domingo, 17 de abril de 2016


(SonHos em AmaReLo)


OBRA-PRIMA TRATA JOVENS
COMO GENTE GRANDE

Gustavo Bernardo *
Publicado originalmente
em O GLOBO de 06/10/2007





Uma maneira de avaliar a qualidade de um livro para jovens é observar a reação de leitura de um adulto. Se o livro “captura” a atenção e a emoção do adulto, então ele deve ser um livro bom também para o leitor adolescente. Isso acontece porque o adolescente é muito mais adulto do que supõe a nossa vã pedagogia.
Ainda que o nosso sistema social e correspondentes meios de comunicação se esforcem bastante para espichar a infância e desresponsabilizar os jovens pelo máximo de tempo possível, há reservas de inteligência, afetividade e responsabilidade que resistem. Elas aparecem e brilham sempre que um professor os trata não como iguais mas como pares responsáveis, ou sempre que eles se deparam com um livro para jovens que não os infantiliza nem menospreza, isto é, que os respeita como adultos que já são.
Entre os escritores que manifestam esse respeito, encontramos Luiz Antonio Aguiar. Sua última novela para jovens chama-se Sonhos em amarelo: o garoto que não esqueceu Van Gogh (São Paulo: Melhoramentos, 2007). Avaliação sucinta: trata-se de nada menos do que uma obra-prima. Quando a lemos, ficamos profundamente tocados, como se ainda fôssemos... jovens! Em contrapartida, pode-se supor que um jovem “de verdade”, ao ler essa novela, dirá logo que ela “não é para crianças!”, e a desejará ler por isso mesmo: para ser tratado como gente que já tem o cérebro e o coração grandes.



A solução narrativa de Luiz Antonio contempla essa condição: a história é narrada por um senhor de 37 anos à beira da 1ª Guerra Mundial, relembrando a época em que tinha 11 anos de idade. Esse narrador é um personagem da vida “real” trazido para a ficção: seu nome é Camille Roulin. Quando garoto, ele foi retratado várias vezes por Vicent Van Gogh. Um dos quadros que o retrata é dos mais populares do pintor e se encontra no Museu de Arte de São Paulo – chama-se O garoto de quepe.
A história se passa no final da vida do pintor, quando ele foi mais produtivo e ao mesmo tempo mais sofreu. O pai do narrador, o simplório carteiro Joseph Roulin, se tornou o melhor amigo de Van Gogh. O pai humilde e o seu jovem filho parecem entender Van Gogh e suas pinturas melhor do que seus contemporâneos e até do que o famoso Paul Gauguin.
Entremeando-se à descrição cuidadosa da vida cotidiana em uma aldeia do sul da França entre 1888 e 1890, quando o pintor se suicidou com um tiro no peito, lemos a descrição-narração espetacular de vários dos mais famosos quadros de Van Gogh. Dizemos “descrição-narração” porque eles nos são mostrados pela ótica de um garoto que os viu serem pintados, portanto eles nos são mostrados em movimento, desde os primeiros esboços. A percepção desses quadros pelo narrador é iluminadora, porque ele os vê com o olhar virgem tão perseguido pela filosofia daquele período, a fenomenologia.
Essa percepção colide com os preconceitos dos que não aceitavam de modo algum a “incerteza da beleza”, digamos assim, promovida e provocada pelas pinturas de Van Gogh. Os maiorais da aldeia não suportavam nem a personalidade tão agressiva quanto tímida do pintor, nem seus quadros, que lhes davam vertigem. À página 53, um deles, propositalmente sem nome, discursa com rancor: “ora, me diga alguém, o que se aprende com essas pinturas dele? São um mal! Que mensagem edificante se pode depreender delas? (...) o que o seu pincel toca, distorce. Nada do que ele pinta é reconhecível, tudo delírio, tudo falsificação. (...) Em suas telas, há tudo para os olhos, e nada para o espírito ou a mente.”



A novela de Luiz Antonio Aguiar prega todo o contrário do que diz o personagem sem nome. Ela não pretende de modo algum fazer uma literatura edificante ou didatizante, mas sim uma literatura que propositalmente distorce a realidade para melhor nos mostrar novas e inusitadas perspectivas sobre ela. Como nos quadros do pintor, ela não confirma nem reafirma os clichês que grudaram na nossa mente, mas oferece aos olhos e à imaginação do leitor outras tantas cores intensas, como devem de ser.

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Gustavo Bernardo é professor de Teoria da Literatura na UERJ. Ele escreveu alguns ensaios, como A dúvida de Flusser e A ficção cética, e alguns romances, como A alma do urso e Reviravolta.

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