INQUIETUDES SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS
De Homero à Literatura Pop
Luiz Antonio Aguiar
Os deuses são sempre os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por nós,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propósito casual.
Ricardo Reis
(Fernando Pessoa)
Deus
existe?
Existem
os deuses?
Esta é uma
questão crucial e um pilar temático da Literatura Ocidental. Encontra-se
latente e tácita desde o Ilíada. E muito
da rejeição a livros como a saga de Harry Potter, livros fantásticos que
incluam magia e elementos mitológicos e do folclore, pode ter a ver com a tentativa de ocultação dessa dúvida
primordial, que semeia a Literatura.
E aqui, parto da especulação de que aquilo que
nos diferencia das outras espécies é nossa consciência
de estarmos vivos, de nos perguntarmos qual o sentido disso e da Criação (da nossa
Criação, inclusive). Ou seja, somos seres dotados de uma inquietude cósmica. Que inclusive nos dota da da capacidade de criar
realidades alternativas. Não temos raízes que nos prendam a um solo, nem um imperativo
instintivo e natural, que nos imponha solo, influências, um caminho único. A
hereditariedade faz lá das suas, mas nem o passado, nem a tradição, nem o DNA
nos determinam. Não em termos absolutos.
Portanto, criar trata-se de sobrevivência
existencial, e isso desde que o mundo é mundo, cada qual define-se, inclusive
quanto a acreditar ou não na existência de deuses, ou de Deus.
E mais, a Literatura não é
entendida aqui como uma resposta a essas indagações. Nem para abrandar
inquietudes que são mais férteis se mantidas em carne-viva. Mas... quem
sabe?... para, já que aqui estamos (e consequentemente podemos aleatória e
subitamente cessar de existir), propiciar espírito ao cotidiano, anima à matéria; para gestar em nosso
íntimo imagens (ou algo similar) do invisível, descobrir caprichos da beleza, vivências
do inexistente e de metáforas que nos possibilitem lidar, de algum modo, com o desconhecido, singularidades como o Aleph e a Terceira
Margem do Rio.
Então,
sobre Harry Potter e semelhantes, num universo (ficcional) em que os
personagens comuns (que, embora bruxos, seriam mortais, dominados por
sentimentos, medo etc...) realizam
milagres (ou prodígios, se preferirem),
estaria subtendida a inexistência de
deus e dos deuses? Não seria redundante a existência de deus e dos deuses
nessas ambientações?
Ora, a
censura a determinados temas e palavras, ou expressões, assola hoje a Literatura no país, principalmente a
Literatura dedicada ao diálogo com jovens e crianças. Mas, como toda censura, é focada em aspectos
menores e mesmos mesquinhos. No que o censor não consegue entender. Não
concebe. Não admite. Ou seja, nas limitações existenciais e intelectuais do
censor e da censura institucional (mesmo a bem intencionada, hipoteticamente, a
do politicamente correto).
Nem por isso, é menos perniciosa.
Até por nem sempre assumir-se como censura, mas, às vezes, arrogar-se a dona de
critérios pedagógicos, a preservar valores, a moral, ingenuidades. Mas, será sempre
censura, a pior peçonha que se ergue contra a Literatura. E contra o
pensamento. Contra o amadurecimento do indivíduo. A censura, Cérbero que vigia
os portais da ignorância, para que neles nada vivo penetre, e de lá de dentro
ninguém escape. Ela mesma. E prescindindo até de uma ditadura, de um Estado
tirânico, para lastreá-la, para praticar
sem constrangimento nem culpa seu mal.
Palavrões são proibidos. Tramas
que se solidarizem de coração e mente abertos com os jovens (e crianças) na
descoberta da sexualidade, a não ser no nível rasteiro das “pegações” etc., são terminantemente vetadas.
Homossexualidade, via de regra, idem. E, agora, observando o crescimento de um
preocupante fundamentalismo religioso (há algumas denominações, pelo contrário,
esplendidamente humanistas, iluministas),
todos os temas relativos ao sobrenatural, do terror ao folclore, também.
Enfim, polêmicos, no sentido de causar
polêmica, seriam aqueles temas “perigosos”, que podem comprometer adoções ou
compras governamentais de um livro que explore um tema desses, ou a compra em
licitações do governo; ou atrair problemas de uma maneira geral para a editora.
Por exemplo, há livros que são objeto de raivosos discursos de dignitários dos
mais variados escalões por conterem palavras como “diabo”, ou assemelhados. Já
escutei vetos à palavra arco-iris - seja em que contexto for, e ao lixo com a
ciência da ótica. A ira se ergue, em alguns meios, por conta da participação
numa história de um Saci Pererê, ou sua simples menção. Há capas de livros que
são do mesmo modo e à mesma fogueira condenadas porque, sendo capas de livro de
terror, por exemplo, trazem imagens que evocam a emergência do sobrenatural em
nosso mundo, e isso não se admite. No primeiro caso, o Vocabulário Ortográfico
da Língua Portuguesa, todos os dicionários e as obras completas de Câmara Cascudo
que se cuidem. No segundo, uma caveira, um dos símbolos místicos de São
Francisco, que representaria a igualdade de todos os seres humanos, uma vez
deixada para trás a vida material, apavora tanto os acusadores que é impossível
não lembrar que um dos sentidos da criação dessas histórias (de terror) seria propiciar aos leitores uma vivência
estética da inevitabilidade da morte, e a presença espectral de um duplo, sujeito a compulsões, coabitando nosso
espírito. Ou seja, os mesmos medos que essa Literatura compartilha com a
humanidade, desde a sua fundação, talvez, vitimize os que os querem ver
expurgados dos livros, inclusive das capas destes. E tanto os assusta que é de
se perguntar se não deveriam eles ser leitores mais assíduos, especialmente da
Literatura de Terror.
No
entanto, mesquinharias à parte, as dúvidas do ser humano sobre a existência de
Deus, a busca da compreensão da relação entre o sagrado e o mundano, entre o
ser humano e os deuses, ou seja, a desestabilização da ideia de que não se pode
questionar nem a existência nem a onipotência dos deuses, nem muito menos, é
claro, sugerir que os deuses sejam
criação humana, são o ancestral dos temas polêmicos.
Tanto que, como se antecipou, presente
sublinarmente em Harry Potter e
outros, pode ser observado, e já metaforizado, no mais clássico da Literatura
Clássica: Homero. Já ali se questionava – se os deuses são tão indiferentes (e,
no caso das batalhas de Tróia, se deleitavam-se com as matanças e até mesmo
tomavam parte nelas) ao sofrimento humano, se assistem impassíveis ao martírio
dos inocentes e ao triunfo dos perversos, será mesmo que estão lá? Será que há Alguém a nos observar e a ajuizar os nossos atos? Seremos tão
solitários assim, enredados por impassíveis vicissitudes?
Onde
estão os deuses, quando precisamos deles? Onde estão, quando dirigimos a eles
nossas súplicas e preces? Será que nos escutam? Onde estão, quando,
desesperados, pedimos sua interferência
no plano terreno? Onde estão, quando necessitamos de um milagre?
CAPÍTULO CCI
QUERIA dizer aqui o fim do Quincas
Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente,fugiu desvairado em busca do
dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo
especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que
dá o titulo ao livro, e por que antes um que outro, —questão prenhe de
questões, que nos levariam longe. Eia! chora os dois recentes mortos,se tens
lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia
não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os
risos e as lágrimas dos homens.
Quincas Borba, Machado de Assis.
Destaco
a cena em que Aquiles não somente mata Heitor, mas também profana seu cadáver,
como o clímax do Ilíada – poema no
qual Homero funda uma nova narrativa, a Épica, a história longa, com enredo,
personagens complexos com expressão exterior própria e realidade íntima, cenas
nas quais o autor está oculto, em que inauguram-se a ação, diálogos, drama –, que irá, ao lado de Odisseia, gerar a Literatura Ocidental.
Aqui,
Aquiles já atravessou o corpo de Heitor com sua espada. Heitor está de joelhos,
nos estertores finais, e suplica a Aquiles que não ultrajasse seu corpo e não fizesse
os pais dele, Príamo e Hécuba, sofrerem além do que já sofrerão com a morte de
seu filho predileto, herdeiro do trono de Troia – sendo que sua morte já representa a
condenação da cidade e de todos os seus habitantes, que serão de fato
chacinados (os homens, inclusive as crianças, para que jamais cresçam e vinguem
seus pais, todos serão mortos pelos aqueus; enquanto as mulheres serão
estupradas e, sequestradas, reduzidas a escravas). O quase-deus
Aquiles, em seu ódio tremendo contra Heitor (que matou Pátroclo, numa trama
urdida pelo próprio Apolo), rejeita o pedido.
Heitor, mal podendo respirar
replicou:
“Imploro a você, por seu espírito
e por seus pais,
Que não deixe os cães devorarem
meu cadáver, em seu acampamento, junto a seus navios. Aceite o bronze e o ouro
que lhe
oferecerão, como resgate, meu pai e sua
esposa, minha mãe.
Permita que meu corpo lhes seja
devolvido, de modo
que nossos homens e mulheres
possam me proporcionar a respeitosa pira, que consumirá meu corpo.
Aquiles, o grande corredor,
desdenhosamente respondeu:
“Não me venha com súplicas em
nome do meu espírito ou de meus pais, cão lamuriento! Se eu permitisse à minha
ira guiar-me, neste momento, não somente
o mataria mas comeria a sua carne ainda crua, tamanha foi a dor que você me
causou! Nenhum homem conseguirá evitar que seu cadáver vire banquete das
matilhas, nem que me paguem dez resgates , nem vinte, isso eu juro. Sim!
Nem que o próprio Príamo, filho
de Dardanus, ordene que se pague
o seu peso em ouro! Seu corpo não
terá repouso na morte, não será
sepultado, nem chorado pela
mulher que lhe deu à luz.
Os cães e as aves de rapina irão
devorá-lo até que nada reste”.
Aquiles
cumpre sua medonha promessa...
Muitos mais ultrajes, Aquiles
planejava para o cadáver de Heitor
Na parte de trás dos pés, perfura
ambos os
tendões, do calcanhar ao
tornozelo. Atravessa pelas feridas tiras grossas
de couro de boi e as amarra ao
seu carro, deixando a cabeça do
morto fazendo rastro no chão.
Subindo então
no carro, brande no alto a armadura do guerreiro, seu
troféu, e agita as rédeas,
açoitando a parelha de animais
para dispararem em galope. Uma
nuvem
de poeira se levanta, ocultando o
cadáver,
a cabeleira de Heitor voando para
trás, e aquela cabeça
tão principesca em vida se revira
no pó. Zeus o entregara assim
a seus inimigos, para ser
profanado, na sua própria terra natal.
Assim, seu crânio logo se tornou
uma massa escura. E
a tudo assistindo das muralhas de
Tróia, sua mãe corta
as tranças, arranca seu véu e
geme alto, o coração dilacerado
ao ver ali embaixo o que se faz
com seu amado filho.
Aquiles
não para aí. Para homenagear Pátroclo,
à beira da pira funerária do amigo – e paira a mitológica suspeita de que se
tratava não somente de seu primo e companheiro de infância, mas também amante –,
doze jovens guerreiros troianos que capturara são degolados e o sangue deles é
aspergido nas chamas.
Ora, o
sacrifício humano é vedado aos gregos. E jamais agrada aos deuses. O rei Lykos,
por sacrificar a Zeus uma vítima humana, e comer sua carne, foi transformado em
lobisomem, para vez ou outra virar besta-fera e devorar seus entes queridos. De
Lykos, o primeiro licantropo, vem a licantropia.
E talvez o mito disfarce, em suas entrelinhas, a inquietude de Lykos, a sua
incerteza sobre o amor dos deuses por ele, sobre como conquista-los ou
comovê-los, e sobre a piedade dos deuses
em relação aos humanos.
Também Aquiles desafia os deuses.
Por que
faz isso, há várias interpretações. A minha é que o Aquiles de Homero, um dos
mais grandiosos personagens da Literatura, paradigma da Literatura, herdou não apenas
o rancor contra os deuses, mas a obsessão louca de sua mãe, Tétis. A ninfa do
mar, Tétis, desejada por Zeus, foi forçada por Hera a se casar com o rei - rei, mas mortal – Peleu. Sentiu-se humilhada.
Seus seis primeiros filhos nasceram também mortais e ela os quis tornar
imortais, no ritual do fogo – lançando-os à fogueira. Morreram. Daí recebeu a
profecia de que somente alcançaria seu propósito com o sétimo filho, Aquiles,
banhando-o no Rio Estígio, o mesmo que bordeja o Hades.
Foi o
que Tétis fez, mas segurou o bebê pelo calcanhar, e essa parte do corpo da
criança não foi invulnerabilizada e passou
à tradição como o Calcanhar de Aquiles. Por conta daquele pequeno pedaço do seu corpo, Aquiles, ao longo
de toda Ilíada e da sua curta vida
(morreu jovem, conforme sua escolha, e coroado de glória como grande guerreiro),
é constantemente chamado de quase-deus,
quase imortal , quase-divino.
Ele é o quase.
Que ato falho: Aquiles perfura os calcanhares de Heitor para iniciar
seu ritual blasfemo justamente pela parte do corpo que o coloca abaixo dos
deuses, que o torna quase imortal.
Os deuses é que são completos. Aquiles enlouquece por causa desse quase. Na cena com Heitor citada e
na profanação dos restos mortais do príncipe troiano, que se segue, Aquiles
desafia os deuses a provarem que são tão mais poderosos do que ele, por serem
completos. Por não serem mestiços,
mas puramente mortais (há também um conflito semelhante em Harry Poter, entre
os bruxos filhos de pai e mãe bruxos, os puro-sangue, e os sangue-ruim,
quando o pai, ou a mãe, como é o caso do próprio Harry, é humano,
não-bruxo). É como se o herói erguesse
seus punhos para o céu e bradasse: Vejam
o que estou fazendo! Estou insultando Vocês! É com Vocês que estou falando. Não
finjam que não me ouvem. Que não estão me vendo! Vocês existem mesmo? São tudo isso que dizem
que são? Então venham me pegar!
Ficava o
repto lavrado. Afronta de um quase-mortal
aos imortais.
Os
deuses gregos eram imortais,
mas não eram eternos (tiveram um nascimento).
Não eram onipresentes. Não eram onipotentes. Mas eram prepotentes. E muito
ciosos de seus privilégios. Vaidosos, prezavam ser (muito e servilmente)
bajulados – pelos reles mortais; ora, vejam!. Tanto que se podia, como
foi o caso de Édipo, ofendê-los sem querer, sem se pretender fazer isso, sem
nem se saber que se estava fazendo isso. Édipo e toda a sua prole com Jocasta
(que se suicida) foi castigada pelos sacrilégios que ele cometeu
inadvertidamente. Ou melhor, conduzido por profecias, que eram forjadas na
medida dos desígnios dos Imortais.
Mas importa marcar que uma grande
diferença desses deuses gregos para a tradição
que veio para o Ocidente cristão reside na impossibilidade da onipotência e da onipresença
– a não ser que os deuses se sobreponham e se acavalem uns sobre os outros – em
qualquer religião não monoteísta. Nas
religiões politeístas, cada deus tem atribuições específicas, como se fossem jurisdições. Não são Todo-Poderosos. O destino, por exemplo, não pertence aos deuses olímpicos, mas às
Moiras. E mesmo Zeus se curva às três irmãs, fiandeiras da Fortuna. O Universo
foi dividido entre os irmãos
(homens): Zeus, o plano terrestre, os astros, o Olimpo; Poseidon (os mares e
suas criaturas); Hades (o submundo para onde eram tragados os mortos,
inapelavelmente). Havia outros; os deuses eram territorialistas, como os
gatos e cães. Nenhum se metia nos domínios alheios, se não quisesse encrenca braba.
E talvez não fosse demasiadamente
arriscado sugerir aqui que a própria Criação Literária se insere nesse dilema:
diante da onipotência e onipresença do autor, e de seu poder de narrar (e até
mesmo de dissimular uma delegação desse poder a um personagem, dito personagem-narrador;
para não falar do seu poder de contar a história em várias vozes, de trás
para frente, começando in media res , pelo meio, ou do jeito que melhor entender
para ludibriar/enredar o leitor), não ocorreria aqui esse acavalamento? Como
pode um ser mortal, limitado, se arrogar a criar (a não ser que toda arte seja
realmente uma mera redução de algum modelo ideal, imitação, depreciação, no
sentido platônico, da vida), num Universo onde já impera O Criador? É genuína a criação
humana? Ou, invertendo a inquietude, Deus está inscrito na obra literária
(e na Arte), assomando-se sobre o poder do artista? Ou será o artista
personagem-autor de Deus, recebendo Dele, ou dos deuses, então, a delegação
dissimulada referida acima, da onipotência e da onipresença, que ele imita, embora
incapaz de preenchê-la?
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito
futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Raiael e
Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos
prêmios. Pode ser também que a música em
demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu
gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e
ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais nada, se Deus não
houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal
gênero de recreio era impróprio da sua eternidade.
Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de
mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,—compôs
a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
—Senhor,
não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a
partitura,
escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas admiti-me
com ela a vossos pés...
—Não,
retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
—Mas,
Senhor...
—Nada!
nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado
e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do
céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira,
com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
—Ouvi
agora alguns ensaios!
—Não,
não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Em Dom
Casmurreo, “A ópera”, Capt. IX
Aliás, esse é grosso modo o
modelo clássico, sob o qual os aedos
recebem a Revelação (Alethea) das
musas, num momento inspirado, e a
passam para seus poemas. A criação (original) é privilégio dos deuses. Pelo
menos, assim foi, até Prometeu. Homero desafia o monopólio divino ao criar enredos, tramas e personagens que ganham vida.
Mas,
retornando – Aquiles pretendia provocar os deuses e obriga-los a intervir num drama
humano. Conseguiu. Despertou contra si a fúria dos
deuses. Com isso, fica provada a onipresença também da inquietude. Nossa
inconformidade em relação à indiferença
dos deuses ao nosso dia a dia, como metaforizou Machado, em Quincas Borba. E ainda a necessidade de termos manifestações
materiais (milagres) da nossa ligação com eles – intervenções diretas e
visíveis no cotidiano. Por obra de
Homero, o tema ficou incrustrado para sempre em nossa Literatura. E
principalmente por metaforizar um conflito, uma dúvida cósmica humana,
universal, eterna, insaciável, inerente a nossa espécie. Uma dúvida que, aliás,
define nossa especificidade como espécie: nossa Humanidade.
Há
claro, os que não têm dúvidas. Que escutam Deus, ou os deuses, dentro de si, e
acreditam que Ele, entre bilhões de mortais, se ocupa em protegera estes, seus
eleitos. São felizes. Eu os invejo. Machado também os invejaria. Mas, optaríamos
por viver outra vida, se nos fosse dada a escolha.
Portanto, é possível ler o Ilíada como o mais remoto ancestral desse embate, no
universo da Literatura, e de nossos dilemas: como podemos ter sido criados
(criador <– > criatura) por deuses,
nossos pais, que não se comovem conosco? Somos órfãos? Fomos
rejeitados? A maldição da expulsão do Paraíso contém cláusulas até hoje não
explicitadas?
Ou será
que os deuses não se apresentam simplesmente porque não existem?
Ou será
que Deus não existe?
Mas,
daí, estaríamos sós no mundo.
“O
horror, o horror, o horror”, sintetizaria Joseph Conrad.
É compreensível então o temor de se entrar
nessa polêmica. E não somente a Literatura sofre tal censura. Que
frequentemente se torna auto-censura. É sabido que Charles Darwin, depois de concluído
A origem das espécies, hesitou por
muito tempo até publicá-lo. Temia a polêmica. Afinal, se as espécies não
surgiram no Planeta conforme as vemos, hoje, se evoluíram ao longo de bilhões
de anos (se a Terra não tem a idade do tempo bíblico) como podem ter sido
criação de Deus? Se fossem, não seriam perfeitas e imutáveis? E de fato A origem das espécies foi um dos livros
mais revolucionários no que toca à visão que o ser humano tem da vida e do
mundo.
Sigmund Freud, com menos
pruridos, culpas, cautelas e preocupações do que Darwin, quanto à repercussão, entre os retrógrados, de suas
teorias a respeito da mente humana, previu
igualmente que entraria no index dos proscritos e que seria alvo da demonização
de praxe. Nem por isso deixou de divulgar suas teses.
Abrindo parêntesis... Redimindo a ciência de suas blasfêmias, o
matemático Michio Kaku, em Hiperespaço, relata que um enigmático matemático hindu, Sirinivasa
Ramanujan, que, trabalhando isolado da produção mundial nessa matéria, alegava
que as equações prodigiosas que apresentou para resolver a Teoria das Cordas
lhe foram reveladas, em sonhos, pela deusa de sua família, Namagiri Amman. Há
de fato um beco sem saída, batendo na parede do inexplicável e do
incompreensível, nesse refinadíssimo e ultra-atual modelo composto para que possamos visualizar a organização do
Cosmos, e que postula, entre outras coisas, que o universo seja formado de uma
composição de dez dimensões; nosso universo quadrimensional (largura, comprimento, altura e
tempo/espaço), acrescido de outro, que possuiria dez dimensões; inimaginável e
inconcebível para seres quadridimensionais. Por que dez dimensões? Replica Kaku:
“Ninguém sabe”. Ocorre que as equações que
compõem a Teoria das Cordas esbarram com constrangedora frequência no
número 10. A ponto de Kaku denominar essa incidência de “aparição”, e
classificar esse número 10 na ordem dos “números mágicos”. Numa linha
totalmente diferente, o físico e cosmólogo brasileiro Marcelo Gleiser
acusa os cientistas, como Stephen Hawking e, por extensão, embora não o cite, o
próprio Kaku, de serem impelidos por uma
crença monoteísta subliminar, ao persistirem na compulsiva busca por uma Teoria
Final, ou Teoria de Tudo (que unificaria a compreensão que os cientistas têm
das diferentes “forças” que agem na
natureza; algo que atormentou Einstein,
em seus últimos anos – e pode ter sido sua grande frustração, não haver
conseguido matar a grande charada do universo, ou seja, descobrir se Deus joga
ou não dados). Ora, Gleiser propõe que não exista essa tal unificação, esse
Nirvana ou Santo Graal da Ciência, a Teoria de Tudo, por não acreditar mais,
depois de tantas buscas e pesquisas e formulações teóricas frustradas, em algo
que, suspeita ele, seja, a identidade secreta de Deus, contrabandeada (até em
sonhos, mesmo de matemáticos) para a ciência. Para ele, a criação do Universo,
da Vida e seu desenvolvimento são regidos pelo acaso – uma concepção desoladora
para a grande maioria da espécie humana. Ora, donde se constata que a Física e a
Cosmologia se inquietam com a mesma dúvida
que, instalada no coração oprimido da nossa espécie, impregnou a Literatura ...
Parêntesis fechados.
A cada desvendamento, a
inquietude se aguça... Em 2014, pela
primeira vez na nossa história, ao que saibamos, fizemos contato com seres extraterrestres. A sonda robô
Filae encontrou “matéria orgânica” (vida extraterrestre) e água (gelo) nas
entranhas de um cometa, o 67P, o que pode ratificar a teoria de que a vida na Terra
teria surgido da contaminação ou infecção de germes, vírus, bactérias, algo do
gênero, trazidos do espaço, das profundezas remotas do Sistema Solar, por
cometas e meteoros, que caíram no rico e fértil caldo dos oceanos. Assim teriam
surgido as primeiras moléculas vivas na Terra... Mas, se foi isso que iniciou a vida, onde entra
Deus, nessa história?
Eram os deuses cometas e estrelas
cadentes?
E o que
dizer então do também fundador Teogonia,
de Hesíodo, o qual, segundo a tradição, foi criado depois de Ilíada?
Trata-se do Nascimento dos deuses.
Mas, a necessidade de afirmar o surgimento Deles também não é uma inquietude
sobre Sua existência? E no embate entre Cronos, o titã que devorava os filhos,
e os deuses olímpicos, liderados por Zeus, não está uma metáfora do Big-Bang (ou seja lá que teoria prevaleça
nos próximos anos sobre o surgimento do Universo)?
Mas se os deuses criaram o
universo, se o seu nascimento coincide com
a eclosão do Cosmos (= ordem x Caos)
e, entretanto, não habitam mais o Olimpo, nem nenhum ambiente físico, em que lugar
ou em que dimensão estão, agora? De onde nos assistem?
Em Deuses americanos,
romance de Neil Gaiman – astro da Literatura Pop americana e das HQs, com uma
tribo de fãs inclusive no Brasil -, os deuses
antigos de todas as mitologias tanto nativas quanto daqueles cujos
descendentes imigraram (ou foram trazidos à força, no caso dos africanos) para
a América, vagam, hoje em decadência, anônimos, carentes de adoração e de
devotos, disfarçados de indivíduos prosaicos, pelos EUA.
Ou seja, a Literatura ecoa uma
dúvida universal. E primordial. Uma agonia, um dilema humano, nossa
Mãe-Angústia, talvez um verme originário da Caixa de Pandora, sobre a
existência ou não de Deus, e qual seria seu interesse (afeto?) por nós, quais
seriam os limites desse afeto e como poderíamos obter a extrapolação desses
limites (milagres), nós que morremos de doenças, de fome, envelhecemos,
enlouquecemos, demenciamos, cometemos erros, crimes, absurdos, bancamos os
estúpidos, caímos em ridículo, nos apaixonamos (até mesmo por miragens, por olhos
que não nos olham), criamos e amamos obras de arte. Os deuses existem?
Ou foram criados por estes
mortais, estes seres tão falhos ... á imagem e semelhança (deles)? Como se pode
confiar na eternidade, onipresença, infalibilidade e onipotência de deuses que tenham a nós como seus criadores?
Heródoto
afirma que Homero criou a Mitologia Grega, e, se assim quisermos entender, (re)criou os
deuses (compilou lendas, tradições, histórias locais, inventou, ficcionalizou, selecionou os que iam para o Olimpo, os que
ficavam na periferia, ou mesmo os rebeldes como Dioniso, com uma história toda
peculiar, e assim gerou-se o fermento da nossa imaginação, do Belo, da cultura ocidental, da nossa
compreensão do que é divino e do que é mundano, e da separação desses planos)...
Ou será que os deuses entraram em
nosso universo vindos de outras dimensões do Multiverso, através de buracos de minhoca (whormholes; termo usado pelos físicos e cósmólogos), ou de portais, como os da ficção científica e
da Literatura Fantástica? Mas aí já seria provocação. Recentemente, foi
descoberto um ainda incompreensível túnel interestelar, que vai de uma bolha de
gás quente imensurável, situada em nosso Sistema Solar, até a Constelação de
Alfa Centauro. E se o Monte Olimpo tiver sido uma metáfora para os que habitam as
Alturas?
Em Frankenstein
ou o Prometeu Moderno (1818), de Mary
Shelley, as inquietudes são o esteio da trágica trama. Para começar, o público chama o monstro de Frankenstein; no entanto, a criatura
roubou o nome de seu criador. Frankenstein, no romance, é o sobrenome do jovem cientista
(Victor Frankenstein), cuja arrogância intelectual, a soberba pelo que seus
conhecimentos e inteligência poderiam alcançar, o fizeram cometer uma
blasfêmia, qual seja, avançar sobre um atributo exclusivo de Deus (como o fogo,
roubado por Prometeu): a criação da vida. Ele se arrepende. Ao final de seu
périplo, condena toda a busca pelo conhecimento como uma tentação (demoníaca?
... a criatura, que no livro não tem
nome, é muitas vezes chamada de “demônio”) a que nenhum homem deveria ceder. E quem quiser fazer associações dessa trama
clássica com os embates atualíssimos sobre engenharia genética, creio, não
estará exagerando.
Ao mesmo tempo, a explicitação da dúvida é tabu.
E vetada pelo pensamento e inteligência submedianos. Especialmente como
componente dramático da Literatura, corrente na atualidade-mercado-Brasil, que,
entre outras coisas, fertiliza o pensamento e a inteligência humanos. Por isso, a polêmica. É proibido alardear que
a dúvida existe, muito menos insinuar que ela tem o tamanho da História (do
espírito e do intelecto) da Humanidade. E que nossos leitores sofram,
solitários, consumindo-se pela culpa de se acharem pecadores condenados por
suas dúvidas (= falta de Fé), somente eles, neste Mundo de Deus.
Harry
Potter causou muita polêmica e causa até hoje. Talvez porque ambiente-se num mundo em que há bruxos à solta,
realizando prodígios, o que deveria ser atributo exclusivo de Deus –,
com isso, tenha tido a autora esse propósito, ou não, a mera existência
da saga literária do bruxinho seria blasfema (de novo, Édipo ofende os deuses sem
nem saber que o fez). Ou talvez seja porque, sob certas crenças, bruxas seriam coisas do
diabo, e portanto não se deve mencionar sua existência (ficcional), nem mesmo
considerando que o ser humano sempre se perguntou tanto se existe Deus quanto o
diabo.
Não importa. O mundo está
perfeitamente arrumado pelos escritos considerados sagrados, canônicos; e fora
com os apócrifos; assim como a moral está resolvida pelos ditames (nem todos
explícitos, mas poderosos e infectantes, de censura a obras, autores e
pensamentos) do politicamente correto
etc, etc, e assim vai o mundo, coisa muito simples, sem problemas, para quem
pensa direito, para quem se quer sempre feliz, para quem não se afasta do bom
caminho. Afinal, de contas, não há censura para os que sabem o que deve e o que
não deve ser dito.
Em Deus me livre, de Rosa Amanda Strausz, lindíssimo
livro, simples, meigo, generoso, inteligente, esperto, malandro, divertido, duas
crianças questionam a criação de Deus, dirigindo suas queixas e sugestões ao Próprio.
É assim que a menina reclama do que considera
uma das coisas mais mal feitas de todas, pelo Criador, o peruzinho do
menino, que além do mais, na opinião dela, foi privado de graça e beleza.
Afinal,
há quem pontifique que Deus não está aí para brincadeiras. Preferem que Ele seja
temido. Crêem que funciona melhor assim, como o bibliotecário Jorge, em O nome da rosa, de Umberto Eco, para
quem o riso seria o caminho pelo qual o ser humano começaria a desacreditar em
Deus – e por isso escondeu e ao final destruiu
o volume perdido de Aristóteles sobre a comédia, que o romance assume ficcionalmente que tenha
existido. O nome do
personagem-bibliotecário homenageia Borges,
outro ser do mundo dos livros, das bibliotecas. Embora a obra borgeana seja um
universo literário-alephiano, no qual é difícil, se não impossível, identificar
rastros da presença de Deus, havendo por lá abundância de espelhos, labirintos,
noites sherazadianas e seres extraordinários.
Por aí
vai. Escrevi certa vez uma novela romântica em que a protagonista se apaixona
por um cara alguns anos mais velho do que ela, mas, assim como admite Bentinho
em relação a Capitu, ela era mais mulher do que ele era homem. Em certa cena, a
garota empurra o rapagão para dentro do banheiro e lhe tasca um beijo de
língua. O cara quase tem um enfarte. Daí, a editora me pediu que tirasse a
cena. Eu respondi que a cena, não tirava, mas tirava o original daquela
editora. E foi o que fiz... Censura a algo menor? À sensualidade? Não chega a ser sobre a dúvida
primordial. Ao mesmo tempo, Deus onipresente poderia estar assistindo a uma
cena dessas. Não seria desrespeitoso fazer essas coisas diante dele. Mas, dada
a Onipresença de Deus, como nos ocultarmos, pudicamente?
Nem
sempre os escritores agimos assim –
nem sempre rejeitamos a censura. Por vezes, ponderamos, negociamos. Ou driblamos. Faz parte do nosso show.
Queremos ser lidos. Queremos que nossos textos virem livros e cheguem ao seu
destino, os jovens, as crianças. E precisamos vender nossos livros, pois nos
sustentamos com o percentual (que vem, sendo diminuído paulatinamente) de
direitos autorais. É preciso sempre medir bem o que se negocia e o que não se quer
negociar. Mas, é curioso. A Literatura sofre mais censura do que o cinema e do
que joguinhos de computador, onde rolam sangue e cabeças, e corre violência em
rios de irracionalidade. Enquanto, na Literatura, temos de ser comportados. Lá
é consumo, coisa que as crianças e os jovens compram espontaneamente. Aqui é...
O que é, o que é?
Um isso, ou vários issos, várias obras que não podem ser meramente consumidas, neste país capitalista,
mas têm de ser educativas, enaltecedoras,
cívico e politicamente corretas. A
Literatura é vetada quando cai de boca no mundo real. Longe dela apaixonar-se
pelo cotidiano. E até pela fantasia... Ah, as travessuras de Zeus, se fossem
contadas. Se Hermes fofocasse tudo o que sabe sobre seu pai, das tantas vezes
que guardou a porta, enquanto ele lá dentro cometia loucuras com alguma iludida
mortal, que ele logo irá abandonar à ira de Hera, real, olímpica e divina
esposa. As inconfidências de Hermes: grande título! ... Os deuses e o sexo:
grande tema! E olha que se puxássemos Afrodite, para dar depoimentos sobre seus
casos, as tantas vezes que traiu Hefesto e os tantos amantes que teve, não
sobrava nem para Bruna Surfistinha. Ah, a Surfistinha, essa pode. Essa corre
por fora e conquista leitores. Essa é apenas
um best-seller. O sucesso é visto com desconfiança pelos anti-polemistas. A
Literatura é temida.
José de
Alencar estaria perdido, logo ele que escreveu Lucíola na marra (anos
antes, sua peça teatral, As asas de um
anjo, protagonizada também por uma prostituta, fora proibida pela polícia), desdenhando dos
censores da época e até da crítica hipócrita de D. Pedro II, um marido infiel,
tanto quanto o pai, mas que condenou Alencar por este tomar o partido de Lúcia,
a prostituta; por Alencar escrever que se ela, que foi seduzida em troca do
dinheiro que usou para comprar remédios de que sua família necessitava para
sobreviver a uma doença cruel, se tornou-se uma prostituta, se exibia seu corpo
despido em orgias promovidas em chácaras de gente rica... e ainda podia guardar uma parte de si para esbanjar
amor por Paulo, um amor sincero, apaixonado ... então, quem sabe, prostitutas
não seriam desprezíveis criaturas das quais o demônio haveria se apropriado? Bruxas?
Quem sabe não se deveria satanizá-las, como acontecia, mas se poderia até mesmo
amá-las? E que se entendesse que, se havia prostitutas, é porque havia senhores
honrados, de família, mantendo suas fachadas e disfarces, noivos (preservando a
virgindade de suas futuras esposas) e maridos, além de esposas que preferiam
que os seus cônjuges fossem gastar sua chatice, sua falta de imaginação, em
outros leitos, esses, os respeitáveis, que pagavam por seus serviços. Alencar colocou
tudo isso nessa novela, um dos livros mais corajosos da Literatura Brasileira.
Grande Alencar, ue, entre outras
virtudes, não fugia de polemizar com seus críticos, e que foi precursor de
Machado, o qual reconheceu sua dívida literária ao autor de Lucíola.
Deixe
que raivem os moralistas! (...)
"Sempre
tive horror às reticências; nesta ocasião antes queria desistir do meu
propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto
espesso, que para os severos moralistas da época, aplaca todos os escrúpulos, e
que em minha opinião tem o mesmo efeito da máscara, o de aguçar a curiosidade .
Por isso quando em alguns livros moralíssimos
vejo uma reticência, tremo! Se uma curiosidade ingênua de 15 ou 16 anos passar
por ali, não verá abrir‑se em cada um desses pontinhos o
abismo do desconhecido.
A minha história é imoral; portanto não admite
reticências"
Lucíola, de José de Alencar
Se o
espírito de Alencar ao escrever Senhora e
Lucíola, ou a ousadia de Machado, ao
compor tantos e tantos personagens femininos que desafiavam a época, inclusive
sua Capitu, prevalecessem, não teríamos tantos problemas para atrair leitores.
Mas,
será pecado, escrever sobre o pecado?
Possivelmente.
Lembrem exemplos como o de Madame Bovary, que se apaixonou pela paixão, na
leitura de tantos e tantos romances, e a tal ponto que se tornou adúltera. Lembrem
que Flaubert foi levado a julgamento pelo dano
que causara à moral por escrever Madame Bovary. O pecado contamina.
O diabo e suas tentações. Cristo resistiu, mas não Madame Bovary (nem Anna
Karenina, de Tolstoi; nem Luísa, em O
primo Basílio, de Eça). E Deus,
onipotente, pode não prevenir os males da leitura de Literatura, às vezes
chamada de enfermidade bovaryana, mas
que também havia afetado D. Quixote –
que de tanto ler novelas de cavalaria, contaminado foi, enlouqueceu: resolveu se tornar ele próprio um cavaleiro andante
num tempo em que já não existia a cavalaria andante. E, no final, ao recuperar
a sanidade, morre!
Como Odisseu, que desceu ao Hades
e lá teve de enfrentar o que havia de mais inumano na imaginação dos gregos, o
terror maior dos gregos, o esquecimento e a escuridão que negavam o que constituía
ser grego no mundo, também D. Quixote teve sua descida - à Caverna de Montesinos. Foi lá seu enfrentamento final
consigo mesmo, contra Frestão, o mago, e o resgate de sua alma. Mas, como
saudar, diante dos puros, a essas criaturas que descem ao (seu) submundo para
se encontrar, e suscitam assim seu apogeu, em vez de, para tal propósito,
ascenderem aos céus? Aos que choram riem
consigo mesmo, ao entregarem-se a um romance, e o tomam para suas vidas?
Vivenciam-no?
E a criação de Cervantes é também
uma obra fundadora. Aquiles, Odisseu, D. Quixote, Drácula, Tom Sawyer e Huck
Finn (pode-se interpretar que foi também para se verem num mundo no qual não
seriam obrigados a irem à missa, e conhecerem as consequências disso, ou seja,
se viria ou não o castigo, que fugiram de casa, todo o bando deles, e fundaram
seu reino aventuresco, numa ilha no Rio Mississipi), como Peter Pan e sua Terra
do Nunca, cuja rota de vôo pede para virar à direita na segunda estrela, depois
sempre em frente; como Alice, e o seu universo revirado; como o mundo-resultado da peraltice
de Emília, privado do Tamanho e no qual as crianças tomaram o poder; e como o
monstro de Frankenstein; todos eles prescindem
de Deus para nos chegar ao espírito, e sequestram- nos o espírito; os romances
nos engolem, sumimos dentro deles nos momentos de êxtase/leitura; e graças ou
por culpa, entre outros sortilégios, de aberrações para as quais seus criadores,
seres humanos, não deveriam ter o poder de criar vida, mas o roubaram dos céus,
como um Prometeu contemporâneo, a esse mesmo dom da vida, para os tornarem,
seus personagens, seres, criaturas semelhantes a nós, e metaforicamente vivas.
Blasfêmias. Abençoadas
blasfêmias.
Causam dúvidas sobre a existência
de Deus, não só esses triunfos da Literatura – ao recriar a vida (e ao recriar
no leitor o sentimento da vivência da vida: o amor e o ódio aos personagens,
por exemplo; ou o medo à trama e ao monstro)... –, mas também essa nossa fragilidade diante da
contaminação literária.
Como um vampiro. Que quando suga
o sangue de suas vítimas e as faz beber o fluido maligno, enegrecido, que corre
putrefato em suas veias e artérias, as corrompe, extirpa a virtude, dos mais recatados, a
bondade, dos mais bondosos e tementes, e faz com que todos virem abominações
demoníacas, como ele. Signos de nossa fascinação pelo irracional e do quanto o necessitamos para nos
vermos mais intimamente. Espelhos, como o retrato de Dorian Gray. Assombrações
que nos arrastam para a entrega, para “paixões que nunca tiveram fim”, como
Carhy arrastou Heathcliff em O morro dos ventos uivantes.
Sim. A solidão
inerente ao nosso espírito fica mais intensa e amarga num mundo privado de
deus. E de Verdades. Mas... Deus existe? Onde está que não toma providências
quanto à infâmia que nos cerca? Também não é essa a polêmica, a clandestina
pergunta subjacente a tanta Literatura? Como Zeus, que instituiu o Cosmos
(ordem) contra o caos de Cronos, não pode também triunfar sobre a vilania mundana?
Daí, evocamos mundos, universos e
vivências em paralelo ao mundo temente, nos
quais, na batalha dos deuses contra os titãs, Cronos, e não Zeus, pode ter
triunfado. Ou em que os deuses foram destronados.
Talvez isso se deva ao capricho
das musas, que dotaram a Literatura de algo
além da Verdade – quando era tão somente a Verdade que pretendiam os deuses
que os humanos conhecessem. Mas
confessaram, elas, as musas, a Hesíodo, em Teogonia,
que se tinham o poder de trazer aos mortais a Revelação (Alethea), o conhecimento do que era divino, as mensagens dos
deuses, também podiam lhes transmitir a outra coisa (Pseudea); e ensiná-los a mentir. A ficcionalizar? E é assim que Aristóteles
louva Homero:
Homero
foi o grande mestre dos demais poetas
em
dizer falsidades como se deve.
Aristóteles,
Poética, 1460a 18-19
A Poética de Aristóteles tem um herói, um
protagonista; é esse Homero que duvidou da verdade dos deuses, ao imitar a vida, ao transcendê-la, ao
fundar-lhe inéditas Dimensão e Cosmologia, ao dotar a Literatura de seu Era uma vez , de seu Abre-te Sésamo, de seu Alf
Layla wa-Layla (1001 Noites, ou Infinitas
noites), do seu Faz de Conta e do seu
... Pirlimpimpim! Que desenvolveu ao máximo, em seu tempo, a arte de dizer
falsidades que despertavam emoções verdadeiras: A Literatura.
Teríamos melhores chances de
democratizar a Literatura, de disseminar a Literatura, sem censores que se
interpusessem como barreira/obstáculo/intermediários entre o autor e o leitor,
se investíssemos mais decididamente nesse atributo de verossimilhança da
Literatura. Que os leitores decidissem o
que vai ser lido ou não. Que a Literatura contemplasse a infinita variedade, a diversidade
de indivíduos-leitores, e não fosse submetida a fôrmas, objetivos pedagógicos, doutrinações
políticas, e outras ocas funções sociais
e parâmetros. Que não fosse usada como mala (sem alça) para conter propaganda
nem partidária, nem religiosa, nem cívica, nem nenhuma outra. Que fosse plenamente
uma Literatura do Encantamento.
Retomando...
O que isso tem a ver com as inquietudes sobre a existência de Deus, não sei, ao
certo, não tenho certeza. Será mesmo que se receie a possibilidade de imiscuir-se,
invisível, num rompante literário, o Outro, o Adversário, o Mal, Satanás ou
afins? Que se anteveja num romance ou conto ou poema a possibilidade da vitória
da tentação?
As 1001 noites foram compostas por nômades, os que percorrem
os desertos, e adoram, não, deuses em altares fixos, mas as estrelas, ou constelações. As estrelas, em
comunhão com os beduínos, têm um percurso nos céus. Para os nômades, os oásis
(em árabe: “o lugar onde o camelo se
ajoelha”) eram vitais. Era onde renovavam seus estoques de tâmaras e de
água. Mas os donos dos oásis eram djins (ou ifrites, ou gênios). E djins são
caprichosos. Ao surpreenderem um ser humano, podem se apaixonar por ele e
sequestrarem-no (para suas cavernas sob os oásis), ou podem devorá-los. Para
aplacar os djins, e dar algo em troca por estarem invadindo seus domínios, os guardiãs
da tradição das tribos nômades contavam histórias à volta das fogueiras, à
noite. Histórias que, no que os beduínos visitavam as cidades, misturavam-se ao
alarido dos enormes suks (mercados). Foram
essas histórias que Sherazade recontou ao sultão Xariar, o homicida recalcado. Aquele
que não conseguia superar o fato de ter sido “traído” pela esposa. Mais um que
era menos homem do que ela, Sherazade, era mulher. Essas histórias tinham de
ser poderosas, sedutoras, sensualíssimas, gastronômicas e fabulosas.
Miraculosas. Capazes de extirpar a
loucura do sultão, ou ele mandaria cortar a cabeça da jovem persa das noites árabes. Essas histórias, que existiam muito antes de Alah ter sido
inserido entre um parágrafo e outro (já então nas versões escritas), eram pagãs
em sua origem. Não havia Deus nesse
mundo. E mesmo Sua introdução, em remendos, não suprimiu o
encanto que trouxeram do murmúrio das dunas dos desertos e da penumbra das
vielas dos suks.
Mundos
onde entrevemos, pressentimos, que não haja o pressuposto da existência de Deus
são muitos, são quase “a” Literatura. Até porque Deus seria uma solução monocórdia,
fácil, previsível, se fosse aplicado com frequência. Vira e mexe, desceria no
final e resolvia tudo. Ex-machina. E assim desmilinguiam-se todas as tramas.
Bastaria sempre pedir um milagre e os personagens seriam atendidos.
Considerem Sherlock Holmes,
aquele que se declarou, sem a menor cerimônia, ignorante em Astronomia,
por que a matéria não interferia em seu trabalho. Ele aceitaria tal intromissão
em seus embates com o pérfido Moriarty? Jamais. Antes disso, quanto mais ele,
pediria seu boné. Hercule Poirot, de
Agatha Christie – esse então! -, diante
de uma ameaça dessas de alguém, mesmo que fosse Deus, lhe roubar a cena final, justamente
quando suas pequenas células cinzentas podem exibir todo o seu brilho, arrancaria
seus adorados bigodes.
Há quem se ressinta dessa omissão. No entanto, a Literatura é
feita também dessas súplicas de milagres
que são ignoradas. Pedir um milagre é uma aposta mais alta, um risco maior do
que a Fé. A Fé pode mover montanhas, contanto que sejam montanhas espirituais. Pode
existir sem provas, sem testes. O milagre é o teste. É o pedido direto da
intervenção de Deus num episódio agudo, cruciante, do cotidiano. Se o pedido
fica sem resposta... então a fé estremece; em contrapartida, a trama cresce.
Daí, muitos, não podendo obter
milagres no cotidiano, consideram seu cotidiano um ou vários milagres. E dão
graças por isso. Como disse: são felizes. Desde que não extrapolem seus pedidos.
Portanto, que chamem o Inimigo do
Bem como quiserem, ou que desconheçam a necessidade de sua presença na
Literatura aqueles que não o têm como representação de alguns de nossos maiores
temores.
Até, por exemplo, o medo de que o
Mal possa contaminar o Bem, como o Drácula contamina Mina Harker.
A boa esposa de Jonathan Harker, numa
súplica desesperada, pergunta em voz alta – para quem? uma prece? – o que
adiantou ter se mantido virtuosa, temente a Deus, para ser infectada daquela
forma rudimentar (algo sensual?) – uma mordida no pescoço – por um ser das
trevas. Para se tornar sua escrava, em todos os sentidos. Aliás, que trevas
seriam essas, se não as mais recônditas, as mais renegadas, ocultadas e condenadas
pulsões do nosso espírito/mente, como preconizaria Freud décadas depois? Seria
o mal também uma criatura do ser humano, à sua imagem e semelhança, como os
deuses...?
E não esquecer que o mal, como prega
Henry James, será ainda mais devastador,
impactante, se o escritor (blasfemo) o fizer brotar da inocência, como das duas belíssimas
criancinhas de A volta do parafuso (1898).
Que Deus está pressuposto, num mundo em que crianças são possuídas por
espíritos pervertidos que pretendem reencarnar nelas para poderem assim,
corporalmente, retomar sua devassidão? Ou como na novela de Stephen King, Cemitério maldito (Pet Semitery), em que até um bebê se torna um ressurecto maligno e
mata a própria mãe? Ou em O iluminado (que
recentemente ganhou sua continuação a história da vida adulta do garotinho que
tinha a capacidade de enxergar o Mal, em Doutor
Sonho), onde o pai tenta trucidar o filho a machadadas?
Enfim, se a Literatura de Terror
nos faz vivenciar situações em que o Mal corrompe o Bem, onde está Deus nessas
obras? Se o Mal também pode se confundir com o Bem [compartilhar as mesmas mente & alma, como em O médico e o Monstro (1886), de Robert
Louis Stevenson, e nos contos de Edgar Allan Poe – 1809-1849], se pode também constituir-se
“à imagem e semelhança” de seu criador (o ser humano, no caso), teremos mais
motivos de dúvida e de inquietudes. Por exemplo, Hamlet e seu fascinante desvario,
motivado pelo pedido de vingança do fantasma de seu pai, e que ocasiona o
extermínio de praticamente todos os personagens da peça – seria ou não seria a
afirmação da arte para além do Bem e do Mal? Onde, nesse desolador monumento da Literatura
Ocidental, há brechas para a
presença/intervenção clemente e compassiva de Deus?
Mas, Deus, ou os deuses,
com o atributo da onipresença, deveriam estar em todos os lugares. Têm
de estar. É a Fé. Onde intervêm, então, na Londres de Holmes e Watson (em que
Jack estripou suas vítimas, todas mulheres indefesas)? Na Baker Street 221B, ou
no cometa 67P, onde se descobriu vida, ou mesmo nas florestas habitadas
por lobos maus e bruxas devoradoras de crianças abandonadas pelos pais, que
atraem suas vítimas usando como arapuca casinhas feitas de doces?
Muita Literatura questiona a
existência de Deus. E não poderia existir como Literatura, se fugisse à
polêmica. E, sim, pode deixar leitores
inquietos quanto a essa questão, à deriva, ao léu, permitindo que a dúvida se
infiltre em seus pesadelos, se ele sentir-se num mundo sem Deus, ou mesmo imaginar
um mundo sem deus.
Como em O cair da noite, de Isaac
Asimov (1941). No conto, os habitantes de determinado mundo viviam sempre sob a
luz de um dos tantos sóis em torno dos quais a órbita excêntrica do planeta os
conduzia. Desconheciam a escuridão da noite. A rigor, não havia noite. E toda a visão de mundo, a
coerência e o autoconhecimento de cada um se baseava num universo sem
mistérios, às claras, delimitado, rolando de sol a sol conhecido, reduzido a um
percurso, como o itinerário de uma linha de metrô, com seus trens sobre trilhos. Nunca havia uma visão dos céus
inescrutáveis. Exceto uma única vez, a cada 1000 anos (se não em engano, era
esse o intervalo, um milênio), em que aquela mesma órbita excêntrica os fazia
mergulhar por um curto período na escuridão. Então, viam estrelas. As bilhões de estrelas, o
infinito de galáxias. E se davam conta do tamanho, da imensidão do universo. E
enlouqueciam. Toda uma civilização. Enlouquecida. Destruía-se.
Como se um leitor de repente
piscasse e se visse num mundo sem deus, transportado a tanto por um apelo, sem
resposta, do desesperado Edmund Dantés,
pedindo um milagre para salvá-lo da injusta prisão por falsas acusações, como
resultado de sórdidas tramas e traições de amigos. Dantés foi atirado num mundo sem deus. E é
privado de deus que emerge dali, de seu subterrâneo,
para sua impiedosa vingança.
Para tais vivências nos leva a
mais requintada Literatura. Há perigo, de fato.
Assim, a questão subliminar à
Literatura desde a sua fundação continua potente.
No
entanto...
Mesmo sendo escritor, tenho
alguma noção do perigo. Não quero ser demonizado, apontado como blasfemo,
marqueteiro do demo, difusor do mal; não quero que meus livros sejam proibidos
em determinadas escolas, não quero ser vetado em compras governamentais, nem
olhado com desconfiança por certas editoras. Assim, cabe aqui uma declaração, e
é sincera. Creio em Deus. Não sei como ele é, nem o que é, mas o sinto, dentro
de mim e ao meu redor, no mundo, em momentos de amor, do amor que a gente dá e
recebe. E há tantos momentos assim. Quando estamos com nossos leitores, por exemplo, ou com professores heroicos,
apaixonados pela Literatura, e com os tantos que lutam para que o ser humano se
desenvolva e atinja o plano da fraternidade, da comunhão com seus
semelhantes. Creio nesse Deus, que não
sei em que panteão está. Eu o sinto. Mas não pretendo nem sou capaz de
convencer ninguém da existência dele. Muito menos com minha Literatura. Trata-se
de um sentimento íntimo, como escreveu, para outro fim e contexto, um
anjo, Machado de Assis. Aliás, só para constar, meu apartamento é habitado e
mesmo repleto de anjos. Creio em anjos, não sei por quê, mas, desde que os
conheci, creio em anjos.
Só que
isso não me impede de sentir também, por vezes, o abandono. A
solidão cósmica. O desespero. O torpor, a impotência diante do desamor.A incompreensão
diante da chacina de inocentes. O inconformismo contra a violência que sofrem. Contra as diversas
maneiras de hediondez. Contra a miséria,
a fome e a ignorância. Minha fé nesse deus não me leva a acreditar em dogmas,
nem na necessidade de defendê-los. Pelo contrário, me leva à opção por
combatê-los.
Não apenas a aceitar, mas também a
provocar e estimular a polêmica. A rejeitar a censura como um crime contra o
Humanismo, a inteligência, o desenvolvimento do ser humano, a Humanidade e a
humanização da vida. A amar a Literatura como uma das mais belas criações do
ser humano, aquela que pode pôr espírito (ou alma) em contato com outro
espírito (ou alma), que então se mostram – vindo do ser humano e para o ser humano, do ser humano para a natureza – à imagem e
semelhança de Deus.
Afinal ...
A beleza de uma metáfora está na
sua liberdade.
Quem ama a metáfora não a aprisiona.
Não a explica, nem a dissolve,
nem tem como fito único resolvê-la.
Quem teme a metáfora, busca
contê-la.
Quem a ama, cultua-a, e assim ela
se prolifera.
Segredos de liquidificador.
A metáfora seria “metamorfose
ambulante”, antítese da Verdade, enquanto atributo divino, e das
interpretações preexistentes, anteriores à leitura, das assertivas fossilizadas,
dos clichês (de raciocínio, inclusive) e do autoritarismo.
A metáfora é mais do que radical,
é revolucionária.
Como se fosse um cometa, a
polinizar a vida, não em um planeta pré-determinado – um cometa, quando se
solta de seu aglutinado de pedras de gelo, nunca sabe onde vai cair, e nem
mesmo se algum dia vai cairá em algum planeta. Nem por isso se pode negar que
ele, assim com o CP 27 e milhões de outros, esteja impregnado da magia da Criação.
Quando eu era criança. Era mais
ou menos pecado perguntar se havia planetas fora do Sistema Solar. Como se
nos indagássemos se havia algo fora da alçada de Deus. Hoje,
conhecemos... 10 mill exoplanetas? E como estaremos em mais um século, se o
fanatismo e o obscurantismo não nos abduzir? Talvez, perguntando...
Alguém nos escuta aí em cima?
Deus existe?
Existem os deuses?
Trata-se de uma indagação que, só
por ser feita, causa polêmica. Há quem a
proíba. Tanto ou mais quanto deflagra polêmica discutir a censura à Literatura que
dá expressão a essa inquietude.
Mas, que tal arriscar fazê-lo?
Podemos nos encantar com as veredas do tema.
Podem duas onipotências sobrepor-se? Uma e somente uma
já não preencheria todo o Cosmos, e portanto necessitando ser única?
Podem duas onipotências ocuparem o mesmo Cosmos? Que potência teria uma diante da Outra
(Onipotência)? Pode uma contrapor-se à outra? Contrariar a outra? Pode um autor
escrever (Revelar... ? Como Prometeu fez com o fogo) algo, contrariando
a vontade (ou capricho, ou determinação) de Deus? Pode dispor de seus personagens
e história e enredo, sob a tutela de uma Onipotência externa? Enfim... A
Literatura desmente a onipotência de Deus, e a ele próprio como entidade
máxima? Ora, não podendo duas potências serem Absolutas e Únicas
no mesmo recorte do multiverso, suponhamos... ou a Literatura – e a Onipotência
do Autor sobre o que acontece na história, enredo e personagens – está fora do
arbítrio de Deus, existe onde Deus não existe; ou há que se negar uma das duas,
atribuir-lhes inexistência, seja ao autor, que não seria autor então de suas
obras, mas intermediário (como Homero, das musas), seja a Deus ou aos deuses. Os
devotos não temem por nada a Literatura livre de censuras. Até porque a
Literatura, ao contrário da Fé, rejeita a Verdade, a única, onipotente. E são
essas algumas das imensas dificuldades de alguém, a mesma pessoa, amar a Literatura (sua autonomia e poder de
criar realidades) e devotar-se a Deus. Seriam duas entregas exigentes e
desmensuradas em demasia, a ponto de não caberem numa única e mesma pessoa. Ou
não?
Ah...
A delirante vontade de voltar atrás no
tempo, refazer o mal feito, ou de ter vidas sobressalentes para poder, numa, plantar couves, e noutra, embarcar em tapetes
voadores. Ah, como é doloroso arrancar do peito miragens que se aferram lá com
pinças de escorpião... Como sangra, deixar para trás uma tentação! Sinto certa
empatia pela frustração de Aquiles, o quase-deus, sua
insurgência, e isso por ter lido Ilíada. Obrigado, Homero.