o que é nosso, ou algo semelhante. Alencar superava o propósito simplório, visando (ao meu ver) obter aval do público para criar uma Literatura que pudesse refletir (como é próprio da Literatura) sobre nós mesmos, em vez de se fantasiar de europeia. Que pudesse usar nossos dramas como matéria-prima para a Literatura.
Já  bastava a Rua do Ouvidor que, em pleno verão carioca, para seguir a moda francesa, obrigava as mulheres a vestirem veludos, mangas compridas e longas caudas, chapéus e luvas. Que nossa Literatura pudesse atacar esse caiporismo, seria seu propósito, e a única maneira de perseguir seu projeto – a Literatura forjando um Brasil longe do complexo de vira-lata (uma expressão que viria bem depois e em outro contexto, mas que poderia se aplicar aqui). Seria a afirmação de que poderíamos ser civilizados sem sermos uma caricatura, europeus imperfeitos, uma aberração híbrida, privada da identidade.
Alencar, em seu projeto, precisava trazer a Literatura para reescrever o Brasil.



COMO É GOSTOSO MEU BRASILEIRO


                Também em vários momentos, Alencar rebateu a crítica ao abrasileiramento  do português em seu texto. Sim,  muitos o condenavam porque  seus personagens e narradores falavam como o português era falado no Brasil, e não com o jeito lusitano.
                Muitas e muitas vezes, respondeu que não escrevia assim por uma displicência, ou frouxidão, em relação à linguagem, mas por procurar construir a verossimilhança – proporcionar aos leitores no Brasil a oportunidade de escutar sua própria voz nos personagens, falando como eles falavam e não com a submissão ao erudito, ao superado (o português foi atualizado á brasileira, no Brasil), ao colonizado.
                Uma heroína, um personagem conflituado, dilacerado por dilemas morais e/ou sociais, poderia expressá-los num linguajar brasileiro. Alencar tinha consciência de que, se conseguisse isso,   grande parte de seu projeto estaria ganho. Note-se que, mais uma vez, temos aqui um escritor que prioriza a composição literária, a criação, a construção da verossimilhança, e não o que é considerado culto, correto, de bom tom.
Devemos essa bandeira a Alencar.


UM PAÍS SE FAZ COM MULHERES E LIVROS

                Alencar reinventou o Mapa do Brasil.
                Escreveu histórias passadas no Sul, no Centro, no Norte.
                E reinventou também o passado, dando ao Índio-Mitológico que criou o papel de protagonista na formação da nação (que reinventou). Muita coisa pode ser questionada em seus objetivos e na tática que utilizou. Mas, é curioso que esse político conservador, não-abolicionista, monarquista, filho de uma sociedade patricarcal, quando partiu para transformar a Corte (o Rio de Janeiro) em histórias/Literatura, elegeu como suas protagonistas, as mulheres.
                Lúcia. A prostituta de coração virgem, que revoltou aos conservadores (e ao Imperador) por não ser condenada pelo seu autor. Mas que outro escritor teria a coragem de colocar o dedo na chaga dissimulada pela auréola de santidade familiar e conjugar da Corte? Lucíola, o romance que denunciava a hipocrisia de uma sociedade que hostilizava e maltratava suas prostitutas em público, fechando os olhos para o fato de que eram os maridos, jovens desejosos de aventuras e iniciação sexual, noivos determinados a preservar a virtude de suas prometidas, os clientes da prostituição.

Tutorial de "Luciola", na Coleção 
Descobrindo os Clássicos


E num trecho do livro, o protagonista masculino, Paulo, desafia (As asas de um anjo, peça teatral de Alencar com enredo muito semelhante teve a exibição suspensa, poucos dias após a estreia, e o teatro ocupado pela polícia): “Que raivem os moralistas!”
Ou ainda, que outro escritor se recusaria a usar sua Literatura para fazer parte do jogo de aparências ...
                 E expor o aspecto de arranjo no matrimônio, no esquema social vigente, em que a mulher não era dona nem sequer de seus bens, mas sim o esposo ... Do comércio, oferta e caça de dotes por conta da necessidade das famílias de arranjar maridos para suas filhas... De  descarnar uniões em que o afeto e o amor e a lealdade raramente prevaleciam?
 Em Senhora, estrelado pela surpreendente Aurélia Camargo,  o casamento é tratado como contrato, negócio, de compra (o marido) e transferência de propriedadede (a noiva). E isso já nos títulos das partes da novela:  “Preço”, “Quitação”, “Posse”, “Resgate”.
                No Brasil reinventado por Alencar, a Corte, o Rio de Janeiro, o fígado que recebia as influências europeias e as metabolizava. O cérebro e coração do país. O presente e as possibilidade de futuro (já que o Indianismo  era o nosso passado, nosso legado, patrimônio míitico) foram seus Perfis de Mulher. Todos os romances do Mapa Literário do Brasil Reinventado por Alencar, ambientados na Corte, eram protagonizados por mulheres. Poderia não ser a chefe da casa, oficialmente falando, mas se tornou, em Alencar, dona da História.





O LEGADO

Tutorial de "Senhora"



                Quando Machado de Assis, um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, escolheu o patrono da cadeira que lhe cabia (no.23), indicou José de Alencar. E, ao celebrar a inauguração da estátua de Alencar, no Catete (bairro do Rio de Janeiro), e em outras ocasiões, reconheceu a influência que o autor de Lucíola e Senhora teve sobre ele.
                Como Alencar, Machado foi criticado por usar um português abrasileirado, considerado pobre, em comparação a seus contemporâneos... Já o filho de Alencar, Mário Alencar, foi um crítico fundamental para reconhecer em Machado o herdeiro do mesmo projeto literário de seu pai e esclarecê-lo para os demais críticos. Foi um grande defensor da Literatura de Machado. Graças a ele, a crítica, ou pelo menos parte dela, deixou de cometer muitas injustiças contra o romancista.
Assim como Alencar,  Machado também sonhava em conquistar leitores. Via no abrasileiramento da linguagem e no das ambientações e personagens um caminho para poder tornar a Literatura um elemento de reflexão sobre nossos dilemas diante do mundo. Nada contra ler  Cervantes, Shakespeare, Poe, que foram diletos de Machado. Mas, para que  o questionamento dos  nossos caprichos culturais atravessassem a carne do leitor e entrassem na sua corrente sanguínea, Brás Cubas  tinha, sim, de ser um egresso da elite brasileira, abastada, devotada ao ócio, que desperdiçou suas vantagens e privilégio por vaidade extremada (vaidade somada a inépcia é patético, às vezes trágico: e já aí está um bom núcleo para qualquer ficção) e por incompetência de viver, de produzir, de criar, de ser.  Brás Cubas não funcionaria para o leitor brasileiro se fosse um parisiense, um londrino, um alemão.  
                Ora, a Literatura é um dos mais complexos e férteis modos de o ser humano reconhecer o mundo, recriá-lo, situar-se nele. E o legado de Alencar, ou seja, seu projeto, foi assumido (como nas corridas de revezamento, já que Alencar morreu precocemente) por Machado de Assis, que o desenvolveu, e envenenou-o, até com ingredientes  de cunho universal, existencial e metafísico, os quais o transformaram num  prodígio da Literatura. Machado, ao meu ver, era um escritor mais poderoso do que Alencar, e nos deixou uma obra mais soberba.  O que não impediu Machado de lhe ser grato e a nós, de prestar reconhecimento  àquele que fundou o que se pode entender como Romance Brasileiro.
                Ou seja, a Alencar devemos a invenção do Ser Brasileiro, que ainda está em vigor (e assim continuará até nova ruptura cultural) e a próxima reinvenção do Brasil.

Que, creio, também será empreendida pela Literatura.  

Estátua de José de Alencar, inaugurada em 1897 



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