sexta-feira, 2 de outubro de 2020




 

 

GRÉCIA

Para Não Dizerem Que Não Falei de Raízes

 

              

 

               Os gregos, em geral, fora os de Creta, não me pareceram nada simpáticos.

Generalizações são um pezinho buscando atravessar a linha do preconceito, mas a verdade é que, tendo sonhado toda a minha vida em conhecer a Grécia – ou pelo menos desde que li Os 12 Trabalhos de Hércules e O Minotauro, de Monteiro Lobato, ainda garoto – fiquei decepcionado ao ter de reconhecer que o ateniense é um mal-humorado, por natureza, que tem bronca especial contra os turistas que “invadem” seus monumentos, apesar de essa ser a principal fonte de renda e de empregos do país; que os punguistas – me alertaram, mas eu tinha de constatar por experiência própria, não tinha?  – do metrô de Atenas são os melhores do mundo. Que você pode ver o Partenon de toda a cidade, e, aceso, à noite, é um dos milagres da civilização, mas, encontrar a subida – íngreme, penosa – até lá, é uma proeza, devido à falta de placas orientando o turista, ou de atenienses dispostos a lhe dar informações; que uma vez lá no alto, na cidadela,  embriagado de tanta beleza e aura, você se perde para ir de um monumento ao outro, por conta da mesma má-vontade de distribuir placas indicativas e de alguém, mesmo funcionários, propenso  a lhe dar uma indicação clara. E que, finalmente, o grego, o idioma, aquele que eu sonhei   para a Ilíada e Odisseia, embora o grego moderno e o arcaicos não se biquem, soa tão áspero aos nossos ouvidos, que eles parecem que estão sempre brigando, e às vezes estão mesmo – o ateniense é brigão - , embora com alguns dias de experiência, você reconheça quando é uma conversação trivial e que é injustificado o susto que você leva se alguém lhe diz “por favor”, num rugido brutal, que nos soa, mais ou menos como “parakaló!!!!!”.

               E daí? Estávamos na Grécia. Chegamos à Creta e conhecemos, em Cnossos, o labirinto do Minotauro e o Palácio de Minos (mesmo sabendo que 70% das ruínas foram falsificadas pelo arqueólogo amador que as descobriu, o inglês Arthur Evans, que resolveu completar o cenário). E tivemos o sorriso provocante e as cutucadas nas ruas das cretenses (esses,sim), sua hospitalidade generosa e alegria - além de um dos mais interessantes museus arqueológicos do mundo, com peças da Civilização Minoica, em Heraklion. Pode-se até aprender a gostar dos ventos poderosos que varrem Creta, pensando que eles também fizeram Ulisses perder seu caminho pelo Mediterrâneo.

Conhecemos, nos museus espalhados pelas ilhas, por exemplo, a Arte Cicládica, de 3000 anos atrás, e, apesar da monotonia das imagens sem feições, nem detalhes particulares, constatar que o que esse povo genial produzia, em termos de equilíbrio e simetria, é de fato a inspiração de uma arte Clássica grega, que estabeleceu as pontes da compreensão e da sensibilidade humanas entre o divino e o mundo, nosso mundano mundo. E vimos peças e monumentos que a gente, lá no fundo, nas leituras, nos livros, que guardamos no coração, sabemos que estamos revisitando. Afinal de contas, vivemos, em eras passadas, na Grécia. E Atenas histórica é tudo o que se imagina, embora os logradouros urbanos, principalmente os bairros de comércio, pareçam um SAARA (o do Centro do Rio) apinhado. Em vésperas de Natal ou de Carnaval. Fervendo. Quem o conhece, sabe do que falo. 

               Homero inventou os deuses, a Mitologia, a Literatura, como a conhecemos. E os gregos inventaram, apesar do seu mau humor e todo o restante,  prolífica parte do imaginário humano, principalmente o ocidental. Já escrevi sobre a metáfora das raízes, e a complicação de a aplicarmos à cultura. Árvores, plantas, têm suas raízes, na maioria dos casos, presas ao solo. A polinização se faz às vezes por insetos, que vêm recolher o pólen e voam para longe, disseminando a espécie. Ocorre que uma árvore não pode escolher onde fincar suas raízes. Nem mesmo dirigir o vôo dos insetos. Mas, nós, seres humanos –  ou seja, fanáticos, fundamentalistas, terraplanistas e obscurantistas à parte –,  principalmente em questão de referências culturais, podemos escolher as nossas. E até mesmo muda-las, no decorrer da vida. A cultura e a produção artísticas, claro, inclusive a literária, são escolhas, tendências que reforçamos, ou escolhemos reforçar. Encantamentos. Não tem necessariamente a ver com etnias.

    Consta que por lá nasceu, em Atenas, também, a democracia. Desconfio de uma democracia onde havia escravos (Viva o Esopo Rebelde!!! Não o domesticado!!!) e que proibia o acesso  às decisõs das  mulheres e dos nascidos fora de Atenas. Mas, aprendi que a democracia, mundial, internacionalista, planetária, ampla, geral e irrestrita, continua em construção; é uma utopia a ser concretizada - e assim o provam os movimentos antirracistas que tomaram nossos Continentes em minutos, depois de o assassinato de George Floyd, nos EUA, ter sido transmitido via Internet, interligando pontoa cardeais e polos num único grito: "Vidas Negras Importam!!!". 

               Minhas raízes – volto a dizer, desde Lobato – estão na Arte e na Mitologia Gregas. Nas tragédias, que nomearam teorias de Freud e dos filósofos do século XX. Nos heróis que forneceram o modelo para a cultura pop. Nos monstros e na cosmologia que, até hoje, nos mesmeriza, simboliza, representa os segredos do nosso íntimo. Não importa onde nasci. Mas, para onde voei.

               Minha solidariedade e militância política, cultural, humanista, internacionalista, a crença numa fraternidade planetária, apontando para um futuro de descobertas da ciência e avanços na expansão e senso de aventura do nosso conhecimento universo afora, me dão material intelectual para grande parte do que escrevo... e sonho. Tive minhas razões para me decepcionar com o jeito tosco dos atenienses (embora, os cretenses tenham salvado a fatura)... Já tinha mais de 50 anos, quando consegui realizar meu sonho de ir à Grécia. Fui com minha mulher, que ansiava pelas ruínas tanto quanto eu. Juntos, enfrentamos o agente de turismo que tentou nos fazer engolir um roteiro de praias e mais praias, e três horas somente em Creta – onde permanecemos 3 dias, e foi pouco. Então, depois de tudo isso, e mesmo naquela idade, vai ver que eu achava que, mal pusesse o pé nos cenários onde Péricles e Fídias caminharam, nos jardins por onde Aristóteles, o peripatético, torcia a mente de seus discípulos, onde Homero, declamado na Ágora, ganhou a primeira versão por escrito de seus épicos – pilares da Literatura ocidental -, onde foi inventada a História e a Filosofia... eu esperava, em algum lugar dentro de mim, que me reconhecessem. Mas, não... assim como eu não tive maiores amores pela culinária grega, já que a árabe original, principalmente no viés libanês, como o era meu avô, mascate de Beirute, e a italiana, como o era minha avó, cozinheira napolitana, serão para sempre minha paixão. Questão (sempre!) de escolha... cultural. Não de raízes.  

               Ou seja, o punguista que me levou o passaporte e os cartões de crédito, prodigiosamente surrupiando-os de um bolsão na parte dianteira da minha calça, fechado com velcro, sem que eu sentisse, roubou um... quase... compatriota. A Grécia hoje vive problemas econômicos e sociais gravíssimos. Foi um dos países da Europa onde a pandemia grassou fortemente. Mesmo que não me sentisse ligado culturalmente a eles, minha solidariedade humana seria o bastante para abraçá-los, assim como me esforço para colocar o antirracismo na minha pauta cotidiana, e, no Brasil, assim como sofro com e tento ajudar a denunciar o genocídio indígena, a perseguição aos homossexuais, aos não-cristãos e a devastação do patrimônio ecológico que eu esperava que pudesse ser usufruído pelos meus netos.

               Grécia. Para não dizer que não falei de raízes, lá estão as minhas... e um tanto mais, espraiadas pelo mundo. Ou até, quem sabe, por OUTROS mundos?      


                                            

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