O
QUE VALE A LITERATURA?
Só para começar, não é por acaso que
o título que dou a este texto não é “Quanto vale a Literatura?”.
Acontece que aqui não se trata mesmo
de um valor quantificável. Mas, de um
valor subjetivo. Íntimo. Pessoal. Algo registrado (ou contabilizado) no
espírito de cada um.
Mas, também na identidade de uma
população com seus... valores.
No seu recente A literatura em perigo, Todorov escreve:
Hoje, se me pergunto por que
amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela
me ajuda a viver(...) Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o
mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo(...) Ela permite que
cada um responda melhor à sua vocação de ser humano(...)O leitor(...) lê essas
obras(...)para nelas encontrar um sentido que lhe permita compreender melhor o
homem e o mundo, para nelas descobrir uma beleza que enriqueça sua existência;
ao fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo.
O que vale a Literatura para alguém
que escreve algo assim? Ora, vale uma vida. A vida dele. Literatura aqui se
torna algo tão essencial que não se poderia sobreviver neste mundo, ainda mais neste mundo contemporâneo ─ e no nosso
caso, neste mundo brasileiro ─ sem o consolo e a iluminação da Literatura.
Já, segundo a lenda sobre a
destruição do acervo da Biblioteca de Alexandria, que está num livro doloroso
de se ler, A biblioteca desaparecida, de Luciano Canfora, quando perguntado o
que se deveria fazer com os volumes da maior biblioteca da Antiguidade, o
dignitário fundamentalista islâmico, cioso da nova ordem que queria impor à cidade que seu exército acabara de invadir,
ordenou: Se o que está esses livros não
se pode encontrar no Corão, queime-os, pois eles não dizem a verdade. Se o que
está neles está no Corão, queimei-os, pois são dispensáveis. Preciosas
obras da cultura grega, entre outras, exemplares únicos, viraram combustível
das saunas de Alexandria.
O que valeria a Literatura para esse
dignitário?
Para muitos indivíduos, de diversas
maneiras, a Literatura vale pelo que ensina.
Ou melhor, pelo que se pode agregar a uma obra Literária em termos de uma
utilidade didática, que ela não tem, em sua origem, mas que se pode “trabalhar”
a partir dela. Tanto que há um termo que significa a literatura na escola:
paradidático. Acessório do didádico.
É uma tendência que vem sofrendo abalos,
séria e forte contestação, mas ainda subsiste.
Para Graciliano Ramos, ou melhor, para
seu autobiográfico personagem, o menino, em Infância,
o que vale a Literatura? E para a igualmente autobiográfica menina de Felicidade clandestina, de Clarice
Lispector? Para o primeiro, salvação, desembrutecimento, humanização; para a
segunda, o título diz tudo.
É então desse valor tão etéreo, mas em
alguns tão presente, que estou falando.
Aqui, não me refiro àquela capacidade (leitura)
que confere cidadania, autonomia, acesso à contemporaneidade, defesas contra
logros e estelionatos políticos etc... Falo, sim, de se exigir um tanto além da
capacidade de leitura, de entendimento de texto & contexto. Falo de utilizar
essas capacidades básicas para abrir ao
ser humano a percepção e a vivência da Terceira Margem do Rio.
Trata-se de aceitar a senha do Era uma vez.
Do Abre-te
Sésamo.
Do Alf-Laila,
wa-Laila (Mil noites mais uma noite).
Do Faz-de-Conta e do Pirlimpimpim.
De acreditar na possibilidade de tomar o
caminho para a Terra do Nunca, assim como a capacidade de enxergar, dentro de
si, um Peter Pan. Ou talvez um Gancho. Ou um Drácula.
De compartilhar sem pejo da loucura bela
que tomou D. Quixote, Madame Bovary, Tom Sawyer.
E isso é muito mais difícil.
Há muita gente neste país que se devota à
disseminação da leitura, convicta e resolutamente, sabendo exatamente o que
está defendendo e por quê. São pessoas preciosas. Só que...
Ora!
O problema que nos propomos a resolver é complexo... Mesmo quem não lê afirma
que é importante ler. Mesmo sem dizer nem se preocupar em dizer o que está
defendendo: é importante... ler o quê?
Mas, afirma-se, de todo jeito, a
importância da leitura.
Há muito menos gente ─ talvez somente os
iniciados, os infectados, os amorudos da Literatura ─ defendendo o direito de
ler Literatura. A Democratização da Literatura.
Seria mais ou menos o direito de cada um
de se aventurar no Reino da Verossimilhança, escapando da imposição da Verdade.
De se submeter à relação alquímica na qual o leitor se transforma ao
transformar a obra que lê.
Então, temos certeza de que queremos
insistir nisso?
É nisso mesmo que queremos nos meter?
Não que eu pessoalmente tenha dúvidas,
mas é justo perguntar: não seria mais fácil parar de chatear os outros
afirmando nossa especificidade? Não seria mais fácil engrossarmos uma corrente
que já tem reconhecimento público? Um valor já estabelecido?
Eu acredito que não se pode vivenciar o
intangível da vida, das pessoas, do mundo, sem a Literatura (ou alguma outra
expressão artística que nos anime, insufle).
Eu acredito que não se pode conviver em
paz, sem medo, sem ansiedade, com essa parte da existência, que abrange
inclusive a cessação de existir, além de uma infinidade de outros enigmas e
mistérios, sem a Literatura.
Eu acredito que o que não se pode conviver
com o que há de ameaçador, brutal, destrutivo, corrupto e perverso no mundo –
estampado nas primeiras páginas dos jornais e nas chamadas de telejornais todos
os dias – sem Literatura.
Além disso, amo a Literatura em si, seu modo de expressão e o
que ela pode expressar, sua arte, esta porção de beleza que ela pode gerar,
essa materialização do espírito, de seus enigmas e segredos, em objeto
(artístico) e vivência. Essa coisa de a gente ser possuído por uma obra
literária, enquanto se lê e quando a relembra.
Essa coisa de palavras fiarem textos, que ganham alma.
É uma questão de amor.
Hábito se transmite, se ensina, se
condiciona, se corrige, se domestica. É sempre em mão única.
Amor é mútuo.
(O que uma obra faz com um indivíduo que
a lê com amor é amá-lo.)
Mas, como passar amor aos que não o sentem?
Aos não-iniciados?
Não, não sei precisar como. Mas, talvez
haja pistas a serem seguidas.
Ruth Rocha certa vez, numa palestra,
disse que há pessoas condenadas a ler ─ que vão buscar uma obra Literária sob
as mais adversas condições (lembram da Costureirinha, personagem do filme Balzac e a Costureirinha Chinesa, de
2002?).
Como se dá isso, trata-se também de um
mistério. Creio que estes já tem a Literatura dentro de si, antes de conhecer
qualquer obra. E vão perseguir esse chamado, para saciar uma lacuna, uma agonia, uma fome... “um não
sei que, que nasce não sei onde,// vem não sei como, e dói não sei porque”. Um amor camoniano.
Com estes, temos somente de facilitar o seu
acesso aos livros – bibliotecas com acervos fartos, mediadores de leitura ─, e
o resto que tiver de acontecer acontecerá. Mas, o amor pela Literatura, eles já
estão fadados a contrair.
Há aqueles, do tipo o dignitário que
ordenou a cremação da Biblioteca de
Alexandria ou os que somente podem conceber a Literatura como um recurso de
transmissão de mensagens pragmáticas, seja didáticas, religiosas ou político-partidárias,
ou qualquer proselitismo. São poucos, tão poucos quanto os condenados a ler. E não adianta nos ocuparmos destes.
No entanto, gloriosamente, há todo um
meio-termo, a maioria, o mais numeroso contingente da população, que pode, quem
sabe, ser sensibilizado/contaminado pelo valor que a Literatura tem para os iniciados. Paixão contagia. Amor cativa.
Os que amam a Literatura (como Todorov) tem o poder de passar esse amor. E isso
acontece ao falarem dos livros que
leram, que foram importantes em suas vidas, que mudaram suas vidas, dos quais
sentem saudades, dos seus livros e autores e personagens mais queridos, mais
amigos, companheiros de longa data e para toda a vida...
Se for este o caminho (?), será que podemos
fazer isso? Somos capazes de resistir à tentação de convidar os não
iniciados/futuros portadores em potencial da Literatura em seus espíritos e
vida e cotidiano a abrir uma obra em
função de algum sentido pragmático, mais palatável? Para aprender alguma
coisa, por exemplo...? Isso deve ou não ser evitado?
Creio que sim. Que a pragmatização rouba
da obra sua relação maior com o indivíduo. Uma relação não mensurável, às vezes
oculta nas entranhas espirituais de cada um, uma reação ao que se lê que não
pode ser pré-determinada pela exigência de se decifrar e decorar uma mensagem prevista e fechada: certo ou errado.
Literatura é algo que se planta, num
coração e num espírito, digamos, com sementes de tomate; só que o resultado
pode ser brotarem esfinges.
Já imaginaram uma prova, seja de
múltipla escolha ou de texto corrido, em que se cobre do aluno uma definição
(segundo o gabarito ou o texto-base) do que ele acha que é e onde é O Sítio do
Picapau Amarelo?
Não me admiraria se a resposta certa (pelo gabarito) fosse: “Nenhuma
das respostas anteriores porque o Sítio do Picapau Amarelo não existe”.
Mas e se houvesse um rebelde, um
gauche na vida que, tocado pelo anjo torto, rabiscasse todas as opções, de “A”
a “E”, recusando-as, e escrevesse, à guisa de resposta, na margem da folha:
“Fica em Taubaté, ou pode ser logo ali, junto ao Labirinto do Minotauro, à Toca
do Coelho de Alice, a uma região da Terra da Mancha cujo nome agora não quero
lembrar, bem no universal hipermercado de impossíveis
possibilíssimos. Aliás, nada existe
em termos absolutos. Tudo é uma suposta existência. Tudo é conjectura, como escreveu
Machado, que segundo o poeta que até hoje, sentado de costas para o mar, sendo
mineiro de nascença, nos observa lá do
seu bronze passou à imortalidade por fazer bruxarias” ... ? E se daí seguisse o candidato, se
animando, mandando ver e deixando rolar, usando o verso da folha entronizada, compondo
um texto inusitado, espantoso... Magnífico. Literário.
Que nota ele estaria
arriscado a levar, se fosse uma questão do ENEM?
Creio que temos capacidade ()se assim decidirmos
fazer) de infundir este valor de que falamos, ou de mudar este valor (pragmatizado,
didatizado, proselitista) da
Literatura estabelecido (status quo) em
nossa sociedade ─ que é um valor cultural, que não reside num segmento isolado,
mas está no ar. É o que pode ter esse alcance geral, escapando
de nichos com fins fragmentados/fragmentadores.
E uma ação para ter impacto num tal
âmbito, mesmo que nosso produto seja tão diferenciado,
precisa incluir mídia e marketing ─ sortilégios diabólicos que são a corrente
sanguínea das idéias e hábitos em nossa contemporaneidade; até porque, desde
Umberto Eco, sabemos que não precisamos ter medo de despertar, como um Gregor
Samsa, metamorfoseados em apocalípticos,
nem em integrados...
Ou seja: podemos fazer
uma mídia/marketing do Bem.
Seria o toque final para gerar a massa
crítica, diante das tantas e dispersas iniciativas da sociedade civil para
democratizar a Literatura. Pode ser a sinergia desses movimentos todos, sua
integração num espírito, numa idéia transformadora. Numa utopia; e utopias são impossibilidades
férteis, como argumenta Otávio Paes.
Pode ser uma inspiração para se mudar o
que vale a Literatura para nosso povo. Para surgir essa nova mentalidade, a da
Literatura como um valor inalienável e fundamental no tecido social. Ou para se
inserir para sempre a Literatura entre nossos valores básicos. Em nossos lares, no convívio com quem amamos.
Até
porque não se trata de um golpe de publicidade. É sincero: são valores que se
fortalecem ao interagirem.
O que vale a Literatura? No caso
brasileiro, vale a conta das nossas esperanças no presente e no futuro.