Piratas…
Long John Silver & Jack Sparrow
vs.
Virginia Woolf
Ou… Clássicos &
Pops x Modernistas…
Quebra-pau na
Literatura
BULA de Leitura:
Indicado somente Para Leitores Cascudos
E... para quem tem aquela vontade secreta e inconfessável de
começar a gostar de ler... (tentação à la Jekyll &
Hyde)...
Contém estraga-prazeres (spoilers)
O pirata
Long John Silver é o astro
inconteste de A ilha do tesouro, o
romance mais popular do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894). Não é para qualquer um criar um personagem que
produza uma reação tão complexa no leitor (e isso há já mais de 1 século). Não
tem quem não se sinta agarrado por
sua lábia e seu poder de sedução. E ao mesmo tempo, há (muitos) momentos em que
torcemos para que ele termine a história na ponta de uma corda, bem enforcado,
como todo pirata deve ser.
Não existe
uma palavra para defini-lo entre Bem e Mal, Vilão e Herói. Ele rouba a cena. E
captura nossa atenção por conta de fascinantes detalhes de composição
(novamente: vai ser bom escritor assim na Ilha do Tesouro); pela intensidade,
quase febril, de sua atuação; pela sua
habilidade de dissimulação – que nem sempre nos dá certeza se ele seria ou não capaz
de praticar alguma tremenda maldade contra Jim, o adolescente-protagonista da
história -; e até pela sua presença física
em cena. É como se estivéssemos ao seu lado, a bordo do Hispaniola, ou na Ilha.
Não é a
única excelente criação de Stevenson e não o único personagem em que ele
trabalha essa zona de penumbra, essa ambiguidade (tão assustadoramente humana).
O Dr. Jekyll, o médico de O médico e o
monstro também tem um íntimo que parece uma caverna repleta de reentrâncias
– e isso mesmo antes de beber a célebre fórmula que o transforma no Sr. Hyde.
Dá para se perguntar, com uma leitura mais de
lupa, se esse medico com tantos segredos, e uma vida oculta, fora das
vistas da sociedade vitoriana – a Inglaterra do século XIX, sob a Coroa da
Rainha Vitória: uma sociedade moralista, formal, repressora, intolerante – se transforma
no monstro justamente porque o
monstro, ou o que ele entendia como tal, já habitava seu espírito. Faltava
somente a Jekyll coragem para liberá-lo.
Por
essas e outras, Stevenson se tornou tão popular. A ilha do tesouro não lhe rendeu muito dinheiro, mas o tornou
famoso, principalmente entre os adolescentes, para quem a história foi escrita.
E O médico e o monstro lhe trouxe a
admiração de outros escritores, como, na época, Henry James (1843-1916) e, mais
recentemente, Vladimir Nabokov (1899-1977) e Jorge Luís Borges (1899-1986).
A Ilha do Tesouro
em filme da Disney
que assisti quando era garoto...
São
incontáveis as criações na cultura pop
que se inspiram nos personagens e enredos de Stevenson. Para citar um dos mais
famosos, temos o Capitão Jack Sparrow,
de Piratas do Caribe, que reza pela
mesma cartilha ética e moral de Silver. É um canalha charmoso – o que vai se fazer?
Gostamos dele, contanto que desconheça onde guardamos a chave de nossa casa,
nem queira namorar ninguém da nossa família. Além disso, Sparrow (o Capitão Sparrow, como insiste em ser
chamado) é tão peculiar, tão exótico, tão rico em detalhes...
Com tamanho
legado, no entanto, Stevenson não permaneceu como uma unanimidade na Literatura
do século XX. Alguns escritores e
críticos de prestígio, da geração seguinte, os modernos[1],
o rejeitaram. Na Inglaterra, poucos encarnaram
esse novo espírito e sua fantástica
ousadia e liberdade de criação literária como Virgínia Woolf (1882-1941) e seu Grupo de Bloomsbury (bairro londrino onde costumavam se reunir, na residência
de Woolf).
Os
modernos rejeitavam o passado vitoriano,
e tudo o que pudesse, no entender deles, evocá-lo. Poderiam escolher qualquer dos
autores do século anterior (Oscar Wilde, Charles Dickens, Henry James), mas
elegeram Stevenson como seu alvo principal. Os críticos do grupo – com amplo
espaço nos jornais da época - o odiavam.
Woolf e seus colegas aproveitavam toda e qualquer oportunidade para desdenhá-lo
publicamente.
Por
quê? Bem... Toda sucessão de movimentos literários é conflituosa. O movimento
que tenta se firmar geralmente busca formar sua identidade diante do público
marcando suas diferenças em relação ao momento anterior, seus autores e suas
obras mais representativas. Sábio ou não, é assim que acontece. Não deixa de
ser engraçado a londrina Virgínia Woolf
acusar o escocês Stevenson (a Escócia foi dominada pela Inglaterra num processo
doloroso, sangrento; e essa submissão nunca deixou de ser contestada – como aliás
acontece ainda hoje), conhecido por suas denúncias quanto a mão pesada da Coroa
Britânica sobre outros povos, de ser um vitoriano.
Stevenson
era um autor popular, lido amplamente (ao contrário do Grupo de Bloomsbury, que
produzia uma Literatura erudita, elitizada, lutando ainda para ganhar seu terreno).
Além do mais, Woolf e os modernos praticavam
uma prosa-poética, cuja liberdade estava,
entre outros aspectos, em ousar enredos e personagens tão pouco densos, tão
apenas sugeridos, como se existissem apenas em meio à bruma sobre o Tâmisa, e
se desfizessem no ar, no que alguém tentasse se aproximar deles. Como uma
Literatura dessas iria conviver pacificamente com os enredos eletrizantes de
Stevenson e, principalmente, com um Long John Silver, que desde que surge em cena, ganha materialidade, para o
leitor, como se pudéssemos escutar sua voz,
farejar seu hálito de bebida, quando não sua nhaca de pirata, de poucos banhos
por ano e roupas sem troca? Orlando,
de Woolf, é um magnífico personagem, mas uma criatura de natureza diferente. Totalmente antagônica. Incompatiblidade de gênios.
Robert Louis Stevenson
Por conta dessa marcação em cima, Stevenson foi excluído das antologias mais conceituadas, dos estudos, listas dos melhores escritores (que nas universidades e círculos de estudiosos é chamado de “cânone”) e da leitura em escolas e colégios por todo o século XX. Houve escritores e leitores que teimosamente protestavam, tentando resgatar o seu prestígio. No entanto, isso praticamente só foi acontecer no século XXI.
Menos mal
sabermos que, ao longo dessas décadas de exílio,
ele teve ao seu lado tantos e tantos e cada vez mais amorosos aficionados. A
cultura pop devolveu Robert Louis
Stevenson ao seu lugar merecido, na Literatura. É característico do pop: ser popular não é demérito, pelo contrário. Além disso, a Literatura
Pop tem muito a ver com os clássicos do século XIX e pouco, com os modernistas. [2]
Na grande ampliação do público leitor, de hoje
em dia, principalmente em gêneros como o Terror, o Mistério e a Aventura, devemos
estar atentos para os descendentes literários
de Robert Louis Stevenson, e para obras que vêm se tornando grandes sucessos ao
fazer leitores sonharem acordados – o
que acompanha o que o autor de A ilha do
tesouro sempre declarou como sendo o seu maior propósito na Literatura.
#paraleitorescascudos #minhapátriaéaliteratura
Nenhum comentário:
Postar um comentário