quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Piratas…

Long John Silver  &  Jack Sparrow
vs.
Virginia Woolf

Ou… Clássicos & Pops x Modernistas…
Quebra-pau na Literatura


BULA de Leitura:
Indicado somente Para  Leitores Cascudos
E... para quem tem aquela vontade secreta e inconfessável de
começar a gostar de ler... (tentação à la Jekyll & Hyde)...
Contém estraga-prazeres (spoilers)





Meu livro  Cérbero, 
uma tremenda aventura pirata 
que partiu de uma extensa pesquisa histórica sobre pirataria 
e outros costumes da época...

       

         O pirata Long John Silver é o astro inconteste de A ilha do tesouro, o romance mais popular do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894).  Não é para qualquer um criar um personagem que produza uma reação tão complexa no leitor (e isso há já mais de 1 século). Não tem quem não se sinta agarrado por sua lábia e seu poder de sedução. E ao mesmo tempo, há (muitos) momentos em que torcemos para que ele termine a história na ponta de uma corda, bem enforcado, como todo pirata deve ser.
                Não existe uma palavra para defini-lo entre Bem e Mal, Vilão e Herói. Ele rouba a cena. E captura nossa atenção por conta de fascinantes detalhes de composição (novamente: vai ser bom escritor assim na Ilha do Tesouro); pela intensidade, quase febril, de sua atuação; pela sua habilidade de dissimulação – que nem sempre nos dá certeza se ele seria ou não capaz de praticar alguma tremenda maldade contra Jim, o adolescente-protagonista da história -; e até pela sua presença física em cena. É como se estivéssemos ao seu lado, a bordo do Hispaniola, ou na Ilha.



Long John Silver em desenho de François Place,
 ed. Melhoramentos/Galimard.


                Não é a única excelente criação de Stevenson e não o único personagem em que ele trabalha essa zona de penumbra, essa ambiguidade (tão assustadoramente humana). O Dr. Jekyll, o médico de O médico e o monstro também tem um íntimo que parece uma caverna repleta de reentrâncias – e isso mesmo antes de beber a célebre fórmula que o transforma no Sr. Hyde. Dá para se perguntar, com uma leitura mais de lupa, se esse medico com tantos segredos, e uma vida oculta, fora das vistas da sociedade vitoriana – a Inglaterra do século XIX, sob a Coroa da Rainha Vitória: uma sociedade moralista, formal, repressora, intolerante – se transforma no monstro justamente porque o monstro, ou o que ele entendia como tal, já habitava seu espírito. Faltava somente a Jekyll coragem para liberá-lo.
                Por essas e outras, Stevenson se tornou tão popular. A ilha do tesouro não lhe rendeu muito dinheiro, mas o tornou famoso, principalmente entre os adolescentes, para quem a história foi escrita. E O médico e o monstro lhe trouxe a admiração de outros escritores, como, na época, Henry James (1843-1916) e, mais recentemente, Vladimir Nabokov (1899-1977) e Jorge Luís Borges (1899-1986).  
A Ilha do Tesouro
em filme da Disney
que assisti quando era garoto...




Costuma-se entender que Stevenson (juntamente com Jane Austen -  1775/1817 -  e Charles Dickens – 1812/1870 ) foi um dos responsáveis por uma virada espetacular na Literatura do Romantismo da Grã-Bretanha. Até então, o gênero predominante era a poesia; mas, depois, com a repercussão alcançada por estes autores, a prosa (romance, novela, conto) tida antes como escrita de pouca importância, conquistou a preferência do público.
                São incontáveis as criações na cultura pop que se inspiram nos personagens e enredos de Stevenson. Para citar um dos mais famosos,  temos o Capitão Jack Sparrow, de Piratas do Caribe, que reza pela mesma cartilha ética e moral de Silver. É um canalha charmoso – o que vai se fazer? Gostamos dele, contanto que desconheça onde guardamos a chave de nossa casa, nem queira namorar ninguém da nossa família. Além disso, Sparrow (o Capitão Sparrow, como insiste em ser chamado) é tão peculiar, tão exótico, tão rico em detalhes...
                Com tamanho legado, no entanto, Stevenson não permaneceu como uma unanimidade na Literatura do século XX.  Alguns escritores e críticos de prestígio, da geração seguinte, os modernos[1], o rejeitaram.  Na Inglaterra, poucos encarnaram esse novo espírito e sua fantástica ousadia e liberdade de criação literária como Virgínia Woolf (1882-1941) e seu Grupo de Bloomsbury (bairro londrino onde costumavam se reunir, na residência de Woolf).
                Os modernos rejeitavam o passado vitoriano, e tudo o que pudesse, no entender deles, evocá-lo. Poderiam escolher qualquer dos autores do século anterior (Oscar Wilde, Charles Dickens, Henry James), mas elegeram Stevenson como seu alvo principal. Os críticos do grupo – com amplo espaço nos jornais da época  - o odiavam. Woolf e seus colegas aproveitavam toda e qualquer oportunidade para desdenhá-lo publicamente.





                Por quê? Bem... Toda sucessão de movimentos literários é conflituosa. O movimento que tenta se firmar geralmente busca formar sua identidade diante do público marcando suas diferenças em relação ao momento anterior, seus autores e suas obras mais representativas. Sábio ou não, é assim que acontece. Não deixa de ser engraçado a  londrina Virgínia Woolf acusar o escocês Stevenson (a Escócia foi dominada pela Inglaterra num processo doloroso, sangrento; e essa submissão nunca deixou de ser contestada – como aliás acontece ainda hoje), conhecido por suas denúncias quanto a mão pesada da Coroa Britânica sobre outros povos, de ser um vitoriano.
                Stevenson era um autor popular, lido amplamente (ao contrário do Grupo de Bloomsbury, que produzia uma Literatura erudita, elitizada, lutando ainda para ganhar seu terreno). Além do mais, Woolf e os modernos praticavam uma prosa-poética, cuja liberdade estava, entre outros aspectos, em ousar enredos e personagens tão pouco densos, tão apenas sugeridos, como se existissem apenas em meio à bruma sobre o Tâmisa, e se desfizessem no ar, no que alguém tentasse se aproximar deles. Como uma Literatura dessas iria conviver pacificamente com os enredos eletrizantes de Stevenson e, principalmente, com um Long John Silver, que desde  que surge em cena, ganha materialidade, para o leitor,  como se pudéssemos escutar sua voz, farejar seu hálito de bebida, quando não sua nhaca de pirata, de poucos banhos por ano e roupas sem troca? Orlando, de Woolf, é um magnífico personagem, mas uma criatura de natureza diferente. Totalmente antagônica. Incompatiblidade de gênios.  



Robert Louis Stevenson

        
     Por conta dessa marcação em cima, Stevenson foi excluído das antologias mais conceituadas, dos estudos, listas dos melhores escritores (que nas universidades e círculos de estudiosos é chamado de “cânone”) e da leitura em escolas e colégios por todo o século XX. Houve escritores e leitores que teimosamente protestavam, tentando resgatar o seu prestígio. No entanto, isso praticamente só foi acontecer no século XXI.
                Menos mal sabermos que, ao longo dessas décadas de exílio, ele teve ao seu lado tantos e tantos e cada vez mais amorosos aficionados. A cultura pop devolveu Robert Louis Stevenson ao seu lugar merecido, na Literatura. É característico do pop: ser popular não é demérito, pelo contrário. Além disso, a Literatura Pop tem muito a ver com os clássicos do século XIX e pouco, com os modernistas. [2]         
                 Na grande ampliação do público leitor, de hoje em dia, principalmente em gêneros como o Terror, o Mistério e a Aventura, devemos estar atentos para os descendentes literários de Robert Louis Stevenson, e para obras que vêm se tornando grandes sucessos ao fazer leitores sonharem acordados – o que acompanha o que o autor de A ilha do tesouro sempre declarou como sendo o seu maior propósito na Literatura.

#paraleitorescascudos     #minhapátriaéaliteratura





[1] A grosso modo, em atuação entre os anos 1920 e 1960-70.
[2]  (ver aqui no Blog , etiqueta/tag “Fora de Ordem”, o Debate: “VIVA A LITERATURA QUE DÁ GOSTO DE LER ou de Clássico e de Pop, toda a (boa) Literatura Atual tem um tanto”.

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