A REALEZA
DO TERROR
Mary Shelley
Bram Stoker Robert Louis
Stevenson Edgar Allan Poe
e ainda:
sustos em série x terror profundo
[CUIDADO: contém estraga-prazeres, ou spoilers...]
#paraleitorescascudos #minhapátriaéaliteratura
O
terror existe na Literatura desde que Ulisses (Odisseu, em grego), no Canto XI de Odisseia, desceu ao Hades, para obter a profecia de Tirésias[1] sobre o rumo que deveria
seguir para retornar a Ítaca e aos braços de sua Penélope. Os mais populares e pavorosos monstros das
histórias assustadoras nasceram ali. É preciso ler aqueles versos[2] para se ter ideia do
horror que o herói enfrenta, algo que nenhum mortal, e principalmente nenhum grego,[3] deveria ter de suportar.
A aventura de HOMERO escrevendo
Ilíada e Odisséia
num romance mitológico
Daí se constata
que a Literatura de Terror tem uma linhagem nobre e milenar. Está nas origens da
Literatura. No entanto, quando nos referimos às histórias que se tornaram
clássicos do gênero – e que tanto influenciaram e influenciam a Literatura Pop
–, estamos mirando obras criadas no Romantismo, no século XIX. Isso porque a
visão de mundo do Romantismo acrescentou uma complexidade (e um efeito aterrorizante) até então nunca vista ao
Terror.
Ulisses
desce ao Reino dos Mortos. Tem contato direto com pavores inimagináveis, e até
mesmo com o espectro de sua mãe, Anticleia, que ele nem sabia que havia morrido
em sua ausência. No entanto, ao voltar à superfície (o Hades não é o Inferno; é um submundo físico, com entradas
e saídas que o comunicam com o Mundo
Solar), nada nele mudou. O contato com o terror não o contamina, não deixa
sequelas. Até porque os espíritos do Hades e os viventes são de natureza diversa
e inconciliável. Os espectros são imateriais, névoa escura; vagam, uivando
sempre, esquecidos de sua vida terrena, inconscientes; enquanto Ulisses é de carne e sangue, pele, músculos,
osso, memória e inteligência.
Odisseu no Hades
Algo
assim não acontece com o Terror Romântico. Ali, o contato com o terror deixa
marcas. Porque não estamos lidando com esferas de outra natureza, mas com um
terror que investiga o monstro que ocultamos, o (nosso) lado escuro, a aberração que
nos habita; ou aquela tentação recorrente à qual temos tudo para ceder. O Romantismo dilui os filtros e as diferenças
entre o natural e o sobrenatural. O terror está sempre à espreita.
Este é o
enigma (e o carisma) do Terror Gótico. [4]
Em Prisioneiro de Askaban, terceiro livro da saga Harry Potter, o adolescente-bruxo tem um pesadelo em que enfrenta um inimigo medonho, o qual, quando vai ver, tem o seu rosto. Harry Potter conversa sobre o pesadelo, que tanto o amedronta, com o seu professor, Remo Lupin, o lobisomem. Lupin observa que se trata de um presságio de sabedoria já que o terror que a pessoa mais deve temer é a si mesmo. Lupin sabe do que está falando. Sua condição aluada lhe acarreta sofrimento e depauperação. E com isso ele menciona o sentido fundamental do enlace entre o Romantismo e o Terror.
O monstro é uma metáfora desse horror que está dentro de nós mesmos, e do medo que a coisa aflore, prevaleça... Algo inato, perene, universal e tão Humano que se torna tema básico da Literatura. Ou por outra, enquanto o ser humano tiver seus horrores, ainda mais os que não quer perceber, a Literatura procurará, não, explicá-los, mas, lhes atribuir imagens - expressá-los.
Ou também... Há tanto sedução quanto repulsa, combinados, entre o vampiro e sua presa...
Em Prisioneiro de Askaban, terceiro livro da saga Harry Potter, o adolescente-bruxo tem um pesadelo em que enfrenta um inimigo medonho, o qual, quando vai ver, tem o seu rosto. Harry Potter conversa sobre o pesadelo, que tanto o amedronta, com o seu professor, Remo Lupin, o lobisomem. Lupin observa que se trata de um presságio de sabedoria já que o terror que a pessoa mais deve temer é a si mesmo. Lupin sabe do que está falando. Sua condição aluada lhe acarreta sofrimento e depauperação. E com isso ele menciona o sentido fundamental do enlace entre o Romantismo e o Terror.
O monstro é uma metáfora desse horror que está dentro de nós mesmos, e do medo que a coisa aflore, prevaleça... Algo inato, perene, universal e tão Humano que se torna tema básico da Literatura. Ou por outra, enquanto o ser humano tiver seus horrores, ainda mais os que não quer perceber, a Literatura procurará, não, explicá-los, mas, lhes atribuir imagens - expressá-los.
Ou também... Há tanto sedução quanto repulsa, combinados, entre o vampiro e sua presa...
Mary
Shelley, publicou Frankenstein ou o
Prometeu Moderno em 1818. Na trama, um jovem cientista, Victor
Frankenstein, cede à tentação de se equiparar aos deuses, criando a vida. O
resultado é catastrófico. Frankenstein é destruído por sua criatura (que não
tem nome, no livro, embora, para os leitores, tenha roubado o nome do seu
criador). No entanto, tanto pesa sobre o cientista a blasfêmia que cometeu (semelhante
à do mitológico Prometeu, que roubou o raio – ou o fogo, ou a inteligência
- de Zeus para dá-lo ao ser humano),
como o lema que sentencia a criatura
a guardar a imagem e a semelhança do seu criador. Afinal, de onde veio a personalidade
do monstro? De onde veio a fúria vingativa que o levou a assassinar todos em
volta de Frankenstein?
Mary Shelley
escreveu "Frankenstein"
aos 17 anos
Um Monstro sem Nome
aqui, interpretado por Boris Karloff
Caberia a Bram Stoker criar o mais espetacular
monstro do Gótico Romântico: Drácula
(1897). Os vampiros têm sua genealogia própria, na Literatura em língua
inglesa, que passa por nomes como John Polidori e Sheridan Le Fanu.[5] Mas, o que interessa aqui
é que o Romantismo, essa cosmologia tão especial na história das idéias e da
Literatura, propiciou ao terror o seu auge. Com o vampiro estabeleceu-se a ponte
entre o diabólico e o mundano. Ou seja, do fantástico com o leitor. A
possibilidade de contaminação.
Mais
ainda, Drácula, como seus citados antecessores, tem um componente de
sensualidade animal. A moralidade formal, ostentada pela sociedade britânica
dos tempos da Rainha Vitória, era inconciliável com ímpetos desse gênero. Mas,
o que precisava ser reprimido em público aflorava nos meandros escuros do
espírito. Uma mordida do vampiro torna-se ao mesmo tempo escravizante e
libertadora. Lord Ruthven corrompe os virtuosos. Carmilla desperta em Laura uma atração sensual, profana e antissocial, que ela, ao mesmo tempo,
não consegue aceitar, nem negar. E muitas das cenas do majestoso Drácula trabalham essa dualidade.
Capa da Primeira Edição
- 1897
Chistopher Lee, o melhor Drácula do Cinema:
O morto vivo imortal em seu Obituário
O que
acentua, então, o enlace do Romantismo com o Terror? A exploração de segredos do espírito humano, trazendo à tona personagens complexos,
dilacerados por dilemas, conflitos, inclusive da pessoa consigo mesma, como se
naturezas antagônicas estivessem, em nosso íntimo, disputando a prevalência sobre nossas decisões, nosso destino.
Drácula é uma leitura difícil. Até mesmo pelo seu modelo
de composição – é todo narrado por meio
de cartas, anotações dos diários e relatos dos personagens etc... Mas vale a pena vencer o
desafio, a dificuldade de leitura, para se conhecer um personagem que é ao
mesmo tempo absolutamente inumano – porque nos enxerga com olhos de um
predador, um chitá, ou um velocirraptor – e tão semelhante a um ser humano que nos sentimos atraídos por ele.
Afinal,
Drácula, ao preço de nosso sangue, do hálito cadavérico e da permanente palidez
da pele, nos oferece a imortalidade e a juventude eternas. Não é essa a tentação que empurra Bella a se entregar a
Edward Cullen? Fora o fato de ele ser lindo. Vampirescamente falando, é claro.[6]
E... se Victor
Frankenstein, consciente do que fazia, cometeu um pecado, aqui, uma virtuosa
mulher como Mina Harken, esposa modesta, inglesa até a medula, pode ser corrompida pela mordida do Drácula, quando não por seus anseios inconfessáveis... Donde:
o inocente não está a salvo.
Para mim,
Drácula, é uma criação ficcional à
altura de um Aquiles, de um Ulisses, de um D. Quixote, e de todos esses membros
do panteão de personagens que fundem o preto ao branco e a todas as cores e
matizes do espírito humano. É um dos melhores romances que podemos ler.
Mas, a Provocação do Gótico iria mais a fundo.
Em 1886, Robert Louis Stevenson lançaria O
estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde, mais conhecido entre nós como O médico e o monstro. Dr. Jekyll,
respeitável médico londrino, aristocrático cidadão vitoriano, descobre uma
fórmula que o torna no Sr. Hyde. [7] E aqui o ser humano
socialmente aceito encontra sua liberação , tornando-se um sujeito brutal, inescrupuloso, que vai cometer
todos os atos escabrosos, condenados pela
sociedade, que tanto respeita o médico (e que ele alega prezar). A
ironia é que Médico e Monstro são a mesma pessoa. Qualquer semelhança com o Dr. Banner e o alterego de sua raiva contra a humanidade, o Incrível Hulk, não é coincidência alguma.
Não se
trata portanto de um monstro (feito de partes de cadáveres roubados a túmulos
profanados e um potente choque elétrico), nascido de um ato temerário e blasfemo, obra de um criador bem intencionado. Nem de um vampiro, um morto-vivo, não-humano. Ser Humano e Monstro
compartilham (explicitamente, enfim!) a mesma alma. E talvez a mesma revolta
contra a repressão social.[8]
Robert Louis Stevenson,
Daí, um
salto para outro continente. Nos EUA, o quarto nome desta Realeza é Edgar Allan
Poe. Na grande maioria dos contos [9] de Poe (1809-1849), não
existe monstro. O terror nasce de um ardil de narração que faz do protagonista
das suas histórias a única testemunha disponível (ao leitor) de um episódio
sobrenatural (segundo a versão desse narrador), que transtornou sua vida e sua
mente. Mas, até a eclosão desse episódio, tratava-se de uma pessoa normal, prosaica, ajustada ao cotidiano. Alguém que poderia ser qualquer um de nós.
Se esse
protagonista cometeu uma monstruosidade,
isso é outro problema. Se o fez porque era e sempre foi louco, ou se a
experiência sobrenatural foi o que o levou a cometer o ato hediondo, é uma dúvida
que não há como resolver, com base nos elementos fornecidos pela história.
Podemos julgar e condenar o personagem, mas aí trazemos, algo de fora, nosso
juízo – e talvez não seja ajuizado considerar, em termos de juízo ou falta dele,
episódios tão insanos como os que vivenciamos nos contos de Poe. O que importa
é repetir que não existe monstro aqui. A não ser que ele habite nossa mente,
como um gen-recessivo, uma célula rebelada que dispara a se reproduzir, de
repente, ou como um allien em
hibernação.
Se não
estamos, por natureza, nem por força da consciência, protegidos contra a
possibilidade de nos tornarmos um monstro, qual é nossa segurança? Nenhuma. E aliás, como ter certeza de... qualquer
coisa? Por exemplo... da nossa sanidade... da nossa percepção das coisas... do que é ou não real?
Como
fugir de um terror que carregamos junto conosco...?
Aliás,
essa parece uma das bases da releitura que a Literatura Pop faz do Gótico
Clássico, esse sentido de aproximação,
que faz o terror emergir do mais prosaico, do mais comum, do menos
extraordinário – seja de pacatas e lindas famílias dos subúrbios americanos, ou
de adolescentes nos colégios e mesmo crianças.
Stephen King
H.P.Lovecraft,
Henry James e o super pop Stephen King, para citar apenas alguns nomes, são
descendentes dessa Realeza do Terror.
Como os clássicos góticos, não se
contentam em aplicar sustos em série (tipo os assassinos de serras elétricas, robotizados, inconscientes) no
leitor. O iluminado e Cemitério Maldito são novelas que
penetram tanto em nossa mente – mostrando uma aderência ao espírito do leitor
bem à la Gótico Romântico – como em nossos pesadelos. E A hora do vampiro [10]
traz o melhor vampiro da Literatura, depois do Drácula, e o que mais se
aproxima do modelo de excelência. Trata-se aqui de um terror profundo.
Que nos chama e deseja...
Que nos chama e deseja...
Talvez
porque toque cordas de nosso íntimo e as faça ressoar. Talvez porque revele, ou
exponha, o que existe lá dentro, bem disfarçado, soterrado, dentro de nós.
Dessas coisas que não deveriam retornar do "Reino do não-Descoberto" [11], mas, aproveitando-se das horas mortas da noite, se levantam das tumbas e se tornam (nossas) assombrações.
[1] ... Que, já morto e reduzido a espectro, deve beber sangue fresco, ainda quente, ofertado
por Ulisses, para recuperar seu poder profético...
Maquete que recebi de presente de uma garotada que leu meu
"Memórias Mal Assombradas de um Fantasma Canhoto",
estrelado pelo Fantasma de Canterville.
assombrando malignamente
uma turma maneiríssima de hoje...
[2]
... numa tradução generosa, sem excessos, sem afetações, que flua bem ...
[3] O Hades, a escuridão onde vagam os espectros, privados da memória da vida que tiveram, é a negação de tudo o que significa ser grego : o mundo sob o sol, de viventes civilizados para quem a Memória (a Deusa Mnemosine) é a mãe (das Musas) do conhecimento, da arte e da consciência.
[4] Gótico vem de godos, os povos que tanto atazanaram os romanos, na Antiguidade. Para chegar a ser o Gótico a que estamos nos referindo, o enlace do Terror com o Romantismo, passou por muitas histórias e, principalmentem por um romance intitulado O castelo de Otranto (1764), do autor inglês Horace Walpole, que tinha como subtítulo Uma novela gótica. Foi um best-seller em sua época. Deu nome ao gênero (gótico) e lhe passou certos elementos que se tornariam sua identidade, como as ruínas (de castelos e cemitérios), maldições e segredos de família, labirintos escuros etc.
[5] Respectivamente com Lord Ruthven, em O vampiro (1831), e Carmilla, personagem-título do romance de 1872. Le Fanu foi chefe de redação do, então, jovem jornalista Bram Stoker, e seu amigo.
[4] Gótico vem de godos, os povos que tanto atazanaram os romanos, na Antiguidade. Para chegar a ser o Gótico a que estamos nos referindo, o enlace do Terror com o Romantismo, passou por muitas histórias e, principalmentem por um romance intitulado O castelo de Otranto (1764), do autor inglês Horace Walpole, que tinha como subtítulo Uma novela gótica. Foi um best-seller em sua época. Deu nome ao gênero (gótico) e lhe passou certos elementos que se tornariam sua identidade, como as ruínas (de castelos e cemitérios), maldições e segredos de família, labirintos escuros etc.
[5] Respectivamente com Lord Ruthven, em O vampiro (1831), e Carmilla, personagem-título do romance de 1872. Le Fanu foi chefe de redação do, então, jovem jornalista Bram Stoker, e seu amigo.
[6]
Diante de um Drácula, um vampiro vegetariano e que usa filtro solar parece
bobo. É bobo. Mas, há personagens realmente vampirescos, na periferia do elenco
de Crepúsculo, que além disso é uma boa
história de amor impossível (aqui, realizado), no modelo Romeu e Julieta.
[7] Há
um jogo de palavras possivelmente oculto nesses nomes. Je +Kill = Eu (em francês) mato. Hyde = pele de animal, esconderijo.
[8] Há
quem sugira, baseado em alusões do texto,
que o Dr. Hyde oculte do meio
social sua homossexualidade, considerada crime na Inglaterra da época, que, por
exemplo, condenou Oscar Wilde, pelo mesmo motivo, à prisão com trabalhos
forçados.
[9]
Exemplares são O gato preto e O coração delator , entre outros, que
estão na coletânea Góticos (I e II)
que organizei para a editora Melhoramentos. A exceção fica por conta, por
exemplo, de A queda da Casa de Usher,
que tem uma vampira, ou algo no semelhante, no elenco.
[10] Em
2015, foi lançado Doutor Sono, continuação de O iluminado, com a história do menino
com poderes parapsíquicos, agora adulto, 20 anos depois. Muito bom! Os três
livros citados nesse parágrafo são de Stephen King.
[11] Hamlet, de Shakespeare, outra matriz do Gótico Romântico: Ato 3, Cena 1. A expressão faz parte da fala que se inicia com a célebre frase: Ser ou não ser...
TERROR pra puxar a perna de quem lê...
[11] Hamlet, de Shakespeare, outra matriz do Gótico Romântico: Ato 3, Cena 1. A expressão faz parte da fala que se inicia com a célebre frase: Ser ou não ser...
TERROR pra puxar a perna de quem lê...
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