quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

OS MAIORES

QUASE-MONSTROS

DOS CLÁSSICOS

Heathcliff & Javert & Ahab

e Outros…





PARA LEITORES CASCUDOS
Obsessão em Cena
Amor, Ódio e Qualquer Coisa entre um e outro





(contém estraga-prazeres, aka. spoilers – desculpe, leitor, mas aqui não teve jeito ...)




            Três personagens para dar pesadelos: Heathcliff, o inspetor Javert e o Capitão Ahab.



[Acima: Emily Bronte, Alexandre Dumas e Herman Melville]



Modelados com a obsessão como matéria-prima, são sombrios, implacáveis, autodestrutivos. Nada importa, nem pessoa alguma, que não seja o objeto de sua ânsia. E tão misteriosos, tão prodigiosamente enigmáticos e, portanto, nas suas profundezas turvas, tão humanos, que se tornam assombrações (não há assombrações não-humanas, há?). Fantasmas do que podemos temer que aflore em nós próprios.
Hoje seriam chamados facilmente de radicais. De irados. Ou simplesmente de malucões. Não deixam de ser, mas são também modelos de genialidade na composição de personagens, algo típico do que os clássicos da Literatura podem nos oferecer.
          Heathcliff  estrela O morro dos ventos uivantes,  romance da inglesa Emily Bronte publicado em 1847. O personagem começa sua trajetória ainda menino, quando é encontrado pelo Sr. Earnshaw, vagando, abandonado, em Liverpool. Trazido para a mansão da família, em Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes), ele cresce,


[Laurence Olivier como Heathcliff, em filme de 1939]

apaixona-se pela filha de Earnshaw, Catherine. O amor é mútuo e, por todas as diferenças sociais envolvidas, proibido. Resumindo, Catherine morre, Heathcliff foge, enriquece, volta, compra a propriedade dos Earnshaw e passa a viver dedicado a se vingar de todos os que considera culpados por sua tragédia pessoal. Torna-se uma sombra, um fantasma-vivo... Até morrer, perseguindo seus delírios.
                É provavelmente o personagem mais febril, mais enlouquecido pelo amor, de toda a Literatura. E o que mais devotadamente transformou seu amor em ódio. Há quem o considere um herói romântico. O máximo em termos de auto-aniquilação por razões amorosas. Nenhum personagem amou tão loucamente quanto Heathcliff. Há aqueles que o consideram, por tudo o que fez, um monstro. Seja como for, O morro dos ventos uivantes é um modelo, até hoje, de história de amor do tipo devastação total. Alguém quer escrever algo do gênero, ou ler o que de melhor se fez no gênero, ou o que deu origem ao gênero? Leia O morro dos ventos uivantes.
     O inspetor Javert é uma criação do romancista francês Victor Hugo, em Os miseráveis (1862).  Javert rouba a cena daquele que seria o virtuoso herói, Jean Valjean, e do casal romântico, Cosette e Marius. É magnético, perturbador. Passa todo o romance obcecado, à caça de Valjean, um ex-presidiário. Parece feito de granito, tão inabalável é a sua certeza do que deve fazer e sobre a correção de seus atos. Ele jamais hesita. Não tem vida pessoal; pelo menos, o que nos é mostrado é que ele é todo a  caça a Valjean. E parece também cruel... mas, talvez, somente pareça. Como saber? Não há uma palavra precisa para defini-lo, entre o Bem e o Mal.


[Inspetor Javert]


Na sua cena derradeira, quando poderia enfim destruir Valjean, que acaba de salvar a sua vida (nada a estranhar, pois Valjean, apesar de um perseguido pela Lei, que Javert representa, possui nobreza de espírito, justamente algo que não se espera em Javert) , em vez de denunciá-lo, ou prendê-lo, suicida-se. A perda de sentido de sua existência, que o leva ao auto-extermínio,  é de uma complexidade infinita, uma armadilha, saia-justa para toda interpretação/compreensão, na qual somente uma obra prima da Literatura pode nos meter. Ao mesmo tempo, para um personagem desses, o que lhe restaria a viver, se não consegue mais ser o perseguidor de Jean Valjean?
            Um personagem não é somente empático/carismático se é do Bem. Nossos terrores e ansiedades também podem ser encarnados por personagens malignos. Ou pelo menos ambíguos, nesse quesito; almas penadas da zona do crepúsculo. Nem divino, nem demoníaco; algo trans. Coisas da Literatura...
Já o primeiro de todos os personagens obsessivos,  o Aquiles, de Homero, em Ilíada, nos intriga e horroriza com sua sanha de apressar o desenlace anunciado, de ir logo ao encontro da morte que lhe fora profetizada. E toda a carnificina – incluindo nisso as atrocidades cometidas contra o cadáver de Heitor – que protagonizou, em honra de sua morbidez. Outro, na mesma linhagem, seria Hamlet, de Shakespeare, cuja obsessão (até hoje não me convenço de que a cena que o fantasma do rei assassinado aparece não seja um delírio de Hamlet, gerada pela semi-loucura que já o domina) o faz despencar num abismo e traz a morte a todos à sua volta (a peça, fundando o clichê, termina por falta de personagens, e nenhum diretor hollywoodiano conseguiria um final mais sangrento), incluindo o próprio Hamlet – algo inevitável, desde a primeira cena, seguindo-se a torrente dramática da história e do personagem.
O que dizer então de um Capitão Ahab, de Moby Dick (1851)? Somos apresentados a ele (depois de muito suspense em torno da sua estranheza) já a bordo do  baleeiro Pequod, do qual é o capitão. Mas, sua tragédia, sua sina inescapável se inicia numa viagem anterior, quando, no mar, tentando abater a baleia branca, o mamífero gigante e sobrenaturalmente inteligente decepa sua perna. Ahab quer vingança.


[Capitão Ahab]



Mais do que querer, ele é possuído pelo imperativo da vingança. E toda a sua pessoa se torna a mutilação, corpo e alma. Cada palavra, gesto, expressão de rosto ou atitude se voltam para um único propósito: matar Moby Dick.
Com um material desses em cena, a pergunta é o que restaria de Ahab, se ele conseguisse matar Moby Dick? Como sobreviveria, sem o objeto de seu ódio, para perseguir, e odiar cada vez mais? O que teria mais para fazer no livro (ou na vida)? Por um lado, Ahab e seus companheiros-personagens de purgatório terreno nos colocam (de novo: Coisas da Literatura...) em confronto com alguns dos mais enigmáticos, labirínticos, assustadores e fascinantes meandros do espírito humano, envolvendo o aprisionamento pelo ódio, pelo rancor e, novamente, pela obsessão. Por outro, o enredo, da abertura ao desfecho, é predestinado: Ahab irá causar uma hecatombe e sua própria destruição; ninguém (a não ser o marujo novato Ismael, que nos conta a história) a sua volta será poupado das consequências da sua insanidade.
Da sua obsessão.




Ahab é o fantasma e a maldição do Pequod. Há subordinados seus que enxergam isso. Tentam em vão alertá-lo, manifestam temor pelas suas vidas e augúrios lúgubres sobre aquela viagem que segue a rota da vingança. No entanto continuam a navegar com a morte a comandá-los.
Note-se que esses personagens, como outros dos clássicos, possuem uma solidez que será questionada pelos ficcionistas das gerações modernistas do século XX, nos quais se admira a fluidez de caracterização, de ação, de trama. São criaturas de naturezas diferentes das que encontramos, e nos tomam, em romancistas do século XIX.
Heathcliff, Ahab, Javert.  Tenho honesta inveja de criações desse porte. Vez por outra, as persigo, menciono e cito, em meus livros. Eu as admiro tanto...! Pelo menos um Javert já coloquei numa história (Sonetos nas Trevas).  Afinal, são personagens assim que se imortalizam e que fazem a Literatura tão extraordinariamente humana, que se torna extraordinária.


#paraleitorescascudos   #minhapátriaéaliteratura

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