quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

LIVROS TÊM HISTÓRIA

 "SONHOS EM AMARELO"




                Muitos livros que escrevi têm uma história. Não a história que contam, somente, mas também a história de como e por que foram escritos.
                É o caso de “Sonhos em Amarelo”...





                ... Que tem uma história que conta um pouco sobre como os livros são criados, o tal do processo criativo em Literatura.  
                Com 19 anos, eu estava na Europa, no meio do inverno. Mais especificamente, em Londres. E foi no inverno porque é quando as passagens ficam mais baratas. Eu não tinha dinheiro para comprar comida, propriamente falando, somente pão e livros. E também não tinha um casaco adequado para enfrentar aquele frio todo.
                Então, certa manhã gelada, eu quase virando picolé de carioca, passei por um museu, e era dia de entrada grátis para estudantes. Com minha carteira internacional de estudante (que me garantiu descontos em restaurantes universitários, cinemas e vaga nos albergues), entrei, e lá dentro estava bem quentinho.
                Nunca tive gosto especial por pintura. Não conhecia quadros, nem pintores. Mas, de repente, sei lá por quê, um quadro me deixou estatelado. Era uma pincelada grossa, viva, pulsante. Um amarelo que explodia na tela, entrava pelas minhas retinas e descia ao meu estômago, me tirando fora do tempo e espaço à minha volta.
                O próximo momento consciente nas minhas lembranças foi um guarda do museu me cutucando algo rispidamente para me tirar do transe, exigindo que eu me levantasse, que museu não era lugar para sentar no chão, que não era assim que se olhava quadros.



"Auto-retrato", Van Gogh, 1887

                Só então me aproximei e li o nome do autor, na placa: Van Gogh. Creio que era um de seus girassóis. Mas, poderia ser outro. Gozado, disso não lembro ao certo. Mas, sim, do que estava se passando dentro de mim. Nunca pensei que a pintura pudesse me emocionar daquela maneira. Nem que um pintor poderia continuar vivo, na tela. Mas, senti tudo isso, ao ver aquele quadro.
                Dali pra frente, foi paixão irremediável. Eu perseguia quadros de Van Gogh,  quando podia viajar, e lia tudo o que me caía nas mãos sobre ele, inclusive a coleção completa das Cartas, que ele escreveu a Theo, principalmente nos seus últimos anos, em Arles.
                Só fui escrever Sonhos em Amarelo, meu livro sobre Van Gogh, aos 50 anos, em 2005. Tive de fazer uma cirurgia ortopédica nos pés, para me devolver a mobilidade, e fiquei  meses,  em casa, engessado (faria primeiro o pé esquerdo, depois o direito, no ano seguinte).  Sem reclamações: eu já não conseguia andar, e recuperei isso, graças à cirurgia (Obrigado, Dr. Marcos Donato Serra).  E o caso é que aproveitei a recuperação para escrever o livro.






                Sempre soube que o escreveria. Por outro lado, sentia um frio na barriga quando pensava em começar. Até porque eu sabia que precisava arrumar um jeito  de escrevê-lo. Não poderia ser na minha voz, ou de um narrador em terceira pessoa em que eu me camuflasse, senão tudo o que eu sentia por Van Gogh iria transbordar, e o livro ia ficar um saco, uma tietagem sem fim. Precisaria arrumar uma outra voz para contar a história, para me conter, frear, ou seja:  outros olhos para ver Van Gogh, o ser humano e seus quadros.
                Tantas vezes tinha ido ao MASP (SP) visitar os 4 quadros de Van Gogh que tem lá. E um dia, sem me dar conta, me vi sonado diante de O Menino de Quepe, no qual Van Gogh retrata Camilo Roulin, aos 11 anos.

"O Menino de Quepe", Van Gogh, 1888 


                Joseph Roulin – um homenzarrão de ideias socialistas, generoso e extrovertido ao extremo - , o carteiro de Arles, de tanto pegar e entregar cartas de Van Gogh (que escrevia quase diariamente e às vezes mais de uma vez por dia ao irmão Theo) tornou-se amigo do pintor. De fato,  o único amigo que  Van Gogh fez  na vida. E a convivência com os Roulin foi a única oportunidade que ele teve de experimentar viver em família, algo que ele desejava ardentemente. Van Gogh retratou toda a família Roulin, e fez vários quadros de cada um deles, inclusive de Camile, filho de Joseph.

"Joseph Roulin", Van Gogh, 1888


                Aliás, esse era um dos encantos de Van Gogh sobre mim. Sentia que o que ele mais queria da vida, e não tinha, pôs nos quadros. Há por exemplo um quadro dele que se chama Primeiros Passos. Nele, vemos o pintor, se autorretratando, chegando em casa, a esposa na porta, deixando ir ao encontro dele um menininho pequeno, que anda pela primeira vez. O pintor está agachado, em vias de receber o menininho nos braços. Uma cena linda, tocante, e mais ainda quando sabemos que Van Gogh sempre ansiou por viver algo assim – ter esposa, um casamento, filhos, família, testemunhar os primeiros passos de seu filho –, e só pôde viver isso na sua pintura.

Criança Primeiros Passos De Vincent Van Gogh Na Tela Repro


"Primeiros Passos", Van Gogh, 1888

               E, naquele apagão que me levou a conversar com O Menino de Quepe, eu havia encontrado o olhar e a voz que procurava. Sem a pieguice apaixonada, um narrador algo temeroso, estranhando o que vê, uma pintura deslumbrante que pega de vez mesmo quem não entende de pintura, que apaixona, que surpreende pela vitalidade, cor, alegria que irradia, e ainda mais em contraste com o espírito enroscado, amargurado, combalido, depauperado de quem a produz. Um menino de 11 anos, tentando entender o que está sentindo, sua estranheza diante do que os quadros lhe despertam, e, ao mesmo tempo, buscando lidar com sua compaixão por aquele ser solitário, repudiado pelo seu meio, tão inapto para a vida no mundo, para o dia a dia; um cara tão... esquisito.
                Daí, tempos depois, lá estava eu, imobilizado, me restabelecendo da cirurgia. Minha mulher foi bem legal, me deixou ocupar a sala do nosso apartamento, forrando-a com reproduções de Van Gogh. E foi passeando por elas, todos aqueles meses e outros depois, vendo com seus olhos de pintor a vida e traduzindo-as para voz que criei para Camilo Roulin, que escrevi meu livro.


"Café Noturno", Van Gogh, 1888

"A Casa Amarela", Van Gogh, 1888


                Tem gente que não gosta de biografia ficionalizada. Fui aprender isso depois... Preferem tudo baseado em fatos reais. Bem, Literatura não fala de realidade, nem de verdades. É invenção. Muito da biografia de Van Gogh, eu tirei das cartas (é a maior fonte para conhecermos sua vida). Mas há todo um lado íntimo, diálogos, momentos privados, que inventei. Isso é ficção. Como escrevi em algum lugar, é feito farinha e pão. Pão não é farinha. Além dela, leva outros ingredientes, uma boa pitada de fermento (ou não), a mão que amassa, sova, o período de descanso da massa, para ela crescer, o forno bem quente... Ficção não é realidade. A realidade é um dos ingredientes. Mas a ficção leva muitos outros e muito mais coisa, além de realidade.
                Foi assim, descobrindo isso dentro de mim,  refletindo sobre isso, que comecei a escrever meu Sonhos em Amarelo, que ganhou prêmios no Brasil e no exterior, e que foi traduzido para o italiano com o título Vicente Il Matto (Vicente, o louco, que era como o chamavam em Arles), publicado pela editora Giunti.Outras traduções estão sendo negociadas e/ou em produção. 







                A história de Vincent Van Gogh é absurdamente comovente. Ninguém o reconhecia sequer como pintor, muito menos como gênio. Vendeu somente um de seus quadros em vida, o que o deprimia bastante. Mas, logo depois de sua morte (suicidou-se, depois de uma temporada em asilos para doentes mentais), em 1890, começou a fazer sucesso, até se tornar o que é hoje, um ícone, um dos artistas mais conhecidos do público leigo – quem não identifica de cara um Girassóis? Nada é tão impactante como seus quadros e como a influência avassaladora que teve sobre a pintura e sobre a cultura do Planeta.


[Trecho da resenha publicada originalmente em O GLOBO de 06/10/2007
OBRA-PRIMA TRATA JOVENS COMO GENTE GRANDE
Gustavo Bernardo

Uma maneira de avaliar a qualidade de um livro para jovens é observar a reação de leitura de um adulto. Se o livro “captura” a atenção e a emoção do adulto, então ele deve ser um livro bom também para o leitor adolescente. Isso acontece porque o adolescente é muito mais adulto do que supõe a nossa vã pedagogia.

Ainda que o nosso sistema social e correspondentes meios de comunicação se esforcem bastante para espichar a infância e desresponsabilizar os jovens pelo máximo de tempo possível, há reservas de inteligência, afetividade e responsabilidade que resistem. Elas aparecem e brilham sempre que um professor os trata não como iguais mas como pares responsáveis, ou sempre que eles se deparam com um livro para jovens que não os infantiliza nem menospreza, isto é, que os respeita como adultos que já são.

Entre os escritores que manifestam esse respeito, encontramos Luiz Antonio Aguiar. Sua última novela para jovens chama-se Sonhos em amarelo: o garoto que não esqueceu Van Gogh (São Paulo: Melhoramentos, 2007). Avaliação sucinta: trata-se de nada menos do que uma obra-prima. Quando a lemos, ficamos profundamente tocados, como se ainda fôssemos... jovens! Em contrapartida, pode-se supor que um jovem “de verdade”, ao ler essa novela, dirá logo que ela “não é para crianças!”, e a desejará ler por isso mesmo: para ser tratado como gente que já tem o cérebro e o coração grandes.

A solução narrativa de Luiz Antonio contempla essa condição: a história é narrada por um senhor de 37 anos à beira da 1ª Guerra Mundial, relembrando a época em que tinha 11 anos de idade. Esse narrador é um personagem da vida “real” trazido para a ficção: seu nome é Camille Roulin. Quando garoto, ele foi retratado várias vezes por Vicent Van Gogh. Um dos quadros que o retrata é dos mais populares do pintor e se encontra no Museu de Arte de São Paulo – chama-se O garoto de quepe.


                Para mim, foi uma realização sem fim. Escrevi um livro que me desafiava, que me custou empenho emocional para escrever ew um bocado de elaboração para saber como ia escrever, que tinha dentro de mim fazia quase 30 anos, e que se tornou uma alegria, um grande orgulho. Desses que me dão sentido a eu me dedicar à Literatura.
                A escrever por (e com) paixão pela Literatura.
                ... Daí, quando eu já estava nas releituras/reescrituras sem fim, sobre o texto, recebemos um telefonema.  De uma só vez, nos comunicaram que nosso primeiro neto iria nascer, que seria um menino e que o nome já estava escolhido: Vicente. Diante dessa conspiração cósmica, eu me sentei na mesma hora e digitei a dedicatória do livro: “Para o nosso Vicente”.

                É essa a história de Sonhos em Amarelo

3 comentários:

  1. Grande Luís Antônio Aguiar! Leio esse texto justamente quando acabo de ler os capítulos Que coisa é essa de ser escritor? , Cotidiano de um autor, O prazer de escrever da obra Criação Literária(José Carlos Laitano). Dentre algumas citações, destaco: " "Aquele que decide seguir o ofício de escrever opta pela solidão, solidão criativa". "O artista é quem melhor e mais profundamente compreende a solidão e o sofrimento humano porque incorpora no próprio ser alegrias e dores das pessoas para retrata - las nas suas obras, para construir traços na sua pintura, as notas musicais, os personagens."
    Seu texto vem ilustrar lindamente minha leitura. Obrigada pela sua dedicação à arte da palavra que nos faz mais humanos. Abraço!

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  2. Só uma pergunta básica... O garoto não tinha 11 anos ao invés de 19 anos? Desculpe pela pergunta. Mas... Eu li o livro inteiro, E o Camille tinha 11 anos! Tem alguma coisa errada ou é outra pessoa {Essa ai de 19 anos}??

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  3. Luiz, permita-me dirigir a você com tanta intimidade, mas seu texto nos aproxima, nos faz quase íntimos de você. Já quero adquirir seu livro e passá-lo aos meus alunos. Obrigada por compartilhar conosco como se deu seu processo criativo, a palavra é encantamento.

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