sábado, 16 de janeiro de 2016

MUITO ALÉM DO KIBE


AS 1001 NOITES
Entre os escritores seduzidos por Sherazade,
estão alguns dos nomes mais importantes da Literatura.
Depois de Ilíada Odisseia, de Homero, é a narrativa
com maior influência em nossa cultura.




Eu em meu modo Djin
desenho de Márcia Széliga






                Voltando inesperadamente de uma caçada, o rei Shariar surpreende a esposa, que amava imensamente, na suíte matrimonial, com um escravo. Enlouquecido, mata a ambos. A partir dessa noite, torna-se uma criatura sombria, amargurada. Como vingança, adota uma prática hedionda, dali para frente. Todos os dias, casa-se com uma moça do seu reino, sempre bastante jovem. Ao alvorecer, ou seja, depois da noite de núpcias, ele a decapita. Cabe aos seus súditos lhe entregarem suas filhas mais amadas, que ele executa, uma após a outra... até que faltam moças no reino, a não ser a filha do vizir, a linda, inteligente e corajosa Sherazade.
O vizir quer que a filha fuja, mas Sherazade, disposta a acabar com o martírio das garotas daquela terra, força o pai a levá-la a Shariar. O vizir está desesperado, já certo de que a filha terá o mesmo destino das demais.
                Na noite de núpcias, Sherazade inicia uma história, que, habilmente, interrompe no seu momento mais instigante, quando amanhece. Oferece, então, o pescoço ao seu marido, que hesita. Se matá-la,  não saberá o final da história.
                 



Em árabe
Alf Layla wa-Layla
1001 Noites ... Noites Sem Fim

                Shariar permite então que Sherazade viva “mais uma noite”. E a moça - que se tornaria assim a maior de todas as contadora de histórias  - aproveita a madrugada para concluir a narrativa e imediatamente emendar outra, que também interrompe, deixando-a em suspense, ao alvorecer.
                Assim, vai enrolando o rei, noite após noites, por 1001 Noites (Alf Layla wa-Layla, em árabe), uma maneira mística de dizer noites sem fim... Ou Noites Árabes, como ficaram conhecidas também no Ocidente. Seja como for, trata-se do conjunto de narrativas que reúne, entre muitas outras, as famosas aventuras de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; Simbad, o Marujo; O pescador e o gênio; Ali Babá e os 40 Ladrões...
                Há no mínimo três características das Noites que ficaram no legado da Literatura do Ocidente. Resumidamente:
ð  As 1001 Noites se desenvolvem em dois planos. Num deles, continua correndo, até o final, a história de Sherazade e Shariar, funcionando como uma linha mestra que liga toda a narrativa; é a purgação da amargura de Shariar, sua cura por meio da contação de histórias, ou o método psicanalítico de Sherazade;[1]
ð  pontilhando a narrativa, Sherazade conta inúmeras histórias, sempre usando o suspense, a interrupção e o gancho; ou seja, para ela, é uma questão de sobrevivência manter o interesse do rei. Assim, nunca termina uma história no alvorecer. O nascer do sol a faz parar a história que estava contando, sempre num  momento de grande expectativa para o que vai acontecer a seguir. No meio da madrugada, mal termina uma história, já emenda outro, anunciando sua excepcionalidade, com palavras como : Mas, essa história que acabou de escutar, meu rei, não é nada tão extraordinário como a história do... E assim, capturando a obsessão do rei, prossegue, noite após noite;
ð  nas 1001 Noites, o fantástico sempre surge do cotidiano. Uma ida ao suk  (mercado) para comprar mantimentos, se torna, em dado momento, num encontro mágico. Um pescador lança sua rede ao mar, como todos os dias, mas... naquele dia...algo fora do comum (totalmente fora do comum) acontece. Ou seja, o cotidiano é encantado pelas histórias e pelas reviravoltas  do enredo...



“Al Fajr, a aurora! Ó minha parceira implacável, co-autora de todas as minhas histórias. Quantas vezes vieste em meu socorro, salvar-me do precipício em branco no qual minhas idéias já iam despencando. E quantas vezes, maldosa, tardavas, sem me dares alívio; ou, ao contrário,  te antecipavas, repentina, acelerada e rubra, transtornando batalhas e momentos amantes, impondo-lhes uma interrupção que, por si, rejeitavam. Fajr... Tu que jamais me deste respostas, não é agora que me dirás o que será de Sherazade. Mas, será que sabes, já agora, se estarei viva ou morta quando vieres afugentar esta noite? Se poderás mais uma vez te refletires nos meus olhos, ou se eles estarão sem ver o mundo? Porque talvez Sherazade, quando chegares, Fajr, não será mais um corpo, mas dois, e ambos sem vida.”


Fala solitária de Sherazade à aurora, em meu livro Alqueluz, no qual uma garotada contemporânea e brasileira se mete numa tremenda aventura nas Noites Árabes...


                As Noites chegaram ao Ocidente junto com o domínio Árabe sobre a  Península Ibérica chamada Andalucia. É impressionante o quanto a cultura árabe – na época muito mais adiantada do que a europeia – influenciou na estética, na filosofia, nos costumes  e na arte ocidentais. A arquitetura mourisca que encontramos por lá testemunha essa época. Há linguistas que defendem que, se não fosse a mestiçagem do árabe com o português, nosso idioma não teria o azeitamento, o arredondamento melódico que tem hoje.



Miguel de Cervantes
        

        Já na Andalusia, deixaram uma herança da qual Miguel de Cervantes (1547-1616),  admirador de As 1001 Noites, se aproveitou bastante para compor a narrativa de D.Quixote. O mais evidente é a estrutura desse que é considerado o primeiro romance moderno  do Ocidente: uma narrativa do começo ao fim, pontilhada de episódios (aventuras).



D. Quixote em luta contra o moinho
Gustave Doré

                Foi o francês, aficionado pela cultura árabe, Antoine Galland (1665-1715), quem primeiro compilou As 1001 noites e as colocou por escrito. Posteriormente, foram encontrados fragmentos manuscritos em árabe, do século XIV e anteriores, mas isso é outra história. As noites são lendas milenares – existiram muito antes do islamismo (fundado no século VII, entre os beduínos.  E eram Noites histórias orais, contadas à noite, em torno das fogueiras,  nos desertos, e por contadores mendicantes, nas ruas e nos suks das grandes cidades do Oriente Médio. Há inclusive quem diga que os beduínos, com seus cultos que, diferente do islamismo,  abarcavam seres mágicos como djins, ou ifrites, ou gênios, contavam essas histórias para aplacar os caprichos desses seres e conseguirem sua benevolência, nos oásis (que pertenciam aos djins).



                                                       Orientalismo na versão de Eugene Delacroix:
                                          “Mulheres de Argel”,  de  1834, em quadro no Louvre, de Paris.


As Noites tiveram assim sua primeira versão por escrito em francês. Muito se comenta que a versão de Galland foi bastante adulterada por ele. Por exemplo, o francês fez sumir cenas de sexo mais picantes e muito do conteúdo político, popular das Noites (que reencontramos na versão do inglês Richard Burton – 1821-1890). Seja como for, a tradução de Galland permanece como a mais lida até hoje, e foi responsável, já no século XIX, por uma onda de orientalismo que dominou o cenário cultural europeu por muitas décadas.


                              Alexandre Dumas, pai: grande mestre do Folhetim

Um de seus mais célebres fãs foi Alexandre Dumas pai (1802-1870). Em O conde de Monte Cristo, quando Edmond Dantés encontra a caverna do tesouro, na Ilha de monte Cristo, ali temos uma cena em que Dumas cita Ali Babá e os 40 Ladrões. E Abre-te Sésamo (sésamo é gergelim, e a expressão não tem significado nenhum, a não ser o mesmo de Abracadabra ou Era Uma Vez... Ou seja, uma tradição mística... ). E Dantés passa a chamar a si mesmo de Simbad. Por alguns episódios, vai adotar esse nome.
Além desses elementos pontuais, temos a própria narrativa do gênero folhetim.  O nome vem de folhas (jornais, revistas), e isso porque as histórias saíam em episódios, nos periódicos. Cada capítulo tinha de deixar seu gancho, prender o leitor, para que ele procurasse a folha para ler a continuação no dia seguinte. O conde de Monte Cristo e principalmente Os três mosqueteiros  são narrados nessa modalidade inspirada pela narrativa da rainha persa adolescente, Sherazade, que buscava com isso salvar seu pescoço da lâmina alucinada da espada de Shariar. Os três mosqueteiros também tem a sua narrativa-mestra, e seus inúmeros episódios, peripécias, reviravoltas: é o máximo em termos de folhetim.  









Capa da minha adaptação de As 1001 Noites – em 4 volumes


                Vivo repetindo que, em Literatura, nada nasce de chocadeira. Antes de ser um escritor, o sujeito é um leitor. No mundo das bibliotecas, dos livros, apaixonado pela leitura de grandes histórias, é que a pessoa decide (mesmo que sem perceber) que quer escrever histórias e que tipo de histórias quer escrever. Obras geram leitores que por sua vez geram obras; e muito da Literatura tem a ver com essas linhagens que são uma fonte fundamental de tudo o que se cria na Literatura.




Robert Louis Stevenson










                                                                                                                                                                                                                                                                                                Charles Dickens


Assim, de Dumas, da admiração que provocou por suas histórias e sua habilidade (folhetinesca) de contá-las, temos dois romancistas básicos da consolidação do romance na Literatura, o inglês Charles Dickens (1812  - 1870) e o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894).  Não é possível medir objetivamente o que devem a Sherazade e às Noites as peripécias do sr. Picwick (1837), nem a estrutura folhetinesca de Bleak House (Casa soturnaque é constantemente apontado como seu melhor romance, publicado em partes mensais de 3 a 4 capítulos cada, em 1852-1853) , entre outras criações de Charles Dickens, nem as de A ilha do tesouro, publicado em episódios entre 1881 e 1882, pelo folhetinista Stevenson. Não é assim que funciona. É mais etéreo. Só não dá para confundir com plágio. Descendência literária é algo bastante refinado, e é como se dissemina a Literatura. Dickens e Stevenson nomeavam (não por acaso) As 1001 noites e Dumas como as leituras que mais os influenciaram em sua escrita. Stenvenson, também autor de O médico e o Monstro, para acentuar sua descedência literária, publicou em episódios nos jornais As Novas Mil e Uma Noites, com contos e novelas que estão entre os mais saboreados pelos leitores do tipo cult 




                                          Primeira Edição em livro de A ilha do Tesouro, 1883


                Atravessando o Atlântico, encontramos um escritor que deixou legiões de fãs, influenciou profundamente a Literatura e os escritores que o sucederam, apesar de sua vida curta e trágica. Trata-se de Edgar Allan Poe (1809-1849).


Edgar Allan Poe

                Sempre lembrado pelo poema O corvo e por seus contos de terror, que influenciaram fortemente H.P.Lovecraft, Henry James e, mais recentemente, Stephen King, Poe foi também o autor de um conto macabro (A milésima-segunda noite de Sherazade) diretamente ligado às 1001 Noites. É terrível demais, mas não se pode dizer mais nada aqui, para não ser estraga-prazer (spoiler). O fato é que o imaginário oriental das noites árabes contamina, de alguma maneira, a obra desse que foi o maior nome do gótico-romântico americano.


                
Jorge Luís Borges
em seu habitat...

Muitos e muitos escritores se declararam (e suas obras mostram isso) aficionados das Noites. Mas, dando um salto de décadas e nos aproximando um pouco, geograficamente, temos um autor exponencial tanto pela influência que exerceu no século XX como pela intensa influência (inspiração!) que, por seu lado, ele recebeu das histórias de Sherazade. O argentino Jorge Luís Borges (1899-1986), além de leitor declarado de Stevenson,  adorava as Noites Árabes. Escreveu, entre outros textos,  um ensaio sobre a história das suas diversas traduções (um ensaio ficcionalizado, pelo menos em parte, como tudo que Borges escreveu [fingindo] ser documental).

  


Escritores, apaixonados por Borges... Que se reuniram para, cada qual, escrever um conto inspirado no autor de Aleph. Eu o homenageei com A bliblioteca infinita, na linhagem da paixão de Borges por As 1001 noites. Um trecho do conto está reproduzido abaixo...

E foi essa sua primeira visão da Biblioteca.
Era de fato uma pequena estante com encadernações de pergaminhos, em couro de cabra. Ibn Fahraduc sentiu um arrepio ao vislumbrá-los. E se aproximou deles, enquanto as pernas e os braços – e na verdade, todos os músculos do corpo – tremiam. Como se aqueles livros  fossem fantasmas. Sentiu a testa e os lábios arderem, de uma febre forte, e pontadas na nuca, nas têmporas, fagulhas no peito. E mesmo assim precisava tocá-los. Algo lhe dizia que não devia fazê-lo, que seria como tocar algo do outro lado da vida. Mas,  não conseguiu deter o seus passos, seu braço se erguendo, seus dedos, alisando então as lombadas. E lágrimas escorreram pelas suas faces, quando, de alguma maneira, seu tato encontrou a aspereza do couro daqueles volumes como algo que ele buscava, havia tempos, sem saber. Algo que reconheceu sem jamais ter conhecido.




Julio Cesar de Mello e Souza: 
Malba Tahan

                Também no Brasil a tradução de Galland chegou, deixando herança. O maior divulgador das Noites Árabes, entre nós, foi Malba Tahan, como é notório. Trata-se do pseudônimo autoral de Julio César de Mello e Souza (1895-1974), professor de matemática, iluminista. Pelas  suas mãos, muitas histórias das 1001 Noites foram recontadas; outras nasceram, como se tivessem saído da boca de Sherazade. E pelo menos um personagem, amado pelo seus  leitores, surgiu, Beremiz Samir, O homem que calculava, no livro que faz sucesso desde o seu lançamento, em 1949.



Monteiro Lobato
combatido pelos chatos politicamente-corretos,
amado pelos leitores de muitas gerações

                E finalmente, para não tornar este Debate uma enciclopédia, já que descendentes literários das 1001 Noites não faltam e  continuam sendo gerados até hoje,  temos para encerrar o fundador da Literatura para crianças e jovens no Brasil, Monteiro Lobato (1882-1948). Quando a turma do Picapau Amarelo faz do Sítio um generoso acampamento da fantasia universal, não poderia faltar por lá Sherazade e sua tribo. Lobato foi o primeiro contato de muitos leitores com as Noites Árabes.
                A noção de Linhagens Literárias é bastante fértil. Seminal. Produtiva. Cada vez que rastreamos (pode ser mais saboroso para a garotada ir de frente para trás, do mais recente para o ascendente, como se fosse uma investigação detetivesca, descobrindo pistas) de onde vêm aspectos (sutis) de uma obra, ou dos recursos de criação adotados por um autor, descobre-se um baú do  tesouro. A História da Literatura ganha um colorido diferente, fala sobre personagens, truques (recursos, técnicas) narrativos, criação. É como se uma nova biblioteca fosse descoberta, com uma organização de estantes e prateleiras toda especial.  Os livros trocam intimidades, murmuram, confidenciam segredos do seu passado.
Leitores Cascudos escutam essas vozes. Por isso, para eles, as bibliotecas são habitadas. É por isso que para eles, para nós, um livro sempre puxa outro.  As 1001 Noites  são histórias sem fim.
                 

#paraleitorescascudos   #minhapátriaéaliteratura



[1]  Como sugere a psicanalista Purificacion Garcia Gomes em O método terapêutico de Sherazade.

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