terça-feira, 23 de julho de 2024

 

SOBRE UNIVERSOS E UNIVERSALIDADE DA LITERATURA

 

                                                            Luiz Antonio Aguiar

                     

 








 

A Literatura em Perigo

Tzvetan Todorov

 

 

Conceição Evaristo escreveu seus contos dilacerantes, Olhos d’Água, elencando como protagonistas, em absoluto primeiro plano, personagens femininos, pretos e pardos, moradores de comunidades e periferias, humildes, humilhados, oprimidos. Mas, seus enredos se proliferam para além desses universos, e celebram igualmente o drama – ou a tragédia – humana. Há quem não suporte lê-los, tamanha a dor que goteja dessas linhas. Ao mesmo tempo, lê-los é experimentar outros olhos, é vivenciar uma dor secular – neste país em que o racismo, a misoginia e o desdém pelos pobres predominam, e têm guarida os que prefeririam não vê-los, que não existissem, e que dispensam os personagens de Evaristo para lembrar-lhes de seu delírio intolerante.




 

 Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida.

...

Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

 

               Lê-los é também enxergar a Universalidade (humana) desses personagens e dramas, um mergulho em sentimentos submersos e indeléveis. Algo que pode nos fazer sublinhar o que Todorov destaca como o(s) tema(s) central(is) da Literatura.

               De certo modo, Machado de Assis cometeu a mesma reviravolta na cena literária, mais de um século e meio atrás, e isso elevou nossa Literatura, permitindo que decolasse da estreiteza exótica, pitoresca – que tanto agradava ao colonizador – e trazendo o drama humano universal, em suas facetas, para nosso ambiente, ao mesmo tempo que fazia seus personagens descarnarem, à semelhança dos dilemas e conflitos que movimentam as peças de Shakespeare, ou outros do panteão  dos gênios planetários da Literatura.

               Assim, amasiando galhofa e melancolia, como um tempero/viés, só nosso, local, de ver o mundo (no caso da Europa, do mundo mais avançado, vê-lo de esguelha, todo ironia), no que Hamlet proclama que ninguém retorna do País Não-Descoberto, Machado traz de volta da tumba Braz Cubas, para nos narrar o mundo com seus lábios mordiscados pelo primeiro verme. Se Otello assassina Desdêmona por conta de seus destemperos de mouro – o que estabelece Shakespeare, que se valia como estratégia de composição dos preconceitos de sua época e mundo (quem se atreve a cancelá-lo?) –,  Bento Santiago é mais radical ainda, num modo cortês-tropical, no cancelamento de Capitu; aqui e lá sofrem (e sofremos) as delícias do amor e os tormentos do ciúme. Chamar Machado de realista, ou mesmo de cronista da história de seu tempo, é negar-lhe a transcendência, o que ele oferece além. Mesmo que seja de além-túmulo.

               Bento Santiago tem ímpetos/impulsos (mouros?) brasileiros e submundistas, que lutam com uma roupagem/ostentação de serem europeus implantados no Rio de Janeiro 40º C para se diferenciarem da horda de pretos/escravos e da ralé dos cortiços que cercavam o parisianismo da Rua do Ouvidor. 

               Já pulando para o século XX, Graciliano Ramos faz um predador-grileiro de terras brutas como Paulo Honório rasgar sua alma para nos defrontar com a mais absoluta e aterradora solidão que um ser humano pode construir para si mesmo (não que muitos personagens de Machado tenham se poupado de chafurdar no mesmo lodaçal). Guimarães Rosa, em seu metafísico A terceira margem do rio, e em outros contos, também traz imagens do que seria a (alma) saga humana, em sertões ignotos, perdidos. São personagens e romances “regionais”, mas com um estofo lírico-universal imenso e superior, para quiser descobri-los (desvendá-los).

               E isso para ficarmos somente em autores nacionais, sem nos arriscarmos à desolação de um Príncipe Michin, aos horrores (como se fúrias gregas o perseguissem) da culpa de um Raskolnikov (O idiota  e Crime e Castigo, respectivamente, de Dostoiévski), do amor, esse que nasce a contragosto, lutando para se desprender de idiossincrasias sociais e elitismos, de Elisabeth e Mr. Darcy (Orgulho e preconceito, Jane Austen), do sombrio Capitão Ahab, que persegue a morte, ou do inexplicável e desnorteante Bartleby – esses personagens que nos confrontam com nossa incompetência/incapacidade de compreender o que está fora do script ordinário - (Moby Dick e Bartleby, Herman Melville), e mais... da dor homicida de Medeia, a de Eurípides (ah, suportar a dor, num tempo de marketing dos sorrisos... queria ousar parodiar Fernando Pessoa e escrever que nunca vi quem postasse uma foto, desfeito em lágrimas, maquiagem borrada, no Instagram) ... Enfim, três mil anos.

               ISSO É LITERATURA (isso e muito mais coisa; generosa Literatura, universal, fraternal, humanista, iluminista e planetária, que tem um tanto de si para cada um de nós). Este legado – o drama humano -, a capacidade de nos levar em excursão perigosa por intimidades que na vida cotidiana, no dia a dia, não vislumbramos. Talvez porque ninguém ande na rua, nem vá ao trabalho, com a alma à vista – e talvez porque haja até mesmo os que, em relacionamentos mais próximos, familiares que sejam, não a revelem. Mas, na Literatura que se apropria de sua herança de três mil anos, lá está; e basta abrir um livro, basta conhecer Ana Davenga, Sorôco, sua mãe e sua filha, e todos os do vilarejo,  Pai & Filho & Canoa no Rio, Braz Cubas, Bentinho, Capitu, Paulo Honório...

               É uma Literatura perturbadora ...  (como a obsessão desvairada de Heathcliff por sua Catherine, em O morro dos ventos uivantes, de Emily Bronte – ler esse romance é como contaminar-se de uma paixão insana!)....  Não cabe em livros-frasistas/legendados, em alegorias planas, mas não é desafeta inclusive de públicos ariscos. Não é à toa que um Bartolomeu Campos de Queiroz (Indez, um dos livros que me levou a  querer escrever), Lygia Bojunga Nunes (Nós três, Meu amigo Pintor – e os desatinos do amor, do desapego à vida) e Ana Maria Machado (mesmo em seu aparentemente inocente Beto, o carneiro, que busca a si mesmo com uma determinação de quem sonha tornar-se apanhador no campo de centeio) são considerados livros para crianças ou jovens, quando são isso e mais muita coisa, no que enveredam (Grande Sertões) pelos domínios humanos, os quais os sorrisos patenteados, a auto-glorificação e a sabedoria protegida por máscaras de serenidade, que pretendem tornar maciçamente (maçante, previsível, depurada) fácil e feliz a vida, não comportam. Há mesmo uma tendência de chamar essas máximas, esse trivial aconselhamento sobre o trivial, de existencialismo, num profano reducionismo da denominação de uma questionadora escola filosófica do século XX (Viva Sartre e sua maneira de amar que valia a pen, dele e da sua eterna  Simone de Beauvoir!). Nem muito menos a mania de nos protegermos na coisa distante, antepassada, que fecha os olhos para o presente conturbado, que oferece caminhos anestesiados e não-aderentes para se contornar o nosso âmago – universal e perene, sempre namoricando a Infinitude!

               O que coloca A Literatura em perigo é a tendência corrente a se valorizar, promover, comprar, privilegiar a parte da literatura que sabe o que não deve cutucar para evitar de ser censurada – dócil à regulação predominante e ao conservadorismo, asséptica, sem odores nem dejetos e fluidos humanos... e também privada de paixão, daquela paixão que nos desequilibra no mundo. Que nos renova.

               Esse é o XPTO do problema.

Literatura apaixonada renova!

 

                               


 

 

               ... E paixão tanto por outro ser humano quanto por uma causa política, um trabalho, um ofício... Pessoas apaixonadas são mais difíceis de se lidar. Com frequência, investem contra moinhos e fazem de uma cuidadora de porcos do vilarejo uma Senhora Dulcineia del Toboso – como somente um perturbado o faria - , com a mesma arte com que as crianças de Evaristo nos comovem as vísceras ao, na falta de comida na panela,  coroarem sua Rainha. É uma cena de fazer os olhos se encherem d’água.

               E isso, PARA MIM, é o que é Literatura. 

               #minhapatriaéaliteratura   !




domingo, 14 de julho de 2024

IR AONDE O LEITOR ESTÁ ... 
Luiz Antonio Aguiar


(Uma preocupação, uma proposta, um Manifesto)






Em 1873, Machado de Assis escreveu o polêmico (na época e ainda hoje)  ensaio “Instinto de Nacionalidade”. Numa passagem que todos repetem, mas pouco se aprofunda dela e pouco se aproveita sua atualidade, propõe: “Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

Em muitos aspectos, salvo lindas exceções, a Literatura Brasileira ainda se oferece como vitrina de uma identidade nacional exacerbada pelo exótico, pelo pitoresco, pelo ancestral, em vez de buscar ir ao encontro de seu leitor – que participa de uma cultura planetária, viajando na velocidade da luz, ávida de presente e futuro.

Os dilemas e conflitos desse leitor, especialmente os jovens, seu espírito, sentimentos, se aventuram numa miríade de influências que escapam em muito às doutrinas oficiais que a empobrecem, mas que se harmonizariam belamente com uma Literatura generosa que prezasse e buscasse analisar e entender o que ele gosta de ler, em vez de impor o que, na opinião dos reguladores e nos limites estreitos da oferta, ele tem de ler.

Há maneiras amistosas de acessar os clássicos para os leitores, especialmente, de novo, os jovens, que já por sua conta correm para Jane Austen, Robert Louis Stevenson, Dumas, Verne, Conan Doyle e Agatha Christie, e que poderiam descobrir um Machado atual, que expõe nosso racismo estrutural, nossa misoginia atávica, nosso conservadorismo corrosivo. Ou um Lima Barreto, um Alencar, um João do Rio. Há uma universalidade e um patrimônio de três milênios na Literatura que é ocultado por essas tendências meio-leitoras.

Há, ainda, um universo multifacetado de influências culturais no fabulário árabe, judaico, italiano, alemão, oriental, para não falar na Mitologia Grega, que são tributários dominantes nesse cadinho hospitaleiro que é a cultura brasileira – e que não se restringe ao passadismo.



Da crise (e catástrofes) provocada pelas mudanças climáticas, às guerras cada vez mais sangrentas, o flagelo da fome e das epidemias e endemias, impostas pela desumana supremacia política internacional, dos refugiados, ao avanço do conservadorismo, à chacina dos jovens negros e pardos das periferias, o genocídio dos povos indígenas e o ataque cruel a quilombolas, e religiões de matriz afro-brasileira, aos diversos tipos de discriminação ainda e tristemente prevalentes em nossa sociedade, à homofobia e seus recalques derivados, ao obscurantismo (contra o conhecimento e o novo  na cultura) e o negacionismo (contra a ciência, o pensamento, o próprio presente e o futuro), o leitor – mais uma vez, especialmente o jovem - se vê acuado pelos problemas do mundo de hoje, que lança ameaças ao SEU futuro; e nisso a literatura tornada oficinal, à semelhanças da moral e cívica e os estudos de problemas brasileiros, de décadas atrás, não o ampara, nem o acompanha (no sentido de companheirismo, amizade, cúmplice) – como a grande Literatura sempre o fez. O apanhador do campo de centeio, de Sallinger, é um exemplo do que foi a Literatura que se aliou à juventude e ao tempo corrente que ela vivia. Cem anos de solidão  é outro, glorioso! E haveria muitos outros exemplos célebres que poderiam ser citados.

A literatura oficializada prefere um passado ahistórico, provinciano, distante, um placebo, às vezes fantasiado de alegoria de vida real, que se faz de atuante, mas que somente age para entediar os jovens e afastá-los do presente – por mais dignas e inclusivas que sejam as intenções.

Se queremos uma Literatura vital e vigorosa, uma população leitora que saia à busca de livros, em vez de estreitamentos cada vez mais severos e avessos à leitura (da Literatura integrada a nossa vida, parte da convivência familiar, da vida social dos jovens), temos de mudar o parâmetro, o calendário das ambientações e conflitos, suspender a censura que impede que os dilemas da juventude sejam matéria de Literatura, enfim, temos de ir aonde o leitor está





                            SULTANA: mascote da oficina LITERATURA DO ENCANTAMENTO
 


Podemos fazer isso. Temos um quadro de autores suficientemente habilitado a conviver generosamente com a juventude (que amam e acreditam na novidade que representa o modo de vida criado autonomamente por esses jovens) e tornar suas experiências em Literatura... Dotados, enfim, de um certo sentimento íntimo, que torne nossos personagens, histórias e enredos em coisa do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.







quarta-feira, 25 de agosto de 2021

 

O NARRADOR EXCÊNTRICO

Luiz Antonio Aguiar

 

(Sobre Esaú e Jacó e Memorial de Aires: resgatando considerações de monografia apresentada ao Mestrado de Letras PUC-RJ em 1989, artigo no Idéias-JB em 2004, Almanaque Machado de Assis de 2008 e outras, a respeito desses estranhos  romances, últimas Bruxarias Literárias de Machado)

 

 



 

 

 

O Jogo das Advertências

 

 

            Quem está narrando as histórias de Esaú e Jacó[1] e Memorial de Aires?

            Como vimos, é uma pergunta fundamental, em Machado, quando ele utiliza o narrador-personagem. No entanto, nesses dois romances ¾ que são os últimos que ele escreveu ¾ parece que, propositalmente, o Bruxo resolveu criar um labirinto no qual se perdem tanto as convenções do narrador quanto os nossos hábitos de leitura ¾ e tudo isso na surdina, sem alarde, tanto que até hoje pouco se escreveu a esse respeito.

            O jogo começa nas advertências no início dos livros.

 

 

 

ADVERTÊNCIA

Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.

A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último por que?

A hipótese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros, não é natural, salvo se queria obrigar à leitura dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra história, escrita com um pensamento interior e único, através das páginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a pena satisfazê-la? Ele não representou papel eminente neste mundo, percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se. Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez de) para matar o tempo da barca de Petrópolis.

Tal foi a razão de se[2] publicar somente a narrativa. Quanto ao titulo, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a idéia de dar estes dous nomes que o próprio Aires citou uma vez:

ESAÚ E JACÓ

Esaú e Jacó

 

 

 

 

 

ADVERTÊNCIA

Quem me leu Esaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio: "Nos lazeres do ofício escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis." Referia-me ao Conselheiro Aires. Tratando-se agora de imprimir o Memorial, achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889), se for decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões, - pode dar uma narração seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem. Não houve pachorra de a redigir à maneira daquela outra, - nem pachorra, nem habilidade. Vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se aparecer algum dia.

M.de Assis

                                                                       Memorial de Aires

 

 

            Ou será que a primeira pergunta seria: Quem é o autor dessas Advertências? Na primeira, não há assinatura. Na segunda, um “M. de Assis”. Mas, o autor delas seria o escritor Joaquim Maria Machado de Assis?

            Como poderia?

            Temos todos esses pequenos enigmas levantados no texto em si, quase talvez como cortina de fumaça para ocultar o principal. E o principal, o que escapole quase despercebido, é que ambas as advertências foram escritas por alguém que deixa claro que conhece o Conselheiro Aires ¾ diretamente. Ora, Aires é um personagem. Machado de Assis, uma pessoa. Não há plano em que um possa ter sido conhecido, nem amigo do outro. Então, temos o seguinte: nas Advertências, não se trata de uma mensagem do autor ao leitor; a história já começou, a encenação já está em andamento, e o autor das Advertências faz parte dela ¾ é um personagem como Aires.

            Sendo que nem o título ficou de fora do jogo. Não foi, ao que consta, dado pelo escritor Joaquim Maria Machado de Assis, mas por “M. de Assis”, embora este não tenha assinado a primeira Advertência (suponhamos que foi esquecimento e que “M. de Assis” é o autor de ambas), que por sua vez o pegou de uma sugestão do próprio Aires.

            Uma boa brincadeira para aquecer as idéias. Muitas outras surpresas estão por vir.

 

 

O Narrador Excêntrico

 

 

            Havíamos ficado alguns diferentes tipos de narrador, suas atribuições e limites.

            O narrador-personagem não pode entrar no íntimo e nos pensamentos dos demais personagens. Também não pode contar (narrar) cenas nas quais não esteja presente ou as quais alguém não lhe contem.

            Diferente portanto do narrador de terceira pessoa, aquela voz que vê tudo e sabe de tudo, que está sempre presente, embora invisível e sem a consciência dos demais personagens, a quem dirige, o narrador-personagem em primeira pessoa tem os limites em cena dos seus confrades, os demais personagens. É quem confunde as duas vozes, primeira e terceira, geralmente comete um erro de lógica (narrativa), assim percebido pelo leitor que logo estranha e considera a coisa como mal-feita.[3]

            Mas, e se Machado não se tivesse conformado com isso? E se transgredisse essas leis? E se conseguisse criar um super-narrador, ou um narrador excêntrico, com  acesso sempre ao melhor de todos os mundos? Ou seja, com possibilidades de usar tanto os recursos do narrador em terceira pessoa, o invisível, quanto o narrador-personagem de primeira pessoa, o presente em cena? Ou seja, a onisciência e onipresença de um, o tom de confidência, a emoção direta na cena de outro?

            Ora, Esaú e Jacó é uma história ¾ talvez ficção, talvez relato verídico produzido pelo (personagem) diplomata aposentado, o Conselheiro Aires. O Memorial de Aires, como o nome diz, é um diário, já anunciado na primeira Advertência. Então, o Conselheiro Aires deveria ser o narrador-personagem de ambos os livros.

            Ocorre que...

 

Excentricidade 1 è

Natividade, mãe dos gêmeos, vai consultar, no início de Esaú e Jacó , a Cabocla do Morro do Castelo, sobre o futuro dos seus filhos, nascidos havia pouco mais de um ano, os gêmeos Pedro e Paulo ¾ que brigarão por tudo, disputarão tudo um ao outro, e inclusive serão rivais no amor, disputando também a moça Flora ¾ essa é a história básica do romance.

Como consultar uma cabocla seria algo malvisto na época, coisa aliás que um bom católico não deveria fazer, ela não conta nada a ninguém, dividindo esse segredo apenas com Perpétua. 

Na volta, cruzam com o Irmão das Almas, uma figura que recolhia esmolas para os pobres, mas, depois que Natividade ¾ que lhe dá algum dinheiro ¾, se afasta, segue seu caminho e resolve ficar com a esmola para si.

Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão ouviu uma voz débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dous mil-réis... Os dous mil-réis, dizia outra voz menos débil eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e, em segundo lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.

Capítulo III – 3 – A esmola da felicidade

 

 

 

            Ora, como se justificaria, diante das leis da narrativa,  que o Conselheiro Aires soubesse desse subida, ao Morro do Castelo, de Natividade, cuja casa freqüenta, mas sem tanta intimidade assim?

            E principalmente, como poderia saber do desvio de dinheiro praticado pelo Irmão das Almas? Como poderia descrever essas cenas?

            Aqui, está no papel de narrador tradicional em terceira pessoa, onipresente e onisciente.

            A explicação poderia ser, claro, que tudo não passasse de uma ficção criada por Aires. Ocorre que não podemos firmar o pé nessa hipótese porque...

 

 

Excentricidade 2 è

 

            O próprio Machado nos alerta que uma estranheza dessa hipótese, a de O último ser uma narrativa (ficcional) esbarra na excentricidade de o Conselheiro Aires aparecer nela. E aparecer realmente como se não tivesse nada a ver com a voz que narra ...

 

 

 

CAPÍTULO XII ¾ 12 ¾ / ESSE AIRES

Esses Aires que aí aparece conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. Não atribuas tal estado a qualquer propósito. Nem creias que vai nisto um pouco de homenagem à modéstia da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e natural efeito. Apesar dos quarenta anos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de homem. Diplomata de carreira, chegara dias antes do Pacífico, com uma licença de seis meses.

Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a fala brande a cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo. Ainda assim o bigode, que era moço na cor e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio século chegasse. O mesmo faria o cabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um início de calva. Na botoeira uma flor eterna.

Tempo houve, -- foi por ocasião da anterior licença, sendo ele apenas secretário de legação, -- tempo houve em que também ele gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão depressa viu que não era aceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas A questão para ele é que nem as queria à força, nem curava de as persuadir. Não era general para escala à vista, nem para assédios demorados; contentava-se de simples passeios militares, -- longos ou breves, conforme o tempo fosse claro ou turvo. Em suma, extremamente cordato.

 

 

            Uma dissociação dessas entre a criatura que narra e o personagem Aires é de se estranhar, sim. Por que essa encenação toda, se estivesse contando suas memórias ¾ como o fará no Memorial de Aires? Por outro lado, como explicar a promiscuidade, se memórias fossem, de um narrador em terceira pessoa, como vimos na Excentricidade anterior?

            É como se houvesse aqui dois Aires. Um deles, convive com o drama de Natividade, de Flora, dos gêmeos Pedro e Paulo, conhece-os, freqüenta a casa; outro, o que está fora das cenas e nos conta a história. É mais um capricho o fato de esse narrador  e personagem não confessar seu duplo papel, o que é de praxe na Literatura ¾  narra a si mesmo não como eu, mas como ele.

            Pelo menos até agora.

É, ainda, como se fossem diferentes planos de realidade, um saindo do outro, como um jogo de cubos que se encaixam. Num plano de realidade, a de nós, leitores, temos Joaquim Maria Machado de Assis, que criou essa história toda. Em outro, embutido no primeiro, temos o autor das advertências, que é legatário dos cadernos de Aires, a quem conhecia, e que conviveu com esse Aires que está contando a história: “M. de Assis”.Sendo que este, por vezes, como que sai da pele de Aires, converte-se em outra criatura, algo como um Não-Aires, e relata episódios em que o Conselheiro Aires atua como personagem.[4] Noutro plano, subseqüente, já temos um Aires personagem, convivendo com os demais personagens de Esaú e Jacó. E fica sem solução possível (mais uma narrativa contada no gume da lâmina, com precisão e sem oscilação perceptível nem para um lado nem para outro ) se temos aqui um relato de algo que testemunhou ou se uma obra sua de ficção, desse Aires, que o autor das advertência conheceu e que, agora falecido, deixou esses estranhos cadernos, aparentemente para ninguém.

 

 

 

 

è (Joaquim Maria) Machado de Assis + Leitores

                        è “M. de Assis” + Aires/Diplomata Aposentado + Não-Aires

                                               è Aires (personagem) + personagens de EJ e MA

 

 

 

Ainda há mais...

 

Excentricidade 3 è

 

            Isso porque o excêntrico narrador dessa história, na verdade,  não aceita, só porque usou e abusou dos atributos de um narrador oniciente-onipresente, abrir mão da possibilidade de se introduzir como eu, e aos seus sentimentos (o que sempre facilita a empatia do leitor, grande vantagem do narrador-personagem em primeira pessoa), diretamente na narrativa....

 

 

 

CAPÍTULO CVII ¾ 107 ¾ / ESTADO DE SÍTIO

Não há novidade nos enterros. Aquele teve a circunstancia de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte não é outra cousa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista...

(...)

CAPÍTULO CIX ¾ 109 ¾ / AO PÉ DA COVA

Nenhum deles contou o tempo gasto naquele lugar. Sabem só que foi de silêncio, de contemplacão e de saudade. Não digo, para os não vexar agora, mas é possível que chorassem também. Tinham um lenço na mão, enxugavam os olhos; depois com os braços caídos, as mãos prendendo o chapéu, olhavam aparentemente para as flores que cobriam a sepultura, mas na realidade para a criatura que lá estava embaixo.

Enfim, cuidaram de arrancar-se dali, e despedir-se da defunta, não se sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria igual. Como estivessem defronte um do outro, acudiu-lhes a idéia de um aperto de mão por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se e vieram descendo, calados. Antes de chegar ao portão, reduziram à palavra o gesto das mãos feito sobre a cova. Que juravam a conciliação perpétua.

-- Ela nos separou, disse Pedro; agora, que desapareceu, que nos e una.

Paulo confirmou de cabeça.

-- Talvez-morresse para isso mesmo, acrescentou.

Depois, abraçaram-se. Gesto nem palavra traziam ênfase ou afetação; eram simples e sinceros. A sombra de Flora decerto os viu, ouviu e inscreveu aquela promessa de reconciliação nas tábuas da eternidade.

 

 

 

            Aí está, um pesaroso Aires, não podendo conter a emoção, deixa-a transbordar de seu disfarce de narrador ausente da cena e confessa o abalo que sente quando lembra o enterro de Flora. Transforma-se assim, transitoriamente, em um narrador em primeira pessoa pleno. Mas não seguiu nesse tom.

            Logo, outra vez como um narrador que tudo vê, que tudo sabe, um narrador de terceira pessoa onisciente-onipresente, o da Excentricidade 1,  nos conta o diálogo reservado entre os gêmeos, no qual juram amizade mútua dali para frente sob a inspiração da perda de Flora, e que ninguém mais, além dos dois, testemunhou ¾ até porque, produzido por enorme emoção, o acordo firmado será revogado poucas páginas adiante, e Pedro e Paulo voltarão às animosidades de sempre.

           

Assim, Machado perpetrou um assassinato a sangue frio das mais prezadas convenções sobre a narrativa. Tão mais genial porque se trata de um crime perfeito. É preciso ler como uma lupa esse romance e seu par inseparável, Memorial de Aires, para perceber os pulos, os saltos, de uma entidade-narrador para outra. O público que leu o livro na época não percebeu. Os críticos de então também não. E até há poucos anos, nada se comentava a respeito.[5]

Tudo passou e foi emgolido como se não fosse nada de mais. Tanto que Esaú e Jacó e Memorial de Aires não são considerados normalmente grandes romances da Segunda Fase Machadiana, pelo menos não à altura dos três anteriores. Ou então, ainda na linha da depreciação,  se busca analisar estes dois romances apenas pelo que têm de ambientação histórica ¾ a passagem da Monarquia para a República etc... Já houive quem dissesse que a grande virtude desses romances seria o fato de o autor ter com eles rersgatado seu viés mais realista.

E, claro, jamais se ressalta a beleza existencial do Memorial de Aires, em que a fragilidade humana, inclusive a moral, a de caráter, não recebe o inclemente julgamento de MPBC e DC, mas é assumida como a possibilidade ou a carência de todos nós ¾ parece que essa face do Memorial, pressentida por amigos mais íntimos de Machado, na época da publicação, deixou de ser destacada quando escolas de análise mais rígidas, racionalistas e formalistas começaram a predominar nos estudos literários.

Brás Cubas e Bento Santiago são relidos ¾ ou perdoados, ou pelo menos compreendidos, consolados  ¾  pelo Conselheiro Aires. 

É por isso que, assim como D. Casmurro passou 60 anos ocultando seu segredo, parece que Esaú e Jacó e Memorial de Aires também são arcas do tesouro esperando para serem abertas de vez e com muito a nos revelar.

 

 


Apêndice

 

ESAÚ E JACÓ : Há Um Século Guardando Segredos[6]

Luiz Antonio Aguiar

           

Esaú e Jacó, penúltima novela de Machado de Assis, completa um século este ano. Trata-se de uma obra pouquíssimo lida e muito subestimada. Mas, ora, se D. Casmurro levou 60 anos, e precisou do olhar estrangeiro de Helen Caldwell, para começar a nos revelar seus segredos, não se estranha que, a Esaú e Jacó, se tenha permitido dissimular-se em meio às obras de Machado, à espera de sua vez. O enredo ostensivo são as desavenças dos gêmeos Pedro e Paulo, ambos apaixonados pela virginal Flora que, incapaz de  se decidir entre os dois, morre dilacerada pelo dilema amoroso. Logo abaixo dessa superfície romântica, descobre-se uma refinada tessitura que reserva, entre outros segredos, a bizarrice de seu narrador (ou, narradores?) – aquele que conta a história –, o qual troca de pele e cerne repetidamente.

            Na ficção, é mais do que tradicional o narrador com poderes de ver o que os personagens não vêem, de se deslocar para qualquer lugar, ir e voltar no tempo, e de penetrar na alma dos seus personagens. Trata-se de um narrador (onisciente, onipresente) que não está preso à história (não é um personagem), não está no mesmo plano dos personagens –  quase o que o sistema operacional é para os aplicativos.  Os leitores habituaram-se aos volteios deste narrador. Sua presença – comparada a de outros tipos mais exibidos –  é a que menos sentem, apesar de seus super-poderes.  Seus limites? Não é dos mais hábeis em dar à narrativa o tom de confidência-cá-entre-nós (entre ele e o leitor). Isso é especialidade do chamado narrador-personagem: um personagem a quem é dado também contar a história ao leitor, do seu ponto-de-vista. O que este não pode fazer? Como não é super, não pode invadir o pensamento dos seus semelhantes, os demais personagens, nem (é óbvio)  contar cenas às quais nem esteve presente nem recebeu notícia. Via de regra, cada história tem seu tipo de narrador, um único modo narrativo: sem misturas.

            Mas, suponhamos que um narrador cisme de agarrar o melhor de todos os mundos. E vire, caprichosamente e ao sabor de suas conveniências, o tipo de narrador que quiser, quando bem entender. E faça isso repetidamente –  para mostrar que é de propósito, não por descuido, nem equívoco – sem que o leitor se perturbe com essa instabilidade da narrativa. Claro que aqui seria um leitor sem preocupações com a construção narrativa, ou especialistas que dessem mais importância a uma leitura macro da obra do que a pinçar sob a lupa detalhes e momentos de como o truque é feito.  O fato é que o narrador de Esaú e Jacó auto-transmuta-se vezes seguidas, abolindo, para si, as convenções de atributos e de limites dos diferentes modos de narrar.

            A travessura ilusionista começa na Advertência que abre a obra. Alguém relata a descoberta de uma seqüência de livros, no espólio do falecido Conselheiro Aires, que contêm suas memórias. Há ainda um volume que, apesar de intitulado como Último, não tem anteriores nem, aparentemente, ligação com os demais – é Esaú e Jacó.  O escritor Machado de Assis que lançou Esaú e Jacó meses antes de perder a sua amada Carolina é a figura concreta; o Alguém da Advertência é sua sombra. A (nossa) idéia daquele está implícita neste, tanto que o leitor não indaga quem ele é, nem ele cuida de se apresentar. Ora, na Advertência, as ações são sonsamente expressas com orações de sujeitos indeterminados – é um Narrador Indeterminado. Seria plausível que Machado fosse esse Narrador Indeterminado, se este não sugerisse ter convivido com o personagem Conselheiro Aires – portanto existem no mesmo plano, o Narrador Indeterminado também é uma criatura ficcional. Aliás, sua aparição se restringe a estas duas insidiosas páginas.

            Aires é um narrador excêntrico. O Narrador Indeterminado da Advertência não sabe se a história é memória ou uma ficção criada pelo Conselheiro. Na primeira cena, Aires relata um episódio que não presenciou nem do qual lhe falaram a respeito; e, a seguir, devassa o íntimo de um personagem (o Irmão das Almas), no melhor desempenho do narrador (ficcional) super-poderoso. Em outro capítulo (Esse Aires), o narrador (Aires) introduz na história, como se nada tivessem um com o outro, o personagem Aires, reparando que é “um belo tipo de homem”.  As auto-transmutações são muitas, e a mais notável se dá próximo do final, quando os gêmeos, e apenas eles, estão à beira do túmulo de Flora, tendo acabado de enterrá-la, e depois de o narrador revelar o diálogo privado entre os irmãos, no qual selam um acordo de paz (que pouco irá durar), lamenta a tragédia dizendo: “... não recordo este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista...”. Ou seja, Aires escapou para a pele do narrador-personagem, no que o pesar transbordou o limite da isenção do narrador super-poderoso que estaria acima das vicissitudes dos personagens, invisível e acima de tudo ausente.

            Curiosas estripulias temos também na Advertência do Memorial de Aires – o último romance, par inseparável de Esaú e Jacó. Por um lado, evocam-se os volumes de memórias de Aires, anunciados pelo Narrador Indeterminado de Esaú e Jacó; por outro, o perpetrador desta nova Advertência a assina como M.de A. Entretanto, este M.de A. está para Machado de Assis assim como o Borges que em O Aleph é apresentado ao objeto sobrenatural o qual dá nome ao conto está para o escritor Jorge Luís Borges. E note-se que este M.de A. está tão equiparado ao personagem Aires como o Narrador da Advertência anterior. M. de A. e o Narrador Indeterminado mostram-se como o mesmo ser, uma mescla insólita do Autor (físico) com o Narrador Indeterminado, gerando um terceiro, o Narrador-M.de A.

            São, no todo, transgressões quase homicidas contra as convenções de narrar/ler ficção estabelecidas então (e, em boa parte, até hoje), principalmente no viés realista/naturalista da ocasião. Se passam despercebidas, ou, relegadas, há 100 anos, isso se deve à sutileza magistral com que foram praticadas. É que, diferente de parte da prosa atual, Machado não fazia alardes para anunciar seus vôos; nem os mais altos, nem os mais profundos.

 

 



[1] .Na Bíblia, Esaú vende seus direitos de filho primogênito a seu irmão gêmeo, Jacó, por um prato de lentilhas. Esta é uma entre as muitas causas das desavenças entre os dois. No romance de Machado, Pedro e Paulo serão eternos rivais, adversários, competidores, desafetos, inimigos. 

 

[2] Machado cria aqui uma nova categoria sintática, o Sujeito Envenenado. Indeterminado que queira parecer, o agente dessas operações e decisões editoriais, tanto aqui como na Advertência de Memorial de Aires, deveria ser o mesmo, o autor das Advertências. Mas essa criatura, seja quem for,  não assume seus atos, escondendo-se atrás de um “foram lembrados” aqui, e um  “achou-se” ali.

[3] Algo como: Epa! Um personagem-narrador vidente...Ou com outros poderes psíquicos...

[4] Júlio César (100 a.C. – 44 a.C.), general e político de Roma,  fazia o mesmo ao relatar  sua participação nas campanhas de guerra.

[5] Ver artigo em anexo, a seguir: Esaú e Jacó: há um século guardando segredos.

[6]  Caderno Idéias, Jornal do Brasil, 21.08.2004. Baseado em monografia do autor, O poder de narrar, apresentada no Mestrado de Literatura Brasileira da PUC-RJ em 1989.

sábado, 22 de maio de 2021

 





ROTEIRO DA PARTICIPAÇÃO


UFRJ 21 05 2021 Conversa com quem gosta de ensinar.

 

1)      Generosidade da Literatura: o livro não se esgota numa única e singular leitura. Se houvesse UMA única leitura, UMA única interpretação, não seria necessário mais de UM leitor, e o livro estaria esterilizado. CONCLUÍDO. Assim... Cada qual com a sua leitura, sem certo e errado.

2)      Assim, também, é um tanto antiLiteratura essa obsessão por se dizer o que a criança ou o jovem DEVE ler, e nunca se buscar conhecer e entender o que eles QUEREM ler. O que eles querem ler faz parte da Literatura, da generosidade da Literatura, QUE NÃO É UMA;  SÃO VÁRIAS, inclusive a Literatura que a criança e o jovem que está próximo a você QUER LER. Como todo leitor normal, ele lê O QUE QUER LER.

3)      O que vale para a Literatura e para os Leitores vale também para os autores. Não há UMA única e singular Literatura. Cada qual escreve o que quiser, e não estou aqui para dizer o que outros devem escrever.

4)      Mas, o que eu gostaria é de propor uma PAUTA para reflexão de todos os envolvidos nessa ligação entre a Literatura e os Leitores. Uma pauta que pode ou não ser contemplada, e que não e critério para se dizer o que é ou não é Literatura, nem para imposição de leitura de livro algum, de tema algum. É somente uma proposta, em que vou expor MINHAS prioridades.

5)      É preciso antes de tudo ver que estamos atravessando um momento crítico no país. A democracia está em risco. Há a clara intenção de subjugar tanto a cultura, quanto a arte e a ciência a padrões, mais do que autoritários, de extrema direita, fanáticos, tirânicos, perversos e obscurantistas.

6)      A CENSURA é o resultado óbvio disso. Se nós, autores de Literatura para crianças e jovens, desde sempre a enfrentamos, a censura, em algum grau, o que se pretende agora é impor um cercadinho à  Literatura, de maneira a que ela somente trate daquilo que pode favorecer esse projeto ditatorial. Ou seja, uma censura que, mais do que proibir certos temas, imponha temas aos autores e, principalmente, aos leitores.

7)      Esse projeto adota o negacionismo não somente da ciência, mas também da tendência à planetarização da consciência humana, e ainda das tendências mundiais ao aprofundamento da democracia, seja institucional, seja em questões como a do enfrentamento do racismo, em sua forma estrutural – e não somente legal; da desvalorização da mulher, da homofobia, da preservação ecológica da vida.

8)      Resistir a esse negacionismo, repito, fanático, extremista, obscurantista, é portanto uma questão de sobrevivência. Da vida, como vemos no caso do genocídio de mais de já quase 400 mil brasileiros, e que pode a chegar a 1 milhão, até o final do ano, a persistirem as tendências atuais. Mas, também da cultura, do espírito progressista, de todo o processo existencial, humanista, de afirmação da individualidade, da fraternidade, da humanidade e do humanismo, e da Liberdade.

9)      E nesse CONTEXTO de agressão à Liberdade por um lado, e de Resistência, por outro, que proponho esta pauta, como sugestão para temas que a Literatura, especialmente para crianças e jovens, pode abordar. Naturalmente, há que sempre se negociar com a possibilidade, com a viabilidade de qualquer projeto de resistência, dentro da realidade e intenções de cada um.

10)   Como primeiro ponto dessa sugestão de pauta temática, trago a questão do aprofundamento da Democracia, especialmente no Brasil, com ampliação da discussão tanto da proteção às instituições democráticas, quanto ao combate à misoginia, expressa na violência e nas muitas formas de discriminação da mulher, da homofobia, dos atavismos racistas estruturais de nosso provo, da pobreza e do preconceito em relação à pobreza, especialmente às suas vítimas – temos um ministro que reclama que um filho de porteiro possa entrar na faculdade, em vez de louvar seu esforço, sua superação! - , da falta de acesso à informação, ao conhecimento, à arte e à cultura de grande parte da população brasileira,

11)   e até mesmo da discussão franca, sem dissimulações nem disfarces, do lugar que o conservadorismo ocupa na mentalidade e nos costumes de grande parcela de nossa população.

12)   Podemos muito bem participar, em nossos livros, da luta contra as desigualdades sociais que no Brasil se aprofundaram, devido à pandemia e à gestão antipovo da economia. Precisamos combater a ideia de que a miséria, a fome e a exclusão isempre existiram, são irremediáveis.  São eternas e sem solução. Precisamos desnaturalizar as desigualdades em nossa cultura.

13)   A democracia, é claro, se aprofunda também com a  democratização da Literatura no país, coisa que tem sido negada por um lado pela manutenção metódica da deseducação e, por outra, pela precariedade de oportunidades para a maioria do povo brasileiro.

14)   Outra questão para mim, importante, é justamente dar às lutas sociais,o caráter de atualidade. Temos os povos tradicionais brasileiros, indígenas e quilombolas, sob a ameaça  de genocídio; temos os negros , no país, sob massacre constante, principalmente os jovens, nas comunidades, e os negros, de maneira geral, ainda sob o impacto de um antirracismo estrutural, do qual, desgraçadamente, parcelas significativas de nossa população se recusa a tomar consciência. Enfim, proponho dar  espaço, não somente, para a cultura tradicional das etnias que compõem nosso povo, mas para seu momento atual, no país e de integração com o mundo.  Enfim, assumir o antirracismo e a reversão das discriminações étnicas como um tema LITERÁRIO.

15)   Vamos lembrar que, a partir do assassinato de George Floyd, nos EUA, uma palavra de ordem despertou quase imediatamente movimentos antirracistas no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Foi a primeira vez, desde a Revolta da Juventude, dos anos 1960, que o mundo inteiro se uniu de novo, numa única luta.

16)   A questão étnica se mostrou para uma maioria, até então alheia a isso, como luta!   

17)   Vamos lembrar, ainda, que bem aqui do lado, o Chile, graças à intervenção combativa das mulheres chilenas, o país está removendo, da Constituição chilena,  finalmente, o restolho  fascista e antipopular que veio de 1973, da mais sangrenta ditadura da América Latina, os anos ferozes do general Augusto Pinochet, postos abaixo pelo movimento feminino, por protestos de ruas, por um povo que é politizado e consciente porque é culto, instruído.

18)   Só um povo assim imporia uma paridade de representação entre homens e mulheres, como na Constituinte chilena.

19)   Enfim, ainda como tema, temos, crucialmente a questão de uma Fraternidade Planetária Humanista e Democrática se formando. Nos referirmos a esse mundialismo das questões, que já não são tratadas nem isoladamente, em cada país, e que se tornam mundiais, graças à tecnologia, quase que em tempo real. O planetarismo, a união de lutas é um tema lindo inspirado em nossa atualidade.

20)    Nunca foi tão possível de ser incorporada à nossa percepção de mundo o verso de John Donne: “Nenhum homem é uma ilha!”.

21)   Hoje, ser progressista é ser solidário: com os refugiados, com as crianças expelidas de seus lares, em todo o mundo, com as lutas antirracistas, pelos direitos das mulheres, contra a homofobia, contra todo tipo de desumanização da pessoa, contra as perseguições religiosas, étnicas e culturais, seja onde for da Terra. Contra a devastação  da natureza, em nome da nossa sobrevivência e de nossos filhos e netos.

22)   Nossa INTEGRAÇÃO cada vez maior ao mundo é um importante passo para as mudanças que nosso povo tanto precisa. 

23)   Todas as lutas importantes hoje são planetárias. A perspectiva da universalização é fundamental para uma nova visão de mundo. E que vai trazer suas contradições, suas dificuldades, conflitos, contradições. É tema LITERÁRIO!

24)   Assim como é tema LITERÁRIO o futuro. Mais ainda, um presente que tenha desejos e ambições voltados para o futuro.

25)   Enquanto as forças reacionárias neste país tentam voltar atrás nas conquistas sociais e mentalidades, num passadismo delirante que só poderá triunfar à força – já que, do outro lado, temos o mundo democrático a nos seduzir, a nos impregnar - , é hora, para mim, cada vez mais de darmos lugar à ciência nas temáticas de nossos livros. A ciência é a ponte maior, a conquista humanizadora do presente e do futuro. É a conquista de vacinas, remédios e tratamentos para doenças, que ainda são um flagelo para o ser humano. É a engenharia genética, a medicina robótica, e uma infinidade de avanços, os quais, se trouxermos para o conhecimento e para o cotidiano de nossos leitores, com maior facilidade, habilidade, poderemos construir nossa INTEGRAÇÃO – e novamente, esta palavra – ao fluxo de modernização constante da vida.

26)   E percebam que falo aqui de dotar essa MODERNIZAÇÃO  de um sentido humanista e humanitário, e não como mais um privilégio de elites, no país. Falo dessa modernização como a universalização e democratização dos benefícios da ciência e do conhecimento.

27)   Falo de possiblidades, a INTEGRAÇÃO de parcelas cada vez maiores de nossa população à cultura digital. Ao sonho de alcançarmos outros planetas – de participarmos da aventura, já em curso,  da colonização de Marte – quantos têm atenções voltadas para isso, neste país? - e de descobrirmos outras formas de vida no Cosmos.  Falo de fontes de energia limpa e amplas, acessíveis a todos. 

28)   Enfim, a esse direito de sonhar com um futuro e um mundo melhores. A Ciência, seja a arqueologia, que vasculha o passado para reconstruir, permanentemente, o presente, seja a física, que cria novas tecnologias e novas fronteiras.

29)   Futuro e Ciência são temas Literários.

30)   Enfim, reforço, que se trata aqui de uma proposta de pauta. Uma sugestão. A cada um, sua Literatura! Se não, a Literatura não existe!  Na minha proposta, ela existirá com mais substância, com mais impacto e importância para os leitores, principalmente crianças e jovens, com temas que abordem essa atração – e seus conflitos, sempre é necessário ressalvar -  à integração planetária, à integração à atualidade, que ambiciona um futuro, à Ciência, como marco cultural hoje da espécie humana, à solidariedade internacional; enfim, ao que eu chamo dessa tendência em formação, em crescimento, em disseminação, de uma Fraternidade Planetária Humanista e Democrática.

31)   Muito obrigado.