sexta-feira, 6 de maio de 2016

ADAPTAÇÕES

Meu Primeiro Clássico de Estimação: Robinson Crusoe





                Eu devia ter menos de dez anos quando ganhei de meu pai um livrinho – (eu o tenho até hoje, cerca de  50 páginas, com ilustrações) – da Biblioteca Infantil da Melhoramentos. Era uma adaptação de Robinson Crusoe, assinada por Barros Ferreira. Li aquela história, assim como li outras, da mesma Biblioteca, submergindo nela, como se estivesse naquela mesma ilha em que o náufrago passou vinte e oito anos, distante da civilização onde nascera e de tudo o que conhecia. E foi graças àquela adaptação de Robinson Crusoe que, décadas depois, li o original, em versão integral. Foram duas aventuras bem diferentes.
                Pausa... Para registrar que, entre uma e outra, li também a adaptação generosa, vibrante, de Monteiro Lobato. Grande leitor, Lobato acreditava em colocar os grandes clássicos da Literatura ao alcance das crianças e jovens leitores. Foi por isso que nos trouxe ainda Dom Quixote e outros, fora as participações especiais de personagens da Literatura Internacional, de fadas e princesas, Sherazade e Peter Pan,  a heróis mitológicos, que volta e meia surgiam no Sítio do Picapau Amarelo.




                É o que este FORA DE ORDEM pretende: defender as boas adaptações de clássicos internacionais. Claro que há aquelas que massacram a obra original. Mas, há também as que tentam resgatar para o leitor o coração da obra: a composição e o carisma de seus personagens, o ritmo da narrativa (que tem a ver com a visão de mundo da época e daquela cultura), algo do estilo, a pulsação do enredo. Em suma, um tanto daquilo que faz da obra um livro imortal, e que pode acender a chamazinha-piloto que um dia vai levar, um dia, aquela pessoa – pelo desejo de vivenciar mais e mais longamente o clássico que a envolveu anos ou décadas antes – a empreender a leitura da versão original, o texto integral, com centenas ou mesmo milhares de páginas.
                Por definição, clássicos são leituras mais difíceis para a garotada. Difíceis porque distantes. Porque, necessariamente, são livros escritos em outra época, quando o próprio tempo passava mais devagar, as perspectivas de olhar o mundo eram diferentes e as pessoas agiam ou reagiam de modo diverso. No entanto, guardam  uma pérola de dragão, nessa caverna. Algo universal, humano e permanente, que torna essas obras capazes de atravessar eras diferentes e transitarem entre diferentes culturas, idiomas e civilizações, e continuarem tocantes. Justamente por essa resistência do essencial, se tornam imortais, clássicos.
                Ao contrário dos livros que desaparecem depois de alguns anos ou poucas décadas, e ninguém mais tem interesse em lê-los.
                 É necessário construirmos pontes entre os clássicos e os leitores jovens: marketing de sedução, informações contextuais, adaptações. E outras. Uma professora ou bibliotecária apaixonado pela leitura, com vocação para contaminar o próximo com essa paixão, cumpre lindamente esse papel. Conheço muitas e muitos assim!


Daniel Defoe



                Daniel Defoe – que entre seus muitos ofícios trabalhou como espião e agente secreto em conspirações no Reino Unido – publicou Robinson Crusoe em 1719. Por esta obra e outras, é considerado um dos fundadores do romance britânico, antecessor ilustre de Johathan Swift e de seu As viagens de Gulliver (1726 e 1735). Na linhagem das aventuras marítimas, fundada em Odisseia, por Homero, é também  ancestral de Moby Dick (1851) do americano Herman Melville. E de inúmeros outros livros e filmes Literatura e Cultura Pop, em que uma pessoa, reduzida à solidão absoluta, parecendo totalmente desprovido de recursos para sua sobrevivência, recria à custa de tenacidade, um mundo à sua volta. É um carisma lindo, eficaz, bom toda vida de ser replicado.
                Robinson Crusoe sempre teve um encanto especial para mim. Sempre foi, portanto, uma ideia, em mim, algo que eu sabia que aconteceria, um encontro marcado, ler a versão integral, até para descobrir o que mais havia nesse livro. E aconteceram de fato incríveis descobertas – até mesmo o maior tempo de duração de leitura, a produzir um alongamento da vivência do livro, uma outra experiência de transporte.
                Então, lá temos aquele homem próspero, que sai do Brasil em busca de negócios escusos – até mesmo no seu tempo. Crusoe ia para a África sequestrar pessoas para submetê-las à escravidão, já que era um negócio dos mais lucrativos, na época. Mas, castigo divino ou seja o que for, naufragou, em meio a uma tempestade, e foi parar numa ilha fora das rotas de navegação e aparentemente desabitada (ou nem tão desabitada assim, como veríamos mais adiante).
Robinson logo compreende que dificilmente será resgatado. E aqui, uma primeira espiadela no túnel do tempo, nos sugere conduzir a garotada, a quem queremos facilitar a leitura desse livro, a esse tempo quando não existiam “GPSs” nem “Celulares”. A uma outra realidade, aparentemente distante no tempo e no modo cultural. Naquela pré-história em que se podia viver desconectado. Robinson é rapidamente reduzido ao desespero, e logo decide que vai se deixar morrer, naquela praia.
No entanto, a sede o faz procurar água, no interior da ilha. Encontrando uma fonte, decide que para ter chances de ser salvo, precisa montar vigília na praia, de modo a avistar algum navio que passe ao longe – algo que não acontecerá pelos próximos 28 anos. Por isso, resolve fabricar um pote para trazer consigo a água. Mas, fabricar um pote para quem nunca o fez, e da maneira mais rudimentar, partindo da terra e dali para o barro, dali para a modelagem etc, é uma tarefa e tanto. Mais adiante, ele construirá – algo também que teve de aprender como se faz – um sistema de canalização para trazer a água. E aos poucos vai reconstruindo um mundo inteiro, por pura gana de sobrevivência.
Essa reconstrução do mundo é toda a beleza humana e universal de Robinson Crusoe. Claro que mais adiante entra na história Sexta-Feira (Ah, a antológica cena da pegada na areia, tão famosa quanto a minvestida de D. Quixote contra os moinhos de vento!), que acrescenta outros aspectos, alguns até mesmo mais complexos, na relação entre aquele europeu, cristão, incapaz de incorporar outros modos de pensar além do seu, e o “selvagem”. Que além de tudo era um canibal. E há, é claro, as peripécias aventurescas envolvendo o enfrentamento de canibais.
Bem, não quero entrar aqui nesse debate de choques culturais e “etnocentrismo”. O que me interessa mesmo é ressaltar que um clássico pode chegar ao seu leitor por meio de adaptações. E, considerando a sua riqueza, instalar-se na vida dele para sempre, ir se transformando, crescendo, acompanhando o amadurecimento da capacidade de leitura desse leitor.





O que mais importa aqui é que a maioria dos leitores de Robinson Crusoe se tornou aficionada dessa história tendo seu primeiro contato com ela - justamente o amor à primeira vista - por meio de adaptações. E não é à toa que Crusoe se tornou um personagem tão popular e seu drama, um modelo para uma infinidade de outros heróis, inclusive na cultura pop. Afinal, o que é o ótimo filme Perdido em Marte ("The Martian", título muito melhor: estrelando Matt Damon, dirigido por Ridley [Alien] Scott), se não um Robinson Crusoe passado em outro planeta? As adaptações dão cria. 
Que bom que existam boas adaptações!

Aventurescas leituras para vocês! 

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