terça-feira, 19 de novembro de 2024

 

A PRIMEIRA VEZ

 

 

Luiz Antonio Aguiar

 

 

Para meus Netos,

na esperança que eles vivam para sempre

na Democracia e em Liberdade.

 



                                                






 

               1977.

               Os helicópteros baixavam a poucos metros do solo, no espaço aberto entre os dois prédios da universidade, erguendo lufadas de poeira, que entrava na nossa garganta e ciscava nossos olhos. O barulho dos rotores perfurava nossos miolos. Mas, se a intenção deles era nos afugentar, fracassaram.

               Havia ali uns três mil estudantes, de várias universidades, sentados no chão de concreto do Pilotis. O primeiro ato massivo, aberto, público, contra o regime militar, no Rio de Janeiro, desde as jornadas de 1968.

               Na reunião na Vila dos Diretórios ficara decidido que seria eu a ler o manifesto. Decidido no voto. Eu votei num outro companheiro. Estava com medo.

               Os soldados haviam cercado o prédio da universidade. De fato, ocuparam o bairro inteiro, nos isolando na Gávea. Capacetes, escudos, cães, cassetetes compridos e maciços.  Fardas negras, acolchoadas. Coletes à prova de balas  (ah, sim, eles sabiam montar a cena e os figurantes para fazer a gente parecer perigoso!).  E aqueles helicópteros, filmando e fotografando ostensivamente toda a multidão. Mas ninguém estava escondendo o rosto, nem mesmo quem subia no palquinho para falar.

               Eu ia ser o último, o manifesto concluía o ato. Minha boca nunca esteve tão seca. Tinha certeza de que a voz não ia sair, que eu ia gaguejar, empacar, que ninguém ia escutar nada por causa do ronco dos helicópteros. Que a qualquer momento eles iam lançar bombas de gás em cima de nós. E que ia ser uma correria, o Pilotis apinhado, um pisoteando o outro.

               - Agora, o manifesto dos diretórios estudantis e todas as demais entidades presentes – anunciou a mesa, no microfone. - Depois da leitura, a gente vota se aprova ou não. Se aprovar vai ser o documento deste Ato Público, o primeiro no Rio de Janeiro. O primeiro, depois de anos de silêncio, de...

               O helicóptero baixou de novo. Era minha vez. Haviam escutado o presidente da mesa falar. Queriam boas fotos de quem fosse ler o manifesto.

               Será que já sabiam o que estava escrito nele? Como poderiam? Era somente um papel rascunhado a caneta, em meu bolso, que havia acabado de sair da reunião, lá embaixo, na Vila.

               E mesmo assim, poderiam. Não poderiam?

               Poeira, os rotores do helicóptero, balbúrdia geral, eu subi ao palquinho, agarrei o microfone.

               O estômago parecia um buraco que queria devorar minha espinha dorsal. Mas, agora, sentia também raiva. Dos helicópteros, dos capacetes, dos escudos...

“Contra a prisão de estudantes,  sindicalistas, professores, jornalistas, advogados... dos militantes dos movimentos pela anistia e dos trabalhadores rurais ...Contra a tortura e os assassinatos nos porões da ditadura... Contra a censura... Contra as cassações de parlamentares eleitos que não curvaram a cabeça... Pela volta dos exilados... Eleições livres, liberdade partidária... Anistia ampla, geral e irrestrita...  Pela Democracia!”

               Tudo isso já havia sido dito em outros manifestos.

               Mas havia uma frase, uma palavra de ordem que seria dita pela primeira vez. Que iria ressoar de novo, depois de anos de sufoco, de silenciamento, como se a gente retomasse o fio da meada, nosso legado... E seria a conclusão do manifesto O gran finale. O que a gente tinha esperado anos para dizer, como outros antes de nós haviam feito. 

               Pela primeira vez, de novo. Em público. Dito e assinado.

               Eu me vi apontando para o helicóptero, para os agentes que apareciam na porta aberta da aeronave, câmeras miradas em mim. E eu, dedo em riste para eles, xingando-os, chamando-os de servos da repressão, de inimigos da democracia e do povo – despejei ali todos os chavões que conhecia –,   a assembleia gritando, vaiando a polícia... Eu arrepiado, escutando meu coração bombear enlouquecido, sentindo minhas jugulares ameaçando se romper, suando nas costas feito se estivesse debaixo do chuveiro. As mãos tremiam, é claro, eu mal conseguia enxergar o papel. Mas, já sabia o manifesto de cor.

               E a frase final chegando...

               O manifesto. A última frase. Empunhá-la. De novo, pela primeira vez.

Tava lá. Era ela.

Eu gritei:

               “Abaixo a Ditadura!”

O Pilotis pulou, esmurrou no ar, urrou, fez festa. A gente era a gente de novo.

 

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               Os soldados haviam bloqueado o portão principal. A única saída era atravessando o estacionamento. E íamos ter de passar pelo corredor polonês que haviam montado. Os capacetes baixados, os rostos ferozes, os cassetetes batendo nos escudos, os cães sendo atiçados, ladrando...

               Uma garota se aproximou de mim. Já tinha reparado nela no Pilotis. Tinha certeza de que estava bem na frente, na meiuca da  estudantada sentada no chão, durante o ato. Era bonita, e me pareceu mais bonita, ali, junto de mim, com seus olhos castanhos acesos, e os cabelos negros, compridos. Sorria. Acho que era a única pessoa ao meu redor que sorria. Eu estava com as tripas embrulhadas demais para falar qualquer coisa.  Para pensar em qualquer coisa, senão olhar para um lado e outro, vigiando os policiais, esperando que caíssem em cima de nós. Mas, sim, eu pensei: “Garota, como você é bonita!”.

               Os soldados não atacaram, mantiveram a formação. Não tinham ordens de provocar um massacre. Talvez, arrastar um ou outro e enfiar num camburão.

Mas, as últimas semanas tinham sido tensas demais.

               Tínhamos recebido o aviso de que iam nos pegar. Estavam na cola do meu pessoal.

Eu precisara fugir da casa dos meus pais. Passei lá numa madrugada para recolher meus livros proibidos e um ou outro documento clandestino. Enfiei tudo numa mala e, na bolsa a tiracolo, uma cueca limpa e a escova de dentes. Esqueci a pasta de dentes. E logo ia ter desejado pegar alguma coisa para comer, pelo menos um pacote de bolachas.  

Saí para a rua, um carro parou junto de mim. Identifiquei pela placa que era o carro que eu estava esperando. Tinha a instrução de esquecer aquela placa, depois dessa noite. Não ia me lembrar nem que quisesse. A porta abriu, uma mão ligeira recolheu a mala, e zuniram rua abaixo. Escutei a raspada de pneus, guinchando, quando dobraram a esquina.

No mais, eu sabia o que tinha de fazer. Dali a uma semana seria o Ato Público. O primeiro, depois de anos de entocamento. Tinha de ficar perambulando pelas ruas, naquela noite, nada de voltar para casa – e de fato, logo de manhã, os policiais apareceram por lá. Minha mãe os recebeu com um cafezinho e informou que não via o filho (eu) havia dias:

- Sabe como é essa garotada hoje em dia! Deve ter arranjado uma namorada nova. Mais alguma coisa?

Se fosse anos antes, teriam levado ela para interrogatório.

De manhã, eu entraria na universidade por uma trilha no morro que dava nos fundos do campus. Não sabia que seriam seis meses nessa semiclandestinidade.  Não poderia sumir de vez. Tinha de mostrar minha cara de dia no Pilotis; escapulir à noite pela trilha, sumir num buraco qualquer durante a noite, e me virar para  retornar à universidade na manhã seguinte. Essa camuflagem pretendia me proteger. Se fosse preso, meu pessoal poderia  denunciar que haviam sequestrado mais um estudante, não um terrorista fugitivo

Teve uma noite em que dormi nas pedras do Arpoador – um gelo. Tem um quartel ali junto, mas e daí? O céu estava estrelado, me murmurando qualquer coisa ou outra. Era o lugar onde brincava, quando criança. Mal senti o desconforto, as pedras nas costas. Dormi bem.   

Nas ocasiões em que passei na minha rua, e dei uma olhada de longe no meu prédio, havia sempre uns caras de terno, circulando, aparentemente sem ter o que fazer ali.

Teve uma vez que minha mãe fez questão de me ver – ou isso, ou, ameaçou!, ia dar o filho como morto e fazer um escarcéu. O pior que podia acontecer a um foragido era ser anunciado como preso ou morto. Chamava muito a atenção – “Ué, esse cara devia estar preso, então?”...   

Recebi o recado pelo meu irmão caçula, na universidade. Combinamos tudo, ele pegou minha mãe, tomaram ônibus, desceram de ônibus. Tomaram outro, desceram, deram voltas em quarteirões, e já aí num bairro distante, já aí eu seguindo de longe, checando os arredores, e então apareci do outro lado da rua e acenei para ela. Ela acenou para mim, e eu sumi de novo.

E teve uma vez, ainda, na véspera do ato público, que tive a certeza de que estava sendo seguido. A sombra vinha atrás de mim, parava quando eu parava, retomava o passo quando eu retomava. Se fosse um policial, a qualquer instante uma kombi, provavelmente sem placa nem cor definida, subiria na a calçada, à minha frente, cortando o meu caminho, e daí, saltavam uns quatro lá de dentro, me agarravam, me encapuzavam, e já era.

Só que, aquele era um seguidor muito incompetente. Uma droga de tira, para se deixar ser percebido.

Sei que eu fiquei com tanta raiva dele, estava me sentindo tão desgraçado no mundo, de estar sendo caçado o tempo todo, que me virei e corri pra cima dele.  Nem pensei no que estava fazendo, que se danasse. O cara não esperava uma maluquice dessas e fugiu.

Claro que não estava ali para me agarrar, só para me assustar e ver se eu o levava a algum aparelho  - os apartamentos  sem luz, sem móveis, sem copos nem pratos, sem nada, onde a gente se escondia... Quando havia aparelhos disponíveis.

Na verdade, meu grupo era pequeno e somente político. Contrário à luta armada, que aliás já havia sido exterminada havia anos. Mas, a repressão matou muitas pessoas que não eram ligadas à guerrilha. É que, naquele período, havia uma luta interna entre eles. Tinha os que achavam que era hora de abrir o regime, de fazer concessões para se segurarem o quanto desse,  e os que queriam ficar no poder para sempre, à custa de radicalizar, de descer o pau, sem se importar com repercussões. Desbaratar  uma organização,  mesmo mixuruca como a nossa, seria a prova que a ala dura  usaria para demonstrar que as torturas e assassinatos ainda eram necessários para defender o país contra o comunismo. E, sim, naqueles tempos, eu achava que era comunista.

Enfim, o interesse da repressão não tinha a ver com nossa capacidade de abalar a ditadura. Poderíamos até ser pretensiosos, mas a repressão sabia medir nossa desimportância.  Isso não impediu de torturarem, feito monstros e covardes que eram, os que prenderam. Não que esperassem tirar qualquer coisa importante deles. Era só para servir de exemplo.

 

 

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               Naquele final de tarde, passando pelo corredor polonês, na saída do Ato Público, quando a garota se aproximou de mim, tudo o que eu ia viver nos próximos meses, de certa maneira, já estava na minha cabeça. Eram histórias que a gente ouvia todo dia. Havia tentado me preparar para isso. Na verdade, a gente nunca está preparado. Havia o medo de ser torturado, arrebentado, ou pior... de abrir –  de entregar algum companheiro, ou um membro mais importante da Organização.

               A gente precisava segurar a barra por 24 horas. Os policiais sabiam disso. A cada 24 horas, tínhamos um ponto, um encontro marcado com algum companheiro – nem que fossem passar um pelo outro na rua, trocando algum sinal, ou senha, ou, se nunca tivessem se visto, exibindo, nas mãos, uma revista dessas que um cara como nós nunca leria. Era assim que a gente checava se alguém fora preso. Se o cara não cobrisse o ponto, se faltasse, dava-se o alarme. Significaria que o companheiro tinha caído. Tudo e todos com quem ele tinha contato precisava ser desmobilizado. Tudo desmarcado, esvaziado – nunca soube de nenhum grupo que houvesse conseguido realizar essa limpeza total de um aparelho com eficácia, mas a gente tentava. 24 horas. Eram essas 24 horas iniciais que os torturadores tinham para arrancar da gente alguma informação valiosa. Depois de 24 horas, nada que o prisioneiro ou a prisioneira abrisse ia levar a coisa alguma.  Daí, era aguentar a pancadaria mais brutal das primeiras 24 horas.

A maioria do pessoal assassinado nos porões dos quartéis morreu nessas primeiras 24 horas.

Ou, eram executados depois, já que não tinham mais utilidade. Ou de vingança dos torturadores por terem fahlado em abrir  o cara.

No entanto, muitos não aguentavam as 24 horas.

Nunca consegui achar nada de tão mal assim em quem não aguentava.

Outros, eram picados em pedacinhos e não falavam nada.

Eu gostaria de ser como um desses.

               Mas, tinha muito medo de ser dos que não iam aguentar.

               - Onde você vai dormir? – a garota me perguntou;

               Olhei para ela, desconfiado. E se fosse uma informante da polícia? Mas, ela sorriu para mim e eu mandei as normas de segurança pra cucuia. A repressão já tinha todas as fotos minhas que queria, eu estava ali, soldados preparados para a guerra de um lado e do outro – se quisessem me pegar, era só agarrar e levar o pacote.

               - Eu não sei. Vou desaparecer! – respondi.

               - Pode dormir lá em casa. Meu pai não vai nem perguntar quem é você.

               Olhei para ela de novo. Não tinha aparelho para mim. Ia ter de ficar vagando pelas ruas mais uma noite.

               Assenti de cabeça.

               - Me segue... não de muito perto.

               Assenti outra vez.

               Os soldados com cara de quem varou a madrugada de pé, em forma, no quartel, ao relento, para chegar ali bem furioso contra a gente – o que era praxe, aquecimento para operações antissubverssivas de rua... E a multidão se dispersando... E eu querendo me misturar, passar despercebido. E ao mesmo tempo sem perder a garota de vista.

               Já longe da confusão, ela parou, me esperando.

               “Se for policial, é agora que aparece o carro preto e me enfiam na mala!”, pensei.

               Nada.

               - Meu nome é Carolina. Carol!

               - O meu...é Victor

               Ela riu:

               -Entregou seu codinome à toa. Eu sei seu nome de verdade. Todo mundo sabe.  Vem.

               Chegamos à rua, já anoitecia, e eu esticando os olhos para todos os cantos, esperando que alguém saltasse da escuridão sobre mim. Costumavam já baixar batendo, para nocautear e evitar qualquer tentativa de fuga. Ou por medo que o cara atirasse contra eles. Nunca peguei numa arma na vida. Nem nunca dei tiro. Nem em passarinho.

               Mas, nada ... nada. Era uma ruazinha tranquila. “Tranquila demais”, receei; e  ainda... Nada. Somente uma ruazinha.

               O prédio dela ficava beirando uma pequena praça, cercada de residências antigas. Casas, em sua maioria, e edifícios baixos, como o dela. Não havia elevador, e o apartamento dela era no terceiro andar. Dois apartamentos por andar.

               Entramos. O pai dela estava na sala, lendo. Livro encadernado, não consegui ver o título.

- Esse aqui é um amigo meu! – ela disse.

Ele sorriu, sem me olhar direto no rosto, e voltou à leitura do livro.

               - Ele vai dormir aqui hoje – quis esclarecer a Carol.

               - Já tinha entendido isso – respondeu, ainda sem erguer a vista.

               - O Ato Público saiu na tevê? – eu perguntei.

               - Nem uma palavra! – retrucou. - Pra quê? Eles simplesmente pararam a cidade com os soldados. Jipes com metralhadora nas entradas das ruas. Um carnaval. Quem precisa saber por quê?

               Debochado. Gostei do tom dele. Carol me levou pra cozinha. Comi um sanduíche. Três, na verdade. Fazia dias que não comia mastigando. E café. Depois, me levou para uma pequena biblioteca-escritório nos fundos do apartamento. Havia um sofá. E uma janela. O protocolo mandava checar saídas, para o caso de alguma necessidade. Fui até a janela, olhei para baixo... alto demais para pular sem me quebrar. Mas, poderia ser escolher entre isso e ser rasgado pelos torturadores. Então... bem, a alternativa de voar pela janela, numa emergência, ficou na minha cabeça.      

               Nessa altura, Carol tinha me trazido um travesseiro e um lençol. E me deu boa noite. Fechou a porta, eu apaguei a luz, me deitei. Vestido. Calçava sandálias, que deixei com a mochila, junto do sofá.  Fazia dias também que não tinha um lençol para dormir. É incrível como, para se sentir deitado para dormir, a gente precisa de um lençol, no mínimo, para servir de fronteira entre você e o mundo.

               No escuro, escutava coisas. E me sentia... amargurado?  Difícil definir... Me sentia largado ... Desumanizado?

               Ora, como ia querer me sentir?

               Mas, era isso... me sentia um lixo. Algo que poderia se jogar fora, pela janela, e dar tchau à vida. O corpo ia ser sumido, coisa assim. Meus pais; pensei em meus pais dali para a frente, anos e anos, me procurando, sabendo que não iam me encontrar, mas sem conseguir desistir.

A polícia ia me enterrar no meio do mato. Nunca iam dar a notícia da minha morte a meus pais. 

               E eu nem tinha começado a viver ainda. Nunca tinha... Nunca!

               Daí, pensei em Carol... No quarto ao lado. Fazendo o quê? Pensando em mim? Vestindo o quê?

O quê...?

Quanto tempo passou? Meia hora, duas?

Dormitei mal e mal, e uma parte de mim permaneceu de vigia. Então o trinco da porta estalou e eu saltei sentado na cama. Virei-me para a janela, mas, antes que eu me levantasse, a porta se abriu de vez.

               Carol estava com um camisetão. Era azul. Um pouco de luminosidade entrava pela tal janela. No camisetão tinha escrito... Ora, que diacho! Eu não li o que tinha escrito. Nem tenho certeza se era azul, o camisetão. Só fiquei olhando para ela, sem acreditar.

Ela veio até junto de mim, ficou me olhando também – por instantes. Eu assombrado. Então, ela se ajeitou no sofá estreito, colada em mim, sempre os olhos dela prendendo os meus. Eu não sabia o que dizer. Nem piscar, eu conseguia.

- Você tá fedendo! – ela reclamou. – Faz dias que não troca de cueca, não é?  Pode lavar sua roupa aqui amanhã.

Eu, catatônico.

- ... Legal!...  

- Mas, banho, você toma antes, tá? Com sabonete.

-...  Antes do quê?

Ela sorriu. Minha nossa, o sorriso dela...!

 - Olha pra mim. Não, não desvia, olha... Para mim! - E, ainda mais feiticeira e vidente, disse, sorrindo, me chamando: - Vai ser a sua primeira vez, não vai?

- Vai?...

               Carol não me deixou nem pensar em dizer mais nada.

Me puxou pela nuca e juntou a boca dela na minha.

               O beijo, aquele beijo... Ah, meu Deus! Como ela adivinhou? Em minha vida inteira, eu nunca precisei nem iria precisar de algo, tanto, tanto, como daquele beijo.





sexta-feira, 15 de novembro de 2024

 

 

 

INQUIETUDES SOBRE A EXISTÊNCIA DE DEUS

De Homero à Literatura Pop

 

Luiz Antonio Aguiar

 


 

 

 

Os deuses são sempre os mesmos,

Sempre claros e calmos,

Cheios de eternidade

E desprezo por nós,

Trazendo o dia e a noite

E as colheitas douradas

Sem ser para nos dar

O dia e a noite e o trigo

Mas por outro e divino

Propósito casual.

 

Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

 

 

 

 

 

 

               Deus existe?

               Existem os deuses?

               Esta é uma questão crucial e um pilar temático da Literatura Ocidental. Encontra-se latente e tácita desde o Ilíada. E muito da rejeição a livros como a saga de Harry Potter, livros fantásticos que incluam magia e elementos mitológicos e do folclore,  pode ter a ver com  a tentativa de ocultação dessa dúvida primordial, que semeia a Literatura.

                E aqui, parto da especulação de que aquilo que nos diferencia das outras espécies é nossa consciência de estarmos vivos, de nos perguntarmos qual o sentido disso e da Criação (da nossa Criação, inclusive). Ou seja, somos seres dotados de uma inquietude cósmica.  Que inclusive nos dota da da capacidade de criar realidades alternativas. Não temos raízes que nos prendam a um solo, nem um imperativo instintivo e natural, que nos imponha  solo, influências, um caminho único. A hereditariedade faz lá das suas, mas nem o passado, nem a tradição, nem o DNA nos determinam. Não em termos absolutos.

Portanto, criar trata-se de sobrevivência existencial, e isso desde que o mundo é mundo, cada qual define-se, inclusive quanto a acreditar ou não na existência de deuses, ou de Deus.   

E mais, a Literatura não é entendida aqui como uma resposta a essas indagações. Nem para abrandar inquietudes que são mais férteis se mantidas em carne-viva. Mas... quem sabe?... para, já que aqui estamos (e consequentemente podemos aleatória e subitamente cessar de existir), propiciar espírito ao cotidiano, anima à matéria; para gestar em nosso íntimo imagens (ou algo similar) do invisível, descobrir caprichos da beleza, vivências do inexistente e de metáforas que nos possibilitem lidar, de algum modo, com  o desconhecido,  singularidades como o Aleph e a Terceira Margem do Rio. 

               Então, sobre Harry Potter e semelhantes, num universo (ficcional) em que os personagens comuns (que, embora bruxos, seriam mortais, dominados por sentimentos, medo  etc...) realizam milagres (ou prodígios, se preferirem),  estaria subtendida a inexistência de deus e dos deuses? Não seria redundante a existência de deus e dos deuses nessas ambientações?

               Ora, a censura a determinados temas e palavras, ou expressões, assola hoje  a Literatura no país, principalmente a Literatura dedicada ao diálogo com jovens e crianças.  Mas, como toda censura, é focada em aspectos menores e mesmos mesquinhos. No que o censor não consegue entender. Não concebe. Não admite. Ou seja, nas limitações existenciais e intelectuais do censor e da censura institucional (mesmo a bem intencionada, hipoteticamente, a do politicamente correto).

Nem por isso, é menos perniciosa. Até por nem sempre assumir-se como censura, mas, às vezes, arrogar-se a dona de critérios pedagógicos, a preservar valores, a moral, ingenuidades. Mas, será sempre censura, a pior peçonha que se ergue contra a Literatura. E contra o pensamento. Contra o amadurecimento do indivíduo. A censura, Cérbero que vigia os portais da ignorância, para que neles nada vivo penetre, e de lá de dentro ninguém escape. Ela mesma. E prescindindo até de uma ditadura, de um Estado tirânico, para lastreá-la, para  praticar sem constrangimento nem culpa seu mal.

Palavrões são proibidos. Tramas que se solidarizem de coração e mente abertos com os jovens (e crianças) na descoberta da sexualidade, a não ser no nível rasteiro das “pegações”  etc., são terminantemente vetadas. Homossexualidade, via de regra, idem. E, agora, observando o crescimento de um preocupante fundamentalismo religioso (há algumas denominações, pelo contrário, esplendidamente humanistas, iluministas),  todos os temas relativos ao sobrenatural, do terror ao folclore, também.  Enfim, polêmicos, no sentido de causar polêmica, seriam aqueles temas “perigosos”, que podem comprometer adoções ou compras governamentais de um livro que explore um tema desses, ou a compra em licitações do governo; ou atrair problemas de uma maneira geral para a editora. Por exemplo, há livros que são objeto de raivosos discursos de dignitários dos mais variados escalões por conterem palavras como “diabo”, ou assemelhados. Já escutei vetos à palavra arco-iris  - seja em que contexto for, e ao lixo com a ciência da ótica. A ira se ergue, em alguns meios, por conta da participação numa história de um Saci Pererê, ou sua simples menção. Há capas de livros que são do mesmo modo e à mesma fogueira condenadas porque, sendo capas de livro de terror, por exemplo, trazem imagens que evocam a emergência do sobrenatural em nosso mundo, e isso não se admite. No primeiro caso, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, todos os dicionários e as obras completas de Câmara Cascudo que se cuidem. No segundo, uma caveira, um dos símbolos místicos de São Francisco, que representaria a igualdade de todos os seres humanos, uma vez deixada para trás a vida material, apavora tanto os acusadores que é impossível não lembrar que um dos sentidos da criação dessas histórias (de terror)  seria propiciar aos leitores uma vivência estética da inevitabilidade da morte, e a presença espectral de um duplo,  sujeito a compulsões, coabitando nosso espírito. Ou seja, os mesmos medos que essa Literatura compartilha com a humanidade, desde a sua fundação, talvez, vitimize os que os querem ver expurgados dos livros, inclusive das capas destes. E tanto os assusta que é de se perguntar se não deveriam eles ser leitores mais assíduos, especialmente da Literatura de Terror.

               No entanto, mesquinharias à parte, as dúvidas do ser humano sobre a existência de Deus, a busca da compreensão da relação entre o sagrado e o mundano, entre o ser humano e os deuses, ou seja, a desestabilização da ideia de que não se pode questionar nem a existência nem a onipotência dos deuses, nem muito menos, é claro, sugerir que  os deuses sejam criação humana, são o ancestral dos temas polêmicos. 

Tanto que, como se antecipou, presente sublinarmente  em Harry Potter e outros, pode ser observado, e já metaforizado, no mais clássico da Literatura Clássica: Homero. Já ali se questionava – se os deuses são tão indiferentes (e, no caso das batalhas de Tróia, se deleitavam-se com as matanças e até mesmo tomavam parte nelas) ao sofrimento humano, se assistem impassíveis ao martírio dos inocentes e ao triunfo dos perversos, será mesmo que estão ? Será que há Alguém a nos observar e a ajuizar os nossos atos? Seremos tão solitários assim, enredados por impassíveis vicissitudes?

               Onde estão os deuses, quando precisamos deles? Onde estão, quando dirigimos a eles nossas súplicas e preces? Será que nos escutam? Onde estão, quando, desesperados,  pedimos sua interferência no plano terreno? Onde estão, quando necessitamos de um milagre?

 

 

              

 

 

 

CAPÍTULO CCI

QUERIA dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente,fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas,  vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o titulo ao livro, e por que antes um que outro, —questão prenhe de questões, que nos levariam longe. Eia! chora os dois recentes mortos,se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.

 

Quincas Borba, Machado de Assis.

 

 

               Destaco a cena em que Aquiles não somente mata Heitor, mas também profana seu cadáver, como o clímax do Ilíada – poema no qual Homero funda uma nova narrativa, a Épica, a história longa, com enredo, personagens complexos com expressão exterior própria e realidade íntima, cenas nas quais o autor está oculto, em que inauguram-se a ação, diálogos, drama  –, que irá, ao lado de Odisseia, gerar a Literatura Ocidental.

               Aqui,[1] Aquiles já atravessou o corpo de Heitor com sua espada. Heitor está de joelhos, nos estertores finais, e suplica a Aquiles que não ultrajasse seu corpo e não fizesse os pais dele, Príamo e Hécuba, sofrerem além do que já sofrerão com a morte de seu filho predileto, herdeiro do trono de Troia –  sendo que sua morte já representa a condenação da cidade e de todos os seus habitantes, que serão de fato chacinados (os homens, inclusive as crianças, para que jamais cresçam e vinguem seus pais, todos serão mortos pelos aqueus; enquanto as mulheres serão estupradas e, sequestradas, reduzidas a escravas).  O quase-deus Aquiles, em seu ódio tremendo contra Heitor (que matou Pátroclo, numa trama urdida pelo próprio Apolo), rejeita o pedido.  

 

Heitor, mal podendo respirar replicou:

“Imploro a você, por seu espírito e por seus pais,

Que não deixe os cães devorarem meu cadáver, em seu acampamento, junto a seus navios. Aceite o bronze e o ouro que lhe

 oferecerão, como resgate, meu pai e sua esposa, minha mãe.

Permita que meu corpo lhes seja devolvido,  de modo

que nossos homens e mulheres possam me proporcionar a respeitosa pira, que consumirá meu corpo.

 

Aquiles, o grande corredor, desdenhosamente respondeu:

“Não me venha com súplicas em nome do meu espírito ou de meus pais, cão lamuriento! Se eu permitisse à minha ira guiar-me,  neste momento, não somente o mataria mas comeria a sua carne ainda crua, tamanha foi a dor que você me causou! Nenhum homem conseguirá evitar que seu cadáver vire banquete das matilhas, nem que me paguem dez resgates , nem vinte, isso eu juro. Sim!

Nem que o próprio Príamo, filho de Dardanus, ordene que se pague

o seu peso em ouro! Seu corpo não terá repouso na morte, não será

sepultado, nem chorado pela mulher que lhe deu à luz.

Os cães e as aves de rapina irão devorá-lo até que nada reste”.

 

               Aquiles cumpre sua medonha promessa...

 

 

Muitos mais ultrajes, Aquiles planejava para o cadáver de Heitor

Na parte de trás dos pés, perfura ambos os

tendões, do calcanhar ao tornozelo. Atravessa pelas feridas tiras grossas

de couro de boi e as amarra ao seu carro, deixando a cabeça do

morto fazendo rastro no chão. Subindo então

no carro,  brande no alto a armadura do guerreiro, seu

troféu, e agita as rédeas, açoitando a parelha de animais

para dispararem em galope. Uma nuvem

de poeira se levanta, ocultando o cadáver,

a cabeleira de Heitor voando para trás, e aquela cabeça

tão principesca em vida se revira no pó.  Zeus o entregara assim

a seus inimigos, para ser profanado, na sua própria terra natal.

Assim, seu crânio logo se tornou uma massa escura. E

a tudo assistindo das muralhas de Tróia, sua mãe corta

as tranças, arranca seu véu e geme alto, o coração dilacerado

ao ver ali embaixo o que se faz com seu amado filho.

 

               Aquiles não para aí. Para homenagear Pátroclo, à beira da pira funerária do amigo – e paira a mitológica suspeita de que se tratava não somente de seu primo e companheiro de infância, mas também amante –, doze jovens guerreiros troianos que capturara são degolados e o sangue deles é aspergido nas chamas.

               Ora, o sacrifício humano é vedado aos gregos. E jamais agrada aos deuses. O rei Lykos, por sacrificar a Zeus uma vítima humana, e comer sua carne, foi transformado em lobisomem, para vez ou outra virar besta-fera e devorar seus entes queridos. De Lykos, o primeiro licantropo, vem a licantropia. E talvez o mito disfarce, em suas entrelinhas, a inquietude de Lykos, a sua incerteza sobre o amor dos deuses por ele, sobre como conquista-los ou comovê-los,  e sobre a piedade dos deuses em relação aos humanos.  

Também Aquiles desafia os deuses.  

               Por que faz isso, há várias interpretações. A minha é que o Aquiles de Homero, um dos mais grandiosos personagens da Literatura, paradigma da Literatura, herdou não apenas o rancor contra os deuses, mas a obsessão louca de sua mãe, Tétis. A ninfa do mar, Tétis, desejada por Zeus, foi forçada por Hera a se casar com o rei -  rei, mas mortal – Peleu. Sentiu-se humilhada. Seus seis primeiros filhos nasceram também mortais e ela os quis tornar imortais, no ritual do fogo – lançando-os à fogueira. Morreram. Daí recebeu a profecia de que somente alcançaria seu propósito com o sétimo filho, Aquiles, banhando-o no Rio Estígio, o mesmo que bordeja o Hades.[2]

               Foi o que Tétis fez, mas segurou o bebê pelo calcanhar, e essa parte do corpo da criança não foi invulnerabilizada e passou à tradição como o Calcanhar de Aquiles.  Por conta daquele  pequeno pedaço do seu corpo, Aquiles, ao longo de toda Ilíada e da sua curta vida (morreu jovem, conforme sua escolha, e coroado de glória como grande guerreiro), é constantemente chamado de quase-deus, quase imortal , quase-divino.

Ele é o quase.

Que ato falho: Aquiles perfura os calcanhares de Heitor para iniciar seu ritual blasfemo justamente pela parte do corpo que o coloca abaixo dos deuses, que o torna quase imortal.

Os deuses é que são completos.  Aquiles enlouquece por causa desse quase.  Na cena com Heitor citada e na profanação dos restos mortais do príncipe troiano, que se segue, Aquiles desafia os deuses a provarem que são tão mais poderosos do que ele, por serem completos. Por não serem mestiços, mas puramente mortais (há também um conflito semelhante em Harry Poter, entre os bruxos filhos de pai e mãe bruxos, os puro-sangue,  e os sangue-ruim, quando o pai, ou a mãe, como é o caso do próprio Harry, é humano, não-bruxo).  É como se o herói erguesse seus punhos para o céu e bradasse: Vejam o que estou fazendo! Estou insultando Vocês! É com Vocês que estou falando. Não finjam que não me ouvem. Que não estão me vendo!  Vocês existem mesmo? São tudo isso que dizem que são? Então venham me pegar!

               Ficava o repto lavrado. Afronta de um quase-mortal aos imortais.

               Os deuses gregos eram imortais,[3] mas não eram eternos (tiveram um nascimento). Não eram onipresentes. Não eram onipotentes. Mas eram prepotentes. E muito ciosos de seus privilégios. Vaidosos, prezavam ser (muito e servilmente) bajulados – pelos reles mortais; ora, vejam!. Tanto que se podia, como foi o caso de Édipo, ofendê-los sem querer, sem se pretender fazer isso, sem nem se saber que se estava fazendo isso. Édipo e toda a sua prole com Jocasta (que se suicida) foi castigada pelos sacrilégios que ele cometeu inadvertidamente. Ou melhor, conduzido por profecias, que eram forjadas na medida dos desígnios dos Imortais. [4]

Mas importa marcar que uma grande diferença desses deuses gregos para a  tradição que veio para o Ocidente cristão reside na impossibilidade da onipotência e da onipresença – a não ser que os deuses se sobreponham e se acavalem uns sobre os outros – em qualquer  religião não monoteísta. Nas religiões politeístas, cada deus tem atribuições específicas, como se fossem jurisdições. Não são Todo-Poderosos. O destino, por exemplo, não pertence aos deuses olímpicos, mas às Moiras. E mesmo Zeus se curva às três irmãs, fiandeiras da Fortuna. O Universo  foi dividido entre os irmãos (homens): Zeus, o plano terrestre, os astros, o Olimpo; Poseidon (os mares e suas criaturas); Hades (o submundo para onde eram tragados os mortos, inapelavelmente). Havia outros; os deuses eram territorialistas, como os gatos e cães. Nenhum se metia nos domínios alheios, se não quisesse encrenca braba.

E talvez não fosse demasiadamente arriscado sugerir aqui que a própria Criação Literária se insere nesse dilema: diante da onipotência e onipresença do autor, e de seu poder de narrar (e até mesmo de dissimular uma delegação desse poder a um personagem, dito personagem-narrador; para não falar do seu poder de contar a história em várias vozes, de trás para frente, começando in media res , pelo meio, ou do jeito que melhor entender para ludibriar/enredar o leitor), não ocorreria aqui esse acavalamento? Como pode um ser mortal, limitado, se arrogar a criar (a não ser que toda arte seja realmente uma mera redução de algum modelo ideal, imitação, depreciação, no sentido platônico, da vida), num Universo onde já impera O Criador? É genuína a criação humana? Ou, invertendo a inquietude, Deus está inscrito na obra literária (e na Arte), assomando-se sobre o poder do artista? Ou será o artista personagem-autor de Deus, recebendo Dele, ou dos deuses, então, a delegação dissimulada referida acima, da onipotência e da onipresença, que ele imita, embora incapaz de preenchê-la? [5]

 

 

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Raiael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a  música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade.

Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,—compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

 

—Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a

partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas admiti-me com ela a vossos pés...

—Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.

—Mas, Senhor...

—Nada! nada!

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.

 

—Ouvi agora alguns ensaios!

—Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou

pronto a dividir contigo os direitos de autor.

 

                                       Em Dom Casmurreo, “A ópera”, Capt. IX

 

Aliás, esse é grosso modo o modelo clássico, sob o qual os aedos recebem a Revelação (Alethea) das musas, num momento inspirado, e a passam para seus poemas. A criação (original) é privilégio dos deuses. Pelo menos, assim foi, até Prometeu. Homero desafia o monopólio divino ao criar enredos, tramas e personagens que ganham vida.

               Mas, retornando – Aquiles pretendia provocar os deuses e obriga-los a intervir num drama humano.   Conseguiu. Despertou contra si a fúria dos deuses. Com isso, fica provada a onipresença também da inquietude. Nossa inconformidade em relação à indiferença dos deuses ao nosso dia a dia, como metaforizou Machado, em Quincas Borba.  E ainda a necessidade de termos manifestações materiais (milagres) da nossa ligação com eles – intervenções diretas e visíveis no cotidiano.  Por obra de Homero, o tema ficou incrustrado para sempre em nossa Literatura. E principalmente por metaforizar um conflito, uma dúvida cósmica humana, universal, eterna, insaciável, inerente a nossa espécie. Uma dúvida que, aliás, define nossa especificidade como espécie: nossa Humanidade.

               Há claro, os que não têm dúvidas. Que escutam Deus, ou os deuses, dentro de si, e acreditam que Ele, entre bilhões de mortais, se ocupa em protegera estes, seus eleitos. São felizes. Eu os invejo. Machado também os invejaria. Mas, optaríamos por viver outra vida, se nos fosse dada a escolha.

               Portanto, é possível ler o Ilíada  como o mais remoto ancestral desse embate, no universo da Literatura, e de nossos dilemas: como podemos ter sido criados (criador <– > criatura)  por deuses, nossos pais,  que não se comovem conosco? Somos órfãos? Fomos rejeitados? A maldição da expulsão do Paraíso contém cláusulas até hoje não explicitadas?

               Ou será que os deuses não se apresentam simplesmente porque não existem?

               Ou será que Deus não existe?

               Mas, daí, estaríamos sós no mundo.

               “O horror, o horror, o horror”, sintetizaria Joseph Conrad.  

                É compreensível então o temor de se entrar nessa polêmica. E não somente a Literatura sofre tal censura. Que frequentemente se torna auto-censura. É sabido que Charles Darwin, depois de concluído A origem das espécies, hesitou por muito tempo até publicá-lo. Temia a polêmica. Afinal, se as espécies não surgiram no Planeta conforme as vemos, hoje, se evoluíram ao longo de bilhões de anos (se a Terra não tem a idade do tempo bíblico) como podem ter sido criação de Deus? Se fossem, não seriam perfeitas e imutáveis? E de fato A origem das espécies foi um dos livros mais revolucionários no que toca à visão que o ser humano tem da vida e do mundo.

Sigmund Freud, com menos pruridos, culpas, cautelas e preocupações do que Darwin, quanto  à repercussão, entre os retrógrados, de suas teorias a respeito da mente humana,  previu igualmente que entraria no index dos proscritos e que seria alvo da demonização de praxe. Nem por isso deixou de divulgar suas teses.

Abrindo parêntesis... Redimindo a ciência de suas blasfêmias, o matemático Michio Kaku, em Hiperespaço,[6]  relata  que um enigmático matemático hindu, Sirinivasa Ramanujan, que, trabalhando isolado da produção mundial nessa matéria, alegava que as equações prodigiosas que apresentou para resolver a Teoria das Cordas lhe foram reveladas, em sonhos, pela deusa de sua família, Namagiri Amman. Há de fato um beco sem saída, batendo na parede do inexplicável e do incompreensível, nesse refinadíssimo e ultra-atual modelo composto para  que possamos visualizar a organização do Cosmos, e que postula, entre outras coisas, que o universo seja formado de uma composição de dez dimensões; nosso universo quadrimensional  (largura, comprimento, altura e tempo/espaço), acrescido de outro, que possuiria dez dimensões; inimaginável e inconcebível para seres quadridimensionais. Por que dez dimensões? Replica Kaku: “Ninguém sabe”. Ocorre que as equações que  compõem a Teoria das Cordas esbarram com constrangedora frequência no número 10. A ponto de Kaku denominar essa incidência de “aparição”, e classificar esse número 10 na ordem dos “números mágicos”. Numa linha totalmente diferente, o físico e cosmólogo brasileiro Marcelo Gleiser [7] acusa os cientistas, como Stephen Hawking e, por extensão, embora não o cite, o próprio Kaku, de  serem impelidos por uma crença monoteísta subliminar, ao persistirem na compulsiva busca por uma Teoria Final, ou Teoria de Tudo (que unificaria a compreensão que os cientistas têm das diferentes “forças”  que agem na natureza; algo que atormentou Einstein,  em seus últimos anos – e pode ter sido sua grande frustração, não haver conseguido matar a grande charada do universo, ou seja, descobrir se Deus joga ou não dados). Ora, Gleiser propõe que não exista essa tal unificação, esse Nirvana ou Santo Graal da Ciência, a Teoria de Tudo, por não acreditar mais, depois de tantas buscas e pesquisas e formulações teóricas frustradas, em algo que, suspeita ele, seja, a identidade secreta de Deus, contrabandeada (até em sonhos, mesmo de matemáticos) para a ciência. Para ele, a criação do Universo, da Vida e seu desenvolvimento são regidos pelo acaso – uma concepção desoladora para a grande maioria da espécie humana.  Ora, donde se constata que a Física e a Cosmologia  se inquietam com a mesma dúvida que, instalada no coração oprimido da nossa espécie, impregnou a Literatura ... Parêntesis fechados.

                

A cada desvendamento, a inquietude se aguça...  Em 2014, pela primeira vez na nossa história, ao que saibamos, fizemos contato com seres extraterrestres. A sonda robô Filae encontrou “matéria orgânica” (vida extraterrestre) e água (gelo) nas entranhas de um cometa, o 67P, o que pode ratificar a teoria de que a vida na Terra teria surgido da contaminação ou infecção de germes, vírus, bactérias, algo do gênero, trazidos do espaço, das profundezas remotas do Sistema Solar, por cometas e meteoros, que caíram no rico e fértil caldo dos oceanos. Assim teriam surgido as primeiras moléculas vivas na Terra...  Mas, se foi isso que iniciou a vida, onde entra Deus, nessa história?

Eram os deuses cometas e estrelas cadentes?

               E o que dizer então do também fundador Teogonia, de Hesíodo, o qual, segundo a tradição, foi criado depois de Ilíada? Trata-se do Nascimento dos deuses. Mas, a necessidade de afirmar o surgimento Deles também não é uma inquietude sobre Sua existência? E no embate entre Cronos, o titã que devorava os filhos, e os deuses olímpicos, liderados por Zeus, não está uma metáfora  do Big-Bang (ou seja lá que teoria prevaleça nos próximos anos sobre o surgimento do Universo)?  

Mas se os deuses criaram o universo, se o seu nascimento coincide com  a eclosão do Cosmos (= ordem x Caos) e, entretanto, não habitam mais o Olimpo, nem nenhum ambiente físico, em que lugar ou em que dimensão estão, agora? De onde nos assistem?

Em Deuses americanos,[8] romance de Neil Gaiman – astro da Literatura Pop americana e das HQs, com uma tribo de fãs inclusive no Brasil -, os deuses antigos de todas as mitologias tanto nativas quanto daqueles cujos descendentes imigraram (ou foram trazidos à força, no caso dos africanos) para a América, vagam, hoje em decadência, anônimos, carentes de adoração e de devotos, disfarçados de indivíduos prosaicos, pelos EUA.

Ou seja, a Literatura ecoa uma dúvida universal. E primordial. Uma agonia, um dilema humano, nossa Mãe-Angústia, talvez um verme originário da Caixa de Pandora, sobre a existência ou não de Deus, e qual seria seu interesse (afeto?) por nós, quais seriam os limites desse afeto e como poderíamos obter a extrapolação desses limites (milagres), nós que morremos de doenças, de fome, envelhecemos, enlouquecemos, demenciamos, cometemos erros, crimes, absurdos, bancamos os estúpidos, caímos em ridículo, nos apaixonamos (até mesmo por miragens, por olhos que não nos olham), criamos e amamos obras de arte. Os deuses existem?

Ou foram criados por estes mortais, estes seres tão falhos ... á imagem e semelhança (deles)? Como se pode confiar na eternidade, onipresença, infalibilidade e onipotência  de deuses que tenham a nós como seus criadores?

Heródoto  [9] afirma que Homero criou a Mitologia Grega, e,  se assim quisermos entender, (re)criou os deuses (compilou lendas, tradições, histórias locais, inventou, ficcionalizou,  selecionou os que iam para o Olimpo, os que ficavam na periferia, ou mesmo os rebeldes como Dioniso, com uma história toda peculiar, e assim gerou-se o fermento da nossa imaginação,  do Belo, da cultura ocidental, da nossa compreensão do que é divino e do que é mundano, e da separação desses planos)...

Ou será que os deuses entraram em nosso universo vindos de outras dimensões do Multiverso, através de buracos de minhoca (whormholes; termo usado pelos físicos e cósmólogos), ou de portais, como os da ficção científica e da Literatura Fantástica? Mas aí já seria provocação. Recentemente, foi descoberto um ainda incompreensível túnel interestelar, que vai de uma bolha de gás quente imensurável, situada em nosso Sistema Solar, até a Constelação de Alfa Centauro. E se o Monte Olimpo tiver sido uma metáfora para os que habitam as Alturas?

                Em Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818), de Mary Shelley, as inquietudes são o esteio da trágica trama.  Para começar, o público chama o monstro de Frankenstein; no entanto, a criatura roubou o nome de seu criador. Frankenstein, no romance, é o sobrenome do jovem cientista (Victor Frankenstein), cuja arrogância intelectual, a soberba pelo que seus conhecimentos e inteligência poderiam alcançar, o fizeram cometer uma blasfêmia, qual seja, avançar sobre um atributo exclusivo de Deus (como o fogo, roubado por Prometeu): a criação da vida. Ele se arrepende. Ao final de seu périplo, condena toda a busca pelo conhecimento como uma tentação (demoníaca? ... a  criatura, que no livro não tem nome, é muitas vezes chamada de “demônio”) a que nenhum homem deveria ceder.  E quem quiser fazer associações dessa trama clássica com os embates atualíssimos sobre engenharia genética, creio, não estará exagerando.

                Ao mesmo tempo, a explicitação da dúvida é tabu. E vetada pelo pensamento e inteligência submedianos. Especialmente como componente dramático da Literatura, corrente na atualidade-mercado-Brasil, que, entre outras coisas, fertiliza o pensamento e a inteligência humanos.  Por isso, a polêmica. É proibido alardear que a dúvida existe, muito menos insinuar que ela tem o tamanho da História (do espírito e do intelecto) da Humanidade. E que nossos leitores sofram, solitários, consumindo-se pela culpa de se acharem pecadores condenados por suas dúvidas (= falta de Fé), somente eles, neste Mundo de Deus.

               Harry Potter causou muita polêmica e causa até hoje. Talvez porque ambiente-se  num mundo em que há bruxos à solta, realizando prodígios, o que deveria ser atributo exclusivo de  Deus –,  com isso, tenha tido a autora esse propósito, ou não, a mera existência da saga literária do bruxinho seria  blasfema (de novo, Édipo ofende os deuses sem nem saber que o fez). Ou talvez seja porque, sob  certas crenças, bruxas seriam coisas do diabo, e portanto não se deve mencionar sua existência (ficcional), nem mesmo considerando que o ser humano sempre se perguntou tanto se existe Deus quanto o diabo.

Não importa. O mundo está perfeitamente arrumado pelos escritos considerados sagrados, canônicos; e fora com os apócrifos; assim como a moral está resolvida pelos ditames (nem todos explícitos, mas poderosos e infectantes, de censura a obras, autores e pensamentos) do politicamente correto etc, etc, e assim vai o mundo, coisa muito simples, sem problemas, para quem pensa direito, para quem se quer sempre feliz, para quem não se afasta do bom caminho. Afinal, de contas, não há censura para os que sabem o que deve e o que não deve ser dito.

               Em Deus me livre, de Rosa Amanda Strausz, lindíssimo livro, simples, meigo, generoso, inteligente, esperto, malandro, divertido, duas crianças questionam a criação de Deus, dirigindo suas queixas e sugestões ao Próprio. É assim que a menina reclama do que considera  uma das coisas mais mal feitas de todas, pelo Criador, o peruzinho do menino, que além do mais, na opinião dela, foi privado de graça e beleza.

               Afinal, há quem pontifique que Deus não está aí para brincadeiras. Preferem que Ele seja temido. Crêem que funciona melhor assim, como o bibliotecário Jorge, em O nome da rosa, de Umberto Eco, para quem o riso seria o caminho pelo qual o ser humano começaria a desacreditar em Deus – e por isso escondeu e ao final destruiu  o volume perdido de Aristóteles  sobre a comédia,  que o romance assume ficcionalmente que tenha existido.  O nome do personagem-bibliotecário homenageia  Borges, outro ser do mundo dos livros, das bibliotecas. Embora a obra borgeana seja um universo literário-alephiano, no qual é difícil, se não impossível, identificar rastros da presença de Deus, havendo por lá abundância de espelhos, labirintos, noites sherazadianas e seres extraordinários.

               Por aí vai. Escrevi certa vez uma novela romântica em que a protagonista se apaixona por um cara alguns anos mais velho do que ela, mas, assim como admite Bentinho em relação a Capitu, ela era mais mulher do que ele era homem. Em certa cena, a garota empurra o rapagão para dentro do banheiro e lhe tasca um beijo de língua. O cara quase tem um enfarte. Daí, a editora me pediu que tirasse a cena. Eu respondi que a cena, não tirava, mas tirava o original daquela editora. E foi o que fiz... Censura a algo menor?  À sensualidade? Não chega a ser sobre a dúvida primordial. Ao mesmo tempo, Deus onipresente poderia estar assistindo a uma cena dessas. Não seria desrespeitoso fazer essas coisas diante dele. Mas, dada a Onipresença de Deus, como nos ocultarmos, pudicamente?

               Nem sempre os escritores agimos assim – nem sempre rejeitamos a censura. Por vezes, ponderamos, negociamos.  Ou driblamos. Faz parte do nosso show. Queremos ser lidos. Queremos que nossos textos virem livros e cheguem ao seu destino, os jovens, as crianças. E precisamos vender nossos livros, pois nos sustentamos com o percentual (que vem, sendo diminuído paulatinamente) de direitos autorais. É preciso sempre medir bem o que se negocia e o que não se quer negociar. Mas, é curioso. A Literatura sofre mais censura do que o cinema e do que joguinhos de computador, onde rolam sangue e cabeças, e corre violência em rios de irracionalidade. Enquanto, na Literatura, temos de ser comportados. Lá é consumo, coisa que as crianças e os jovens compram espontaneamente. Aqui é... O  que é, o que é?

Um isso, ou vários issos, várias obras que não podem ser meramente consumidas, neste país capitalista, mas têm de ser educativas, enaltecedoras, cívico e politicamente corretas.  A Literatura é vetada quando cai de boca no mundo real. Longe dela apaixonar-se pelo cotidiano. E até pela fantasia... Ah, as travessuras de Zeus, se fossem contadas. Se Hermes fofocasse tudo o que sabe sobre seu pai, das tantas vezes que guardou a porta, enquanto ele lá dentro cometia loucuras com alguma iludida mortal, que ele logo irá abandonar à ira de Hera, real, olímpica e divina esposa.  As inconfidências de Hermes: grande título! ... Os deuses e o sexo: grande tema! E olha que se puxássemos Afrodite, para dar depoimentos sobre seus casos, as tantas vezes que traiu Hefesto e os tantos amantes que teve, não sobrava nem para Bruna Surfistinha. Ah, a Surfistinha, essa pode. Essa corre por fora e conquista leitores. Essa é apenas um best-seller. O sucesso é visto com desconfiança pelos anti-polemistas. A Literatura é temida.

               José de Alencar estaria perdido, logo ele que escreveu Lucíola na marra  (anos antes, sua peça teatral, As asas de um anjo, protagonizada também por uma prostituta,  fora proibida pela polícia), desdenhando dos censores da época e até da crítica hipócrita de D. Pedro II, um marido infiel, tanto quanto o pai, mas que condenou Alencar por este tomar o partido de Lúcia, a prostituta; por Alencar escrever que se ela, que foi seduzida em troca do dinheiro que usou para comprar remédios de que sua família necessitava para sobreviver a uma doença cruel, se tornou-se uma prostituta, se exibia seu corpo despido em orgias promovidas em chácaras de gente rica...  e ainda podia guardar uma parte de si para esbanjar amor por Paulo, um amor sincero, apaixonado ... então, quem sabe, prostitutas não seriam desprezíveis criaturas das quais o demônio haveria se apropriado? Bruxas? Quem sabe não se deveria satanizá-las, como acontecia, mas se poderia até mesmo amá-las? E que se entendesse que, se havia prostitutas, é porque havia senhores honrados, de família, mantendo suas fachadas e disfarces, noivos (preservando a virgindade de suas futuras esposas) e maridos, além de esposas que preferiam que os seus cônjuges fossem gastar sua chatice, sua falta de imaginação, em outros leitos, esses, os respeitáveis, que pagavam por seus serviços. Alencar colocou tudo isso nessa novela, um dos livros mais corajosos da Literatura Brasileira. Grande Alencar, ue,  entre outras virtudes, não fugia de polemizar com seus críticos, e que foi precursor de Machado, o qual reconheceu sua dívida literária ao autor de Lucíola.

 

         Deixe que raivem os moralistas! (...)

         "Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião antes queria desistir do meu propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da época, aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião tem o mesmo efeito da máscara, o de aguçar a curiosidade .

 Por isso quando em alguns livros moralíssimos vejo uma reticência, tremo! Se uma curiosidade ingênua de 15 ou 16 anos passar por ali, não verá abrirse em cada um desses pontinhos o abismo do desconhecido.

 A minha história é imoral; portanto não admite reticências"

 

Lucíola, de José de Alencar   

 

               Se o espírito de Alencar ao escrever Senhora e Lucíola, ou a ousadia de Machado, ao compor tantos e tantos personagens femininos que desafiavam a época, inclusive sua Capitu, prevalecessem, não teríamos tantos problemas para atrair leitores.

               Mas, será pecado, escrever sobre o pecado?

               Possivelmente. Lembrem exemplos como o de Madame Bovary, que se apaixonou pela paixão, na leitura de tantos e tantos romances, e a tal ponto que se tornou adúltera. Lembrem que Flaubert foi levado a julgamento pelo dano que causara à moral por escrever Madame Bovary. O pecado contamina. O diabo e suas tentações. Cristo resistiu, mas não Madame Bovary (nem Anna Karenina, de Tolstoi; nem Luísa, em O primo Basílio, de Eça).  E Deus, onipotente, pode não prevenir os males da leitura de Literatura, às vezes chamada de enfermidade bovaryana, mas que também havia afetado D. Quixote – que de tanto ler novelas de cavalaria, contaminado foi, enlouqueceu: resolveu se tornar ele próprio um cavaleiro andante num tempo em que já não existia a cavalaria andante. E, no final, ao recuperar a sanidade, morre!

Como Odisseu, que desceu ao Hades e lá teve de enfrentar o que havia de mais inumano na imaginação dos gregos, o terror maior dos gregos, o esquecimento e a escuridão que negavam o que constituía ser grego no mundo, também D. Quixote teve sua descida ­ - à Caverna de Montesinos. Foi lá seu enfrentamento final consigo mesmo, contra Frestão, o mago, e o resgate de sua alma. Mas, como saudar, diante dos puros, a essas criaturas que descem ao (seu) submundo para se encontrar, e suscitam assim seu apogeu, em vez de, para tal propósito, ascenderem aos céus?  Aos que choram riem consigo mesmo, ao entregarem-se a um romance, e o tomam para suas vidas? Vivenciam-no?

E a criação de Cervantes é também uma obra fundadora. Aquiles, Odisseu, D. Quixote, Drácula, Tom Sawyer e Huck Finn (pode-se interpretar que foi também para se verem num mundo no qual não seriam obrigados a irem à missa, e conhecerem as consequências disso, ou seja, se viria ou não o castigo, que fugiram de casa, todo o bando deles, e fundaram seu reino aventuresco, numa ilha no Rio Mississipi), como Peter Pan e sua Terra do Nunca, cuja rota de vôo pede para virar à direita na segunda estrela, depois sempre em frente; como Alice, e o seu universo  revirado; como o mundo-resultado da peraltice de Emília, privado do Tamanho e no qual as crianças tomaram o poder; e como o monstro de Frankenstein; todos eles prescindem de Deus para nos chegar ao espírito, e sequestram- nos o espírito; os romances nos engolem, sumimos dentro deles nos momentos de êxtase/leitura; e graças ou por culpa, entre outros sortilégios, de aberrações para as quais seus criadores, seres humanos, não deveriam ter o poder de criar vida, mas o roubaram dos céus, como um Prometeu contemporâneo, a esse mesmo dom da vida, para os tornarem, seus personagens, seres, criaturas semelhantes a nós, e metaforicamente vivas.    

Blasfêmias. Abençoadas blasfêmias.

Causam dúvidas sobre a existência de Deus, não só esses triunfos da Literatura – ao recriar a vida (e ao recriar no leitor o sentimento da vivência da vida: o amor e o ódio aos personagens, por exemplo; ou o medo à trama e ao monstro)...  –, mas também essa nossa fragilidade diante da contaminação literária. 

Como um vampiro. Que quando suga o sangue de suas vítimas e as faz beber o fluido maligno, enegrecido, que corre putrefato em suas veias e artérias, as corrompe,  extirpa a virtude, dos mais recatados, a bondade, dos mais bondosos e tementes, e faz com que todos virem abominações demoníacas, como ele. Signos de nossa fascinação pelo  irracional e do quanto o necessitamos para nos vermos mais intimamente. Espelhos, como o retrato de Dorian Gray. Assombrações que nos arrastam para a entrega, para “paixões que nunca tiveram fim”, como Carhy arrastou Heathcliff em O morro dos ventos uivantes.

               Sim. A solidão inerente ao nosso espírito fica mais intensa e amarga num mundo privado de deus. E de Verdades. Mas... Deus existe? Onde está que não toma providências quanto à infâmia que nos cerca? Também não é essa a polêmica, a clandestina pergunta subjacente a tanta Literatura? Como Zeus, que instituiu o Cosmos (ordem) contra o caos de Cronos, não pode também triunfar sobre a vilania mundana?

Daí, evocamos mundos, universos e vivências em  paralelo ao mundo temente, nos quais, na batalha dos deuses contra os titãs, Cronos, e não Zeus, pode ter triunfado. Ou em que os deuses foram destronados.

Talvez isso se deva ao capricho das musas, que dotaram a Literatura de algo além da Verdade – quando era tão somente a Verdade que pretendiam os deuses que os humanos conhecessem.  Mas confessaram, elas, as musas, a Hesíodo, em Teogonia, que se tinham o poder de trazer aos mortais a Revelação (Alethea), o conhecimento do que era divino, as mensagens dos deuses, também podiam lhes transmitir a outra coisa (Pseudea); e  ensiná-los a mentir.[10]  A ficcionalizar? E é assim que Aristóteles louva Homero:

 

Homero foi o grande mestre dos demais poetas

em dizer falsidades como se deve.

 

                                                     Aristóteles, Poética, 1460a 18-19

 

               A Poética de Aristóteles tem um herói, um protagonista; é esse Homero que duvidou da verdade dos deuses, ao imitar a vida, ao transcendê-la, ao fundar-lhe inéditas Dimensão e Cosmologia, ao dotar a Literatura de seu Era uma vez , de seu Abre-te Sésamo,  de seu Alf Layla wa-Layla (1001 Noites, ou Infinitas noites), do seu Faz de Conta e do seu ... Pirlimpimpim! Que desenvolveu ao máximo, em seu tempo, a arte de dizer falsidades que despertavam emoções verdadeiras: A Literatura.

Teríamos melhores chances de democratizar a Literatura, de disseminar a Literatura, sem censores que se interpusessem como barreira/obstáculo/intermediários entre o autor e o leitor, se investíssemos mais decididamente nesse atributo de verossimilhança da Literatura.  Que os leitores decidissem o que vai ser lido ou não. Que a Literatura contemplasse a infinita variedade, a diversidade de indivíduos-leitores, e não fosse submetida a fôrmas, objetivos pedagógicos, doutrinações políticas, e outras ocas funções sociais e parâmetros. Que não fosse usada como mala (sem alça) para conter propaganda nem partidária, nem religiosa, nem cívica, nem nenhuma outra. Que fosse plenamente uma Literatura do Encantamento.  

               Retomando... O que isso tem a ver com as inquietudes sobre a existência de Deus, não sei, ao certo, não tenho certeza. Será mesmo que se receie a possibilidade de imiscuir-se, invisível, num rompante literário, o Outro, o Adversário, o Mal, Satanás ou afins? Que se anteveja num romance ou conto ou poema a possibilidade da vitória da tentação?  

               As 1001 noites  foram compostas por nômades, os que percorrem os desertos, e adoram, não, deuses em altares fixos, mas  as estrelas, ou constelações. As estrelas, em comunhão com os beduínos, têm um percurso nos céus. Para os nômades, os oásis (em árabe: “o lugar onde o camelo se ajoelha”) eram vitais. Era onde renovavam seus estoques de tâmaras e de água. Mas os donos dos oásis eram djins (ou ifrites, ou gênios). E djins são caprichosos. Ao surpreenderem um ser humano, podem se apaixonar por ele e sequestrarem-no (para suas cavernas sob os oásis), ou podem devorá-los. Para aplacar os djins, e dar algo em troca por estarem invadindo seus domínios, os guardiãs da tradição das tribos nômades contavam histórias à volta das fogueiras, à noite. Histórias que, no que os beduínos visitavam as cidades, misturavam-se ao alarido dos enormes suks (mercados). Foram essas histórias que Sherazade recontou ao sultão Xariar, o homicida recalcado. Aquele que não conseguia superar o fato de ter sido “traído” pela esposa. Mais um que era menos homem do que ela, Sherazade, era mulher. Essas histórias tinham de ser poderosas, sedutoras, sensualíssimas, gastronômicas e fabulosas. Miraculosas.  Capazes de extirpar a loucura do sultão, ou ele mandaria cortar a cabeça da jovem persa das noites  árabes. Essas histórias,  que existiam muito antes de Alah ter sido inserido entre um parágrafo e outro (já então nas versões escritas), eram pagãs em sua origem.  Não havia Deus nesse mundo.  E mesmo Sua  introdução, em remendos, não suprimiu o encanto que trouxeram do murmúrio das dunas dos desertos e da penumbra das vielas dos suks. 

               Mundos onde entrevemos, pressentimos, que não haja o pressuposto da existência de Deus são muitos, são quase “a” Literatura. Até porque Deus seria uma solução monocórdia, fácil, previsível, se fosse aplicado com frequência. Vira e mexe, desceria no final e resolvia tudo. Ex-machina. E assim desmilinguiam-se todas as tramas. Bastaria sempre pedir um milagre e os personagens seriam atendidos.

Considerem Sherlock Holmes, aquele que se declarou, sem a menor cerimônia, ignorante  em Astronomia[11], por que a matéria não interferia em seu trabalho. Ele aceitaria tal intromissão em seus embates com o pérfido Moriarty? Jamais. Antes disso, quanto mais ele, pediria seu boné.  Hercule Poirot, de Agatha Christie – esse então!  -, diante de uma ameaça dessas de alguém, mesmo que fosse Deus, lhe roubar a cena final, justamente quando suas pequenas células cinzentas podem exibir todo o seu brilho, arrancaria seus adorados bigodes.

Há quem se ressinta dessa omissão. No entanto, a Literatura é feita também dessas  súplicas de milagres que são ignoradas. Pedir um milagre é uma aposta mais alta, um risco maior do que a Fé. A Fé pode mover montanhas, contanto que sejam montanhas espirituais. Pode existir sem provas, sem testes. O milagre é o teste. É o pedido direto da intervenção de Deus num episódio agudo, cruciante, do cotidiano. Se o pedido fica sem resposta... então a fé estremece; em contrapartida, a trama cresce.

Daí, muitos, não podendo obter milagres no cotidiano, consideram seu cotidiano um ou vários milagres. E dão graças por isso. Como disse: são felizes. Desde que não extrapolem seus pedidos.

Portanto, que chamem o Inimigo do Bem como quiserem, ou que desconheçam a necessidade de sua presença na Literatura aqueles que não o têm como representação de alguns de nossos maiores temores.   

Até, por exemplo, o medo de que o Mal possa contaminar o Bem, como o Drácula contamina Mina Harker.[12]  A boa esposa de Jonathan Harker, numa súplica desesperada, pergunta em voz alta – para quem? uma prece? – o que adiantou ter se mantido virtuosa, temente a Deus, para ser infectada daquela forma rudimentar (algo sensual?) – uma mordida no pescoço – por um ser das trevas. Para se tornar sua escrava, em todos os sentidos. Aliás, que trevas seriam essas, se não as mais recônditas, as mais renegadas, ocultadas e condenadas pulsões do nosso espírito/mente, como preconizaria Freud décadas depois? Seria o mal também uma criatura do ser humano, à sua imagem e semelhança, como os deuses...?  

E não esquecer que o mal, como prega Henry James,  será ainda mais devastador, impactante, se o escritor (blasfemo) o fizer brotar  da inocência, como das duas belíssimas criancinhas de A volta do parafuso (1898). Que Deus está pressuposto, num mundo em que crianças são possuídas por espíritos pervertidos que pretendem reencarnar nelas para poderem assim, corporalmente, retomar sua devassidão? Ou como na novela de Stephen King, Cemitério maldito (Pet Semitery), em que até um bebê se torna um ressurecto maligno e mata a própria mãe? Ou em O iluminado (que recentemente ganhou sua continuação a história da vida adulta do garotinho que tinha a capacidade de enxergar o Mal, em Doutor Sonho), onde o pai tenta trucidar o filho a machadadas?

Enfim, se a Literatura de Terror nos faz vivenciar situações em que o Mal corrompe o Bem, onde está Deus nessas obras? Se o Mal também pode se confundir com o Bem [compartilhar as mesmas mente & alma, como em O médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson, e nos contos de Edgar Allan Poe – 1809-1849], se pode também constituir-se “à imagem e semelhança” de seu criador (o ser humano, no caso), teremos mais motivos de dúvida e de inquietudes. Por exemplo, Hamlet e seu fascinante desvario, motivado pelo pedido de vingança do fantasma de seu pai, e que ocasiona o extermínio de praticamente todos os personagens da peça – seria ou não seria a afirmação da arte para além do Bem e do Mal?  Onde, nesse desolador monumento da Literatura Ocidental, há  brechas para a presença/intervenção clemente e compassiva de Deus?

Mas, Deus, ou  os deuses,  com o atributo da onipresença, deveriam estar em todos os lugares. Têm de estar. É a Fé. Onde intervêm, então, na Londres de Holmes e Watson (em que Jack estripou suas vítimas, todas mulheres indefesas)? Na Baker Street 221B, ou no cometa 67P, onde se descobriu vida, ou mesmo nas florestas habitadas por lobos maus e bruxas devoradoras de crianças abandonadas pelos pais, que atraem suas vítimas usando como arapuca casinhas feitas de doces?

Muita Literatura questiona a existência de Deus. E não poderia existir como Literatura, se fugisse à polêmica.  E, sim, pode deixar leitores inquietos quanto a essa questão, à deriva, ao léu, permitindo que a dúvida se infiltre em seus pesadelos, se ele sentir-se num mundo sem Deus, ou mesmo imaginar um mundo sem deus.

Como em O cair da noite,  de Isaac Asimov (1941). No conto, os habitantes de determinado mundo viviam sempre sob a luz de um dos tantos sóis em torno dos quais a órbita excêntrica do planeta os conduzia. Desconheciam a escuridão da noite. A rigor, não havia noite. E toda a visão de mundo, a coerência e o autoconhecimento de cada um se baseava num universo sem mistérios, às claras, delimitado, rolando de sol a sol conhecido, reduzido a um percurso, como o itinerário de uma linha de metrô, com seus trens sobre  trilhos. Nunca havia uma visão dos céus inescrutáveis. Exceto uma única vez, a cada 1000 anos (se não em engano, era esse o intervalo, um milênio), em que aquela mesma órbita excêntrica os fazia mergulhar por um curto período na escuridão. Então,  viam estrelas. As bilhões de estrelas, o infinito de galáxias. E se davam conta do tamanho, da imensidão do universo. E enlouqueciam. Toda uma civilização. Enlouquecida. Destruía-se.

Como se um leitor de repente piscasse e se visse num mundo sem deus, transportado a tanto por um apelo, sem resposta, do desesperado Edmund Dantés,[13] pedindo um milagre para salvá-lo da injusta prisão por falsas acusações, como resultado de sórdidas tramas e traições de amigos.  Dantés foi atirado num mundo sem deus. E é privado de deus que emerge dali, de seu subterrâneo, para sua impiedosa vingança.

Para tais vivências nos leva a mais requintada Literatura. Há perigo, de fato.

Assim, a questão subliminar à Literatura desde a sua fundação continua potente.

               No entanto...

Mesmo sendo escritor, tenho alguma noção do perigo. Não quero ser demonizado, apontado como blasfemo, marqueteiro do demo, difusor do mal; não quero que meus livros sejam proibidos em determinadas escolas, não quero ser vetado em compras governamentais, nem olhado com desconfiança por certas editoras. Assim, cabe aqui uma declaração, e é sincera. Creio em Deus. Não sei como ele é, nem o que é, mas o sinto, dentro de mim e ao meu redor, no mundo, em momentos de amor, do amor que a gente dá e recebe. E há tantos momentos assim. Quando estamos com nossos leitores,  por exemplo, ou com professores heroicos, apaixonados pela Literatura, e com os tantos que lutam para que o ser humano se desenvolva e atinja o plano da fraternidade, da comunhão com seus semelhantes.  Creio nesse Deus, que não sei em que panteão está. Eu o sinto. Mas não pretendo nem sou capaz de convencer ninguém da existência dele. Muito menos com minha Literatura. Trata-se de um sentimento íntimo, como escreveu, para outro fim e contexto, um anjo, Machado de Assis. Aliás, só para constar, meu apartamento é habitado e mesmo repleto de anjos. Creio em anjos, não sei por quê, mas, desde que os conheci, creio em anjos.  

               Só que isso não me impede de sentir também, por vezes, o abandono. [14]A solidão cósmica. O desespero. O torpor, a impotência diante do desamor.A incompreensão diante da chacina de inocentes. O inconformismo contra  a violência que sofrem. Contra as diversas maneiras de hediondez.  Contra a miséria, a fome e a ignorância. Minha fé nesse deus não me leva a acreditar em dogmas, nem na necessidade de defendê-los. Pelo contrário, me leva à opção por combatê-los. 

Não apenas a aceitar, mas também a provocar e estimular a polêmica. A rejeitar a censura como um crime contra o Humanismo, a inteligência, o desenvolvimento do ser humano, a Humanidade e a humanização da vida. A amar a Literatura como uma das mais belas criações do ser humano, aquela que pode pôr espírito (ou alma) em contato com outro espírito (ou alma), que então se mostram –  vindo do ser humano  e para o ser humano,  do ser humano para a natureza – à imagem e semelhança de Deus.

Afinal ...

A beleza de uma metáfora está na sua liberdade.

Quem ama a metáfora não a aprisiona.

Não a explica, nem a dissolve, nem tem como fito único resolvê-la.

Quem teme a metáfora, busca contê-la.

Quem a ama, cultua-a, e assim ela se prolifera.

Segredos de liquidificador.

A metáfora seria “metamorfose ambulante”,  antítese da Verdade, enquanto atributo divino, e das interpretações preexistentes, anteriores à leitura, das assertivas fossilizadas, dos clichês (de raciocínio, inclusive) e do autoritarismo.

A metáfora é mais do que radical, é revolucionária . [15]

Como se fosse um cometa, a polinizar a vida, não em um planeta pré-determinado – um cometa, quando se solta de seu aglutinado de pedras de gelo, nunca sabe onde vai cair, e nem mesmo se algum dia vai cairá em algum planeta. Nem por isso se pode negar que ele, assim com o CP 27 e milhões de outros, esteja  impregnado da magia da Criação.

Quando eu era criança. Era mais ou menos pecado perguntar se havia planetas fora do Sistema Solar. Como se nos indagássemos se havia algo fora da alçada de Deus. Hoje, conhecemos... 10 mill exoplanetas? E como estaremos em mais um século, se o fanatismo e o obscurantismo não nos abduzir? Talvez, perguntando...

Alguém nos escuta aí em cima?

Deus existe?

Existem os deuses?

Trata-se de uma indagação que, só por ser feita,  causa polêmica. Há quem a proíba. Tanto ou mais quanto deflagra polêmica discutir a censura à Literatura que dá expressão a essa inquietude.               

Mas, que tal arriscar fazê-lo? Podemos nos encantar com as veredas do tema.



[1] Em HOMERO Aventura Mitológica, de Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro, Galera, 2014. Os versos de Homero são uma tradução/adaptação livre do autor do artigo e estão referenciados em Ilíada, Canto XXII, 338-355, 395-409.

[2] O HADES é o  reino dos Mortos, o subterrâneo, o submundo. Um lugar físico, com entradas (mas, a rigor, sem saídas). Não pode ser confundido com o inferno (cristão), já que para o Hades vão todos os espíritos dos falecidos, e não somente os dos pecadores. Além disso, temos Hades, irmão de Zeus, Senhor do Reino dos Mortos, um deus da mais nobre e poderosa estirpe; e que não pode ser confundido com Lúcifer, o anjo caído. Que Zeus, senhor do universo, da Terra, dos céus e de todos os seres e deuses,  e Hades sejam irmãos, filhos dos mesmos genitores, Cronos e Reia, é no entanto uma ironia mitológica, para mim, que pode receber inúmeras interpretações.

[3] Já alguns, de outros panteões, são  mortais, como os nórdicos, por exemplo. Odin e toda a sua corte de Asgard, inclusive o poderoso filho do Pai de Todos, Thor, existem, sombriamente, sob a profecia que anuncia a  morte deles no Ragnarök, o fim do Universo criado pelos deuses.

[4] Ver O Caso Édipo, minha novela-thriller editada pela Ventania Editorial.

[5] Podem duas onipotências sobrepor-se? Uma e somente uma já não preencheria todo o Cosmos, e portanto necessitando ser única? Podem duas onipotências ocuparem o mesmo Cosmos?  Que potência teria uma diante da Outra (Onipotência)? Pode uma contrapor-se à outra? Contrariar a outra? Pode um autor escrever (Revelar... ? Como Prometeu fez com o fogo) algo, contrariando a vontade (ou capricho, ou determinação) de Deus? Pode dispor de seus personagens e história e enredo, sob a tutela de uma Onipotência externa? Enfim... A Literatura desmente a onipotência de Deus, e a ele próprio como entidade máxima? Ora, não podendo duas potências serem Absolutas e Únicas no mesmo recorte do multiverso, suponhamos... ou a Literatura – e a Onipotência do Autor sobre o que acontece na história, enredo e personagens – está fora do arbítrio de Deus, existe onde Deus não existe; ou há que se negar uma das duas, atribuir-lhes inexistência, seja ao autor, que não seria autor então de suas obras, mas intermediário (como Homero, das musas), seja a Deus ou aos deuses. Os devotos não temem por nada a Literatura livre de censuras. Até porque a Literatura, ao contrário da Fé, rejeita a Verdade, a única, onipotente. E são essas algumas das imensas dificuldades de alguém, a mesma pessoa,  amar a Literatura (sua autonomia e poder de criar realidades) e devotar-se a Deus. Seriam duas entregas exigentes e desmensuradas em demasia, a ponto de não caberem numa única e mesma pessoa. Ou não?

 

[6] Rio de Janeiro, Rocco, 2 000, p.193-194.

[7]  A criação Imperfeita, Rio de Janeiro, Record, 2010.

[8] São Paulo, Conrad, 2011.

[9] Histórias, Heródoto, Livro II, 53.

[10] Teogonia, 25-30.

[11] Em Um estudo em vermelho.

[12]  Drácula, Bram Stoker, 1897.

[13] O conde de Monte Cristo, Alexandre Dumas, 1844.

[14] Ah...  A delirante vontade de voltar atrás no tempo, refazer o mal feito, ou de ter vidas sobressalentes para poder, numa,  plantar couves, e noutra, embarcar em tapetes voadores. Ah, como é doloroso arrancar do peito miragens que se aferram lá com pinças de escorpião... Como sangra, deixar para trás uma tentação! Sinto certa empatia pela frustração de Aquiles, o quase-deus, sua insurgência, e isso por ter lido Ilíada. Obrigado, Homero.

 

[15] Como disse Malala Yousafzai, ativista paquistanesa que, no ano de 2014, aos 17 anos, se tornou a mais jovem ganhadora do Premio Nobel - ganhou o Nobel da Paz: “Descobri o que mais assusta um tirano: uma garota com um livro debaixo do braço”. Aos 14 anos, Malala foi arrancada de seu ônibus escolar por uma milícia talibã e baleada no olho, por conta de sua campanha para que as meninas paquistanesas pudessem frequentar a escola e ler livremente. Sobreviveu depois de uma dura cirurgia e continua defendendo seus ideais. Viva Malala! Viva Alencar! Viva Homero!