Em 1873, Machado de Assis escreveu o polêmico (na época e
ainda hoje) ensaio “Instinto de
Nacionalidade”. Numa passagem que todos repetem, mas pouco se aprofunda dela e
pouco se aproveita sua atualidade, propõe: “Não há dúvida que uma literatura,
sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos
assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão
absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é
certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda
quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”
Em muitos aspectos, salvo lindas exceções, a Literatura
Brasileira ainda se oferece como vitrina de uma identidade nacional exacerbada
pelo exótico, pelo pitoresco, pelo ancestral, em vez de buscar ir ao encontro
de seu leitor – que participa de uma cultura planetária, viajando na velocidade
da luz, ávida de presente e futuro.
Os dilemas e conflitos desse leitor, especialmente os
jovens, seu espírito, sentimentos, se aventuram numa miríade de influências que
escapam em muito às doutrinas oficiais que a empobrecem, mas que se
harmonizariam belamente com uma Literatura generosa que prezasse e buscasse
analisar e entender o que ele gosta de ler, em vez de impor o que, na
opinião dos reguladores e nos limites estreitos da oferta, ele tem de ler.
Há maneiras amistosas de acessar os clássicos para os leitores, especialmente, de novo, os jovens, que já por sua conta correm para Jane Austen, Robert Louis Stevenson, Dumas, Verne, Conan Doyle e Agatha Christie, e que poderiam descobrir um Machado atual, que expõe nosso racismo estrutural, nossa misoginia atávica, nosso conservadorismo corrosivo. Ou um Lima Barreto, um Alencar, um João do Rio. Há uma universalidade e um patrimônio de três milênios na Literatura que é ocultado por essas tendências meio-leitoras.
Há, ainda, um universo multifacetado de influências
culturais no fabulário árabe, judaico, italiano, alemão, oriental, para não
falar na Mitologia Grega, que são tributários dominantes nesse cadinho
hospitaleiro que é a cultura brasileira – e que não se restringe ao passadismo.
Da crise (e catástrofes) provocada pelas mudanças climáticas,
às guerras cada vez mais sangrentas, o flagelo da fome e das epidemias e endemias, impostas pela desumana supremacia política internacional, dos refugiados, ao
avanço do conservadorismo, à chacina dos jovens negros e pardos das periferias, o genocídio dos povos indígenas e o ataque cruel a quilombolas, e religiões de matriz afro-brasileira, aos diversos
tipos de discriminação ainda e tristemente prevalentes em nossa sociedade, à homofobia e seus recalques derivados, ao
obscurantismo (contra o conhecimento e o novo na cultura) e o negacionismo (contra a ciência, o pensamento, o próprio
presente e o futuro), o leitor – mais uma vez, especialmente o jovem - se vê
acuado pelos problemas do mundo de hoje, que lança ameaças ao SEU futuro; e
nisso a literatura tornada oficinal, à semelhanças da moral e cívica e
os estudos de problemas brasileiros, de décadas atrás, não o ampara, nem
o acompanha (no sentido de companheirismo, amizade, cúmplice) – como a
grande Literatura sempre o fez. O apanhador do campo de centeio, de
Sallinger, é um exemplo do que foi a Literatura que se aliou à juventude e ao
tempo corrente que ela vivia. Cem anos de solidão é outro, glorioso! E haveria muitos outros exemplos célebres que
poderiam ser citados.
A literatura oficializada prefere um passado ahistórico, provinciano, distante, um placebo, às vezes fantasiado de alegoria de vida real, que
se faz de atuante, mas que somente age para entediar os jovens e afastá-los do
presente – por mais dignas e inclusivas que sejam as intenções.
Se queremos uma Literatura vital e vigorosa, uma população
leitora que saia à busca de livros, em vez de estreitamentos cada vez mais
severos e avessos à leitura (da Literatura integrada a nossa vida, parte da
convivência familiar, da vida social dos jovens), temos de mudar o parâmetro, o
calendário das ambientações e conflitos, suspender a censura que impede que os
dilemas da juventude sejam matéria de Literatura, enfim, temos de ir aonde o
leitor está.
Podemos fazer isso. Temos um quadro de autores
suficientemente habilitado a conviver generosamente com a juventude (que amam e
acreditam na novidade que representa o modo de vida criado autonomamente por
esses jovens) e tornar suas experiências em Literatura... Dotados, enfim, de
um certo sentimento íntimo, que torne nossos personagens, histórias e enredos
em coisa do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no
tempo e no espaço.
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