O ESCRITOR QUE REINVENTOU O BRASIL:
JOSÉ DE ALENCAR
Luiz Antonio Aguiar
“N’O Guarani o selvagem é um ideal, que o escritor intenta
poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que
o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os
restos embrutecidos da quase extinta raça.”
José de Alencar, Como e porque sou romancista.
Como e por que sou romancista é um
documento notável, atípico na Literatura, principalmente a brasileira, mas
muito coerente com José de Alencar (1829-1877), um
escritor que, entre outras qualificações, se identificava como polemista.
E em muitas polêmicas, ele se
envolveu. Nunca deixou de responder às críticas que recebia, fosse em seus
prefácios, em seus ensaios, e mesmo sob fantasia de algum de seus personagens. Jamais
concordaria em falsear sua
Literatura. Em apresentá-la domesticada, privada de corte, a serviço do status
quo, nem das conveniências ou mediocridade
oficiais. Sua Literatura servia
somente à Literatura. E ao seu projeto.
Sim, Alencar era um escritor
com um projeto. Um ideal literário, que
era também político. E fazia questão de lutar por isso em todos os espaços de
que dispunha e nos que criava.
Esse
projeto era reinventar o Brasil.
Não o
Brasil geográfico, é claro, mas um imaginário
de Brasil, capaz de dar cria a um povo – os brasileiros.
Sumariamente,
explicando ...
PERI NÃO PODIA SER GUARANI
O
processo de Independência, entre muitas conjuras, revoltas, insurreições, se
concretizou com a expulsão de D. Pedro I, em 1831. Em meio a muita luta, foi
revogada nossa ligação política e cultural (e também, em certa media, do nosso
imaginário) com Portugal. Abriu-se uma espécie de lacuna em nossa identidade. Alencar via a necessidade de reinventar
o Brasil, um Brasil sem Portugal para
cobrir essa carência.
Foi essa a ousada proposta de
José Martiniano de Alencar: a Literatura reinventando o Brasil. Criando um novo
Brasil. Foi a causa que ele mais apaixonadamente abraçou.
Leitor
do romancista americano Fenimore Cooper (O
último dos moicanos, 1757) e do inglês Walter Scott (Ivanhoé, 1820), concebia que um sentimento de nacionalidade, de pertencimento,
de algo em comum, essa liga que torna população/habitantes em Um Povo não surge, nem muito menos se
consolida no íntimo das pessoas, sem mitos compartilhados. O Guarani é isso. É essa proposta, essa tentativa.
Já na
sua época (e mais ainda a partir do Modernismo), o personagem Peri era
criticado como inverossímil, e até mesmo falso,
tanto pelo modo de agir como o de falar. Não era um índio de verdade.
Já o fato de ser identificado
como Goitacás torna esse guarani
pouco confiável.
Os goitacases foram extintos no
século XVIII por uma epidemia de varíola espalhada entre eles por prisioneiros portugueses
infectados e abandonados pelos colonizadores
para serem devorados pelos nativos, que assim seriam contaminados por uma
doença contra a qual seus corpos não possuíam nenhum tipo de imunidade. O ardil
genocida impediu que chegassem até nós registros mais apurados sobre seu modo
de vida, qualquer conhecimento sobre seu idioma e mesmo sua etnia. Não
pertenciam ao grupo Tupi-Guarani, e
mesmo a palavra “Goitacás” tem sua
origem no tupi – que certamente não era a língua deles.
Ou seja, Peri ou era Guarani, ou
era Goitacás. A não ser que se estivesse supondo o significado original da
palavra “guarani”, em Tupi-Guarani: Guerreiro.
Agora, a pergunta é: E daí?
Alencar (é só ler Como e por que sou romancista), não se
propôs a fazer um tratado antropológico.
Queria criar um mito.
Peri é um Ivanhoé, de Scott,
mito-referência para a identidade/ nacionalidade inglesa, é um Uncas, de
Cooper, mito-referência para a identidade/nacionalidade norteamericana. Não
seria de se admirar se Alencar jamais tivesse visto um índio na vida, nem no
Ceará, nem na Corte, Rio de Janeiro. E com certeza, diferente dos antropólogos,
sertanistas e indianistas do século XX, jamais enveredopu em expedições pelas
florestas para vê-los em estado original
e em seu mundo próprio.
Ora, uma vez independentes,
não poderíamos mais ter como referência Portugal e seu passado, nem a Europa, para
nosso sentimento de identidade/nacionalidade/pertencimento. Já não seria a
história medieval ibérica a nos dar uma raiz
em comum. No entanto, dentro do projeto de Alencar, poderíamos nos mirar no índio e nos identificarmos com a sua
bravura, sua força, simbolizando a exuberância da natureza tropical.
E isso mesmo que esse indígena,
como também reconhece Alencar (ver citação acima), não tivesse tido uma
presença de fato nem na sociedade colonial, nem na sociedade e cultura (independente) que se formava.
Também isso não importava. Cabia era construir um mito. Uma liga. Plasmar
um povo. Ou cunhá-lo, como se cunham metáforas.
É bom lembrar que Alencar é ainda mais explícito no caso de Iracema, que tem como subtítulo Uma lenda do Ceará. É a história mítica da geração de um povo, filho do invasor português com a semideusa indígena.
É bom lembrar que Alencar é ainda mais explícito no caso de Iracema, que tem como subtítulo Uma lenda do Ceará. É a história mítica da geração de um povo, filho do invasor português com a semideusa indígena.
Outros escritores, além de Alencar, participaram da corrente denominada Indianista. No entanto, ele foi mais
extremado, já que seu projeto, além
da construção do Índio-herói, enfatizava outros aspectos.
O ESCRITOR MILITANTE
Em
vários de seus escritos polemistas,
Alencar ergueu a bandeira de criar uma Literatura
Brasileira. Compreendia essa militância
de uma maneira bastante avançada para o seu tempo, já que não a resumia a
compor histórias ambientadas no Brasil, com personagens brasileiros, algo
puxado ao exotismo, ao abacaxi com bananas. O que visava era captar um público desejoso de uma
Literatura com nossa cara mestiça, e apto
a embarcar em dramas, conflitos e tramas ambientados no Brasil, interpretadas
por personagens brasileiros.
Ele próprio um leitor de Eugene
Sue, na juventude, de Dumas e outros clássicos europeus, compreendia a dependência de nosso imaginário, nossa
pouca habilitação a aceitar uma
história vivida por uma Aurélia, ou uma
Lúcia, ambientada na Rua do Ouvidor, ou em
Botafogo, ou no Rio Comprido, para quem estava acostumado a sonhar apenas quando transportado para a
elegância dos bulevares franceses ou para os mistérios submersos no fog
londrino. O já escasso público leitor brasileiro lia traduções de folhetins
franceses. A isso considerava Literatura.
Nesses, é que se dispunha a embarcar.
Percebam que não necessariamente
está em jogo aqui um intuito nacionalista, de valorizar o que é nosso, ou algo semelhante. Alencar superava o
propósito simplório, visando (ao meu ver) obter aval do público para criar uma
Literatura que pudesse refletir (como é próprio da Literatura) sobre nós mesmos,
em vez de se fantasiar de europeia.
Que pudesse usar nossos dramas como matéria-prima para a Literatura.
Já bastava a Rua do Ouvidor que, em pleno verão
carioca, para seguir a moda francesa, obrigava as mulheres a vestirem veludos,
mangas compridas e longas caudas, chapéus e luvas. Que nossa Literatura pudesse atacar esse caiporismo, seria seu
propósito, e a única maneira de perseguir seu projeto – a Literatura forjando
um Brasil longe do complexo de vira-lata (uma
expressão que viria bem depois e em outro contexto, mas que poderia se aplicar
aqui). Seria a afirmação de que poderíamos ser civilizados sem sermos uma caricatura, europeus imperfeitos, uma aberração híbrida, privada da
identidade.
Alencar, em seu projeto,
precisava trazer a Literatura para reescrever o Brasil.
COMO É GOSTOSO MEU BRASILEIRO
Também
em vários momentos, Alencar rebateu a crítica ao abrasileiramento do
português em seu texto. Sim, muitos o
condenavam porque seus personagens e
narradores falavam como o português
era falado no Brasil, e não com o jeito lusitano.
Muitas
e muitas vezes, respondeu que não escrevia assim por uma displicência, ou
frouxidão, em relação à linguagem, mas por procurar construir a verossimilhança
– proporcionar aos leitores no Brasil a oportunidade de escutar sua própria
voz nos personagens, falando como eles falavam e não com a submissão ao erudito, ao superado (o português foi atualizado á brasileira, no Brasil), ao colonizado.
Uma
heroína, um personagem conflituado, dilacerado por dilemas morais e/ou sociais,
poderia expressá-los num linguajar brasileiro. Alencar tinha consciência de que,
se conseguisse isso, grande
parte de seu projeto estaria ganho. Note-se que, mais uma vez, temos aqui um
escritor que prioriza a composição literária, a criação, a construção da
verossimilhança, e não o que é considerado culto,
correto, de bom tom.
Devemos essa bandeira a Alencar.
UM PAÍS SE FAZ COM MULHERES E LIVROS
Alencar
reinventou o Mapa do Brasil.
Escreveu
histórias passadas no Sul, no Centro, no Norte.
E
reinventou também o passado, dando ao Índio-Mitológico que criou o papel de
protagonista na formação da nação (que reinventou). Muita coisa pode ser
questionada em seus objetivos e na tática que utilizou. Mas, é curioso que esse
político conservador, não-abolicionista, monarquista, filho de uma sociedade
patricarcal, quando partiu para transformar a Corte (o Rio de Janeiro) em
histórias/Literatura, elegeu como suas protagonistas, as mulheres.
Lúcia. A prostituta de coração virgem, que revoltou aos conservadores
(e ao Imperador) por não ser condenada pelo seu
autor. Mas que outro escritor teria a coragem de colocar o dedo na chaga dissimulada
pela auréola de santidade familiar e conjugar da Corte? Lucíola, o romance que denunciava a hipocrisia de uma sociedade que
hostilizava e maltratava suas prostitutas em público, fechando os olhos para o
fato de que eram os maridos, jovens desejosos de aventuras e iniciação sexual,
noivos determinados a preservar a virtude de suas prometidas, os clientes da
prostituição.
Descobrindo os Clássicos
E num trecho do livro, o
protagonista masculino, Paulo, desafia (As
asas de um anjo, peça teatral de Alencar com enredo muito semelhante teve a
exibição suspensa, poucos dias após a estreia, e o teatro ocupado pela polícia):
“Que raivem os moralistas!”
Ou ainda, que outro escritor se
recusaria a usar sua Literatura para fazer parte do jogo de aparências ...
E expor o aspecto de arranjo no matrimônio, no esquema social vigente, em que a mulher
não era dona nem sequer de seus bens, mas sim o esposo ... Do comércio, oferta
e caça de dotes por conta da necessidade das famílias de arranjar maridos para suas
filhas... De descarnar uniões em que o
afeto e o amor e a lealdade raramente prevaleciam?
Em Senhora, estrelado pela surpreendente Aurélia Camargo, o casamento é tratado como contrato, negócio, de compra (o marido) e transferência
de propriedadede (a noiva). E isso já nos títulos das partes da novela: “Preço”, “Quitação”, “Posse”, “Resgate”.
No
Brasil reinventado por Alencar, a Corte, o Rio de Janeiro, o fígado que recebia
as influências europeias e as metabolizava. O cérebro e coração do país. O
presente e as possibilidade de futuro (já que o Indianismo era o nosso
passado, nosso legado, patrimônio míitico) foram seus Perfis de Mulher. Todos os romances do Mapa Literário do Brasil
Reinventado por Alencar, ambientados na Corte, eram protagonizados por
mulheres. Poderia não ser a chefe da casa,
oficialmente falando, mas se tornou, em Alencar, dona da História.
O LEGADO
Quando
Machado de Assis, um dos fundadores e primeiro presidente da Academia
Brasileira de Letras, escolheu o patrono da cadeira que lhe cabia (no.23), indicou
José de Alencar. E, ao celebrar a inauguração da estátua de Alencar, no Catete
(bairro do Rio de Janeiro), e em outras ocasiões, reconheceu a influência que o
autor de Lucíola e Senhora teve sobre ele.
Como
Alencar, Machado foi criticado por usar um português abrasileirado, considerado
pobre, em comparação a seus contemporâneos... Já o filho de Alencar, Mário
Alencar, foi um crítico fundamental para reconhecer em Machado o herdeiro do mesmo
projeto literário de seu pai e esclarecê-lo para os demais críticos. Foi um
grande defensor da Literatura de Machado. Graças a ele, a crítica, ou pelo
menos parte dela, deixou de cometer muitas injustiças contra o romancista.
Assim como Alencar, Machado também sonhava em conquistar leitores. Via no
abrasileiramento da linguagem e no das ambientações e personagens um caminho
para poder tornar a Literatura um elemento de reflexão sobre nossos dilemas
diante do mundo. Nada contra ler
Cervantes, Shakespeare, Poe, que foram diletos de Machado. Mas, para que
o questionamento dos nossos caprichos culturais atravessassem a
carne do leitor e entrassem na sua corrente sanguínea, Brás Cubas tinha, sim, de ser um egresso da elite
brasileira, abastada, devotada ao ócio, que desperdiçou suas vantagens e
privilégio por vaidade extremada (vaidade somada a inépcia é patético, às vezes
trágico: e já aí está um bom núcleo para qualquer ficção) e por incompetência
de viver, de produzir, de criar, de ser.
Brás Cubas não funcionaria para o leitor brasileiro se fosse um parisiense,
um londrino, um alemão.
Ora, a
Literatura é um dos mais complexos e férteis modos de o ser humano reconhecer o
mundo, recriá-lo, situar-se nele. E o legado de Alencar, ou seja, seu projeto,
foi assumido (como nas corridas de revezamento, já que Alencar morreu
precocemente) por Machado de Assis, que o desenvolveu, e envenenou-o, até com ingredientes
de cunho universal, existencial e metafísico, os quais o transformaram num prodígio da Literatura. Machado, ao meu ver,
era um escritor mais poderoso do que Alencar, e nos deixou uma obra mais
soberba. O que não impediu Machado de
lhe ser grato e a nós, de prestar reconhecimento àquele que fundou o que se pode entender como
Romance Brasileiro.
Ou
seja, a Alencar devemos a invenção do Ser
Brasileiro, que ainda está em vigor (e
assim continuará até nova ruptura cultural) e a próxima reinvenção do Brasil.
Que, creio, também será empreendida pela Literatura.
Estátua de José de Alencar, inaugurada em 1897
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