quinta-feira, 30 de março de 2017



Sobre Minha Experiência nos cursos JOVENS LEITORES e FORMAÇÃO DE LEITORES, realizados pela parceria SME-RJ-FNLIJ

(texto encomendado pela FNLIJ para livro sobre o curso)



De : Luiz Antonio Aguiar
Para: FNLIJ


1.     A experiência deste trabalho nos Cursos da FNLIJ mudou sua forma de ver a escola pública?

  :                    LAA:
Indiretamente, sim. Me deu uma visão mais clara do professor e do bibliotecário dessa escola, que luta tanto não só para se qualificar como para motivar a meninada e a garotada para a Literatura, apesar da falta de recursos e de incentivos, de contrapartidas, como aumento de remuneração, ascensão em planos de carreira etc. Muitos deles são idealistas, apaixonados pelo ofício e solidários com suas crianças e jovens, com plena consciência de que na escola está a chance de mudarem de vida.
Ao mesmo tempo, ao direcionar as aulas de Literatura para o professor, para apurar seu gosto pela Literatura, o curso mostra um bom caminho para democratizar a Literatura no país, que seria lhe dar um lugar especial dentro da escola e da educação, com autonomia em relação aos objetivos curriculares e pedagógicos, visando tão somente (e é muito!) a ampliação de horizontes existenciais e intelectuais dos leitores que puder cativar. Nesse sentido, a educação pública e a privada têm o mesmo trajeto a cumprir, as mesmas dificuldades e preconceitos a vencer, a mesma ruptura a realizar.

2.       Conte um fato marcante, específico, particular que tenha sido significativo ao ministrar estas aulas.


LAA
Foram muitos, mas em especial a avaliação que tive na minha primeira rodada de aulas. Foi muito ruim, tipo nota 7. Daí, não me conformei, consultei quem já estava rodado no curso, pedi opiniões e conselhos, repensei o que eu queria fazer, minha proposta para dar aula de Literatura, e voltei ao batente. Minhas avaliações melhoraram significativamente, deixando-me orgulhoso do trabalho que eu poderia e posso realizar. Vi então que ensinar  só existe se o outro aprende. Que ensinar é um aprendizado e que o feed-back, as avaliações e reformulações são indispensáveis nesse ofício. Foi uma lição de vida, que me deram.

3.       Esta experiência nos Cursos da FNLIJ se multiplicou em outros cursos? De que forma?

LAA
Sim. Como sou escritor e correr o país falando a diferentes plateias é parte do meu trabalho, os cursos que dei foram reproduzidos em outros lugares, sempre (aproveitando a lição recebida, mencionada acima) tentando me adaptar ao meio, ao público, buscando a interatividade, a comunicação. Continuo ministrando esses cursos, dando aula de Literatura – e aliás, hoje em dia, incorporei mais esse atributo a minha identidade; com muito orgulho, sou um professor de Literatura.



segunda-feira, 27 de março de 2017




ARQUEOLOGIAS LITERÁRIAS

Ensaio na Revista Ponto 11 - SESI SP

"O Pop do Clássico & o Clássico do Pop"






Minhas Arqueologias Literárias estão na revista Ponto 11, que acaba de sair. É da editora Sesi-SP. No artigo, está um extrato dos debates q publico aqui em meu blog e de toda a pesquisa e reflexão q venho fazendo, buscando atualizar a leitura dos clássicos e revalorizar a Literatura Pop. 


Será q a kryptonita é descendente do Calcanhar de Aquiles - do Aquiles de Homero? E o q teria a ver o Hulk com Mr. Hyde ? E Oliver Twist com Harry Potter? Pra quem gosta de ousadias e provocações para ler e pensar Literatura, tá lá!






A revista Ponto pode ser solicitada gratuitamente pelo email: divulgacao_editora@sesisenaisp.org.br.

terça-feira, 21 de março de 2017

OS DADOS DA MALDIÇÃO trailer




Aventure-se! 

[trailer]

OS DADOS DA MALDIÇÃO




Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!



O Tabuleiro está armado!
As Peças foram colocadas em suas posições!
Os Dado rolam!
O Jogo vai começar...!


É só um jogo... Ou não?



OS DADOS

                Foi no Grande Bazar de Istambul, capital da Turquia, que Lúcio, Pai, colecionador de coisas estranhas e dono da Além da Imaginação, comprou uma caixa de madeira negra com o tabuleiro e... aqueles três dados de bronze.
                Era apenas um jogo... um jogo desconhecido... Mas, ainda assim, somente um jogo...
                Ou não?
                Afinal, como um troço desses ia ser de verdade? Um jogo de tabuleiro? Que coisa mais antiga!
             Na caixa, estava gravada a mensagem: “Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!”
                Quer dizer... se ele lançasse os dados... se os fizesse rolar... ou talvez só de tocar neles...
                O Jogo iria começar!





O TABULEIRO

ALÉM DA IMAGINAÇÃO. É o nome da loja de artigos nerds do Lucio.  É lá que a turma do Nani se reúne, para trocar dicas nerds, cards nerds, exibir camisetas nerds e bater papos nerds. Enfim, é lá que as coisas estranhas... acontecem! É uma das lojas do térreo do prédio onde mora Nani. Nesse jogo, o tabuleiro é o prédio de Nani, inclusive as lojas do térreo, principalmente o que está Além da Imaginação.


AS PEÇAS
(E não pense que você é um personagem só porque é de carne e osso; neste jogo, tudo que é lançado no tabuleiro é peça, nada mais do que peça... Adivinha quem está dizendo isso!)

NANI. Ele faz 13 anos hoje, quando começa a história. Só o que podia esperar era uma festa-surpresa... dessas que nunca enganam o aniversariante... dessas que ele sabe que vai acontecer... Até porque a Gogoia, linda de derreter iceberg por telepatia, vizinha dele, no prédio, prometeu que ia ter mesmo uma surpresa... Ela deu sua Palavra de Bruxa que ia lhe tacar um beijo no meio da festa. Um beijo... daqueles! E Nani (apelido de Ernani) foi avisado... Disso e de que não devia lançar os dados, senão o jogo começava, a maldição seria acionada, e aí... aí...

LÚCIO. Mal humorado, rabugento, alquimista, nerd veterano, com histórias de viagens estranhas, ou sobre objetos estranhos. É dono da Além da Imaginação e pai do Lucio Filho. Mas, a loja não vai bem.  Tanto que o dono dela – e das demais lojas do térreo do prédio, onde ele mora e também é síndico, Seu Ricardo – está ameaçando despejar o Lúcio, se ele não concordar com um super aumento do aluguel.

LUCIO FILHO.  Filho de nerd, às vezes, nerd também é. No caso do Lúcio Filho, é assim que funciona. Ele é o maior amigo do Nani, mas um pouquinho mais velho. Foi ele na verdade quem desencavou, num armário do fundo da loja no qual não devia mexer, a caixa com o Jogo. Assim, a culpa também é dele e por isso merece o que vai acontecer.

GOGOIA. Gatíssima, inteligentíssima, toda atrevida! Com fama de bruxa, ainda por cima, para melhorar o lance todo. E o azar (ou sorte) do Nani é que o aniversário dele, que já é no dia 13 de agosto, caiu numa sexta-feira de Lua Cheia.

MONSTRO. Também conhecido como irmão caçula do Nani: 10 anos. Recusa-se a assumir seu nome de batismo (alegando que não foi ele quem o escolheu): José. Assim, vive trocando de nome. Para simplificar, Nani, quando não quer aborrecê-lo (para isso, basta chamar o menino de ), o chama pelo nome com o qual ficará conhecido nessa história: MONSTRO.

SEU RICARDO (ou Ricard-o-Ogro, segundo o Pai do Nani). Grande candidato a ser o vilão dessa história. O vilão secreto, o que age oculto nas sombras. Mas, não há provas. Irmão da mãe de Nani (que se chama MARIETA), grande inimigo do pai de Nani (FELIPE), que agora decidiu que vai mesmo concorrer a síndico do prédio, para desbancar  seu Ricardo (a quem acha, além de chato, um tirano). Mas, será mesmo que ele é quem pratica todas as maldades dessa história? Será que ele secretamente é... DIÁBOLO.



DIÁBOLO. Nenhuma informação será dada sobre ele aqui. Você que se vire. O Jogo vai começar! 

Os Dados da Maldição / EPISÓDIO 1

EPISÓDIO 1

[seriado em 6 episódios dominicais]                                             





OS DADOS DA MALDIÇÃO


Luiz Antonio Aguiar




Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!







13 de agosto, Sexta-Feira
e, para completar, Lua Cheia.
08:00 da Manhã


                 Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário. 
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar. 
... E mais todos os paparicos  que esperava receber do pai e da mãe. 
... E o ciumeco que contava causar em  seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter de aturar Nani na posição de dono da festa. 
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu. 
Aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido. 



Era sexta-feira.
                13 de agosto e Lua Cheia.
                Mas, não deveria ser um dia tão esquisito assim.
                Mesmo sendo um feriado meio repentino ...
... (Dani soubera do feriado pela mãe, na noite anterior, só não sabia que feriado era. E daí? Nem perguntou. Nem se lembrou de perguntar. Feriado é sempre mais do que ótimo, ponto final. Sabia somente que não teria colégio naquele dia, nem os pais iriam trabalhar, o que era legal porque estariam livres para trata-lo feito príncipe ...
... Pelo menos, foi o que ele acreditou que aconteceria.). 
Afinal, dia do aniversário da gente é para ser D++++.
Não deveria ser chamado de “esquisito”. 
Não, não deveria.
                Mesmo ele fazendo 13 anos nesse aniversário.
                Isso é o que pensava Nani, tentando entender onde tinha se metido a sua família, justamente naquela manhã, quando ele acordou e saiu do seu quarto crente que iria receber abraços, talvez um presente antes da festa e, melhor de tudo, o grunhido de ciumenta infelicidade do seu irmão caçula, mas...
                Em vez disso, encontrou tudo quieto, tudo silencioso.
                Como se não houvesse ninguém no apartamento.
                Mas, como faziam isso com ele? Abandonado no dia de seu aniversário? Será que esqueceram?
                - Não acredito! – exclamou, chateado. – Eles devem estar escondidos por aí, esperando eu sair pra pularem em cima de mim gritando “Surpresa!”.   Só pode ser!
                Deu uma geral na casa. Repetiu. Depois, busca pente fino. E nada!
                - Mas, que sujeira! – gritou.
                Seu grito ecoou sem resposta pelo apartamento.
                Não ia ter paparico. Nem café da manhã especial. Nem festa. Nem o prazer de flagrar o ressentimento do Monstro, naquele dia.
                Não ia ter nada. O dia tinha virado nada.
                Era verdade, ele que engolisse. Que se conformasse. A família havia largado dele no dia do seu aniversário. Foi-se. Sumiu desta dimensão. E lá estava Nani, ruminando sua mágoa, e sem saber para onde ir nem o que fazer.
Ele, o único habitante do apartamento vazio.
Ou, talvez, não fosse o único.



Grande Bazar, Istambul, Turquia,
 ± 25 anos antes


                O mercado de rua suk, em árabe - de Istambul é um labirinto que, segundo acreditam, cresce um pouco mais a cada noite. Somos admitidos nele por insuspeitas entradas. São portões, num fundo de rua, entre um paredão e outro, sem grande destaque no cenário urbano, e guarnecidos de grades de ferro. Nada que nos faça prever o que há ali dentro. E, quando vemos, somos envolvidos por uma cidade incrustada nas entranhas da outra cidade. Istambul é a hospedeira dessa criatura.
O difícil é saber quem comanda quem. 
Não há registros precisos de quando o Grande Bazar começou a surgir, como um agrupamento de pequenos negócios de rua. A história oficial nos fala do século XV, mas, há lendas que mencionam um mercado – que pode ter sido o Grande Bazar original – em Constantinopla, como se chamava Istambul, quando era a capital do Império Romano, no século IV.
E, antes disso, talvez... Mas, ninguém sabe. É uma memória que se perdeu.
A área central do Grande Bazar é a mais antiga. É também a mais escura, onde as vielas são mais estreitas, as lojas – tendas, stands precários – são menores e vendem as mercadorias mais bizarras.
Lucio era naquele tempo um jovem arqueólogo brasileiro, deslumbrado com tudo o que pudesse cheirar a mistério do passado. Era natural que fosse a Istambul - onde a história da civilização humana viveu momentos decisivos – para conhecer o museu arqueológico de lá, um dos mais fantásticos do mundo. Mais natural ainda que desse um pulo no Grande Bazar.
No presente,  iremos reencontrá-lo como dono da loja de games e objetos nerds – a Além da Imaginação. E será conhecido como Lúcio Sorriso. E Sorriso é o apelido debochado que os frequentadores da loja lhe deram, justamente porque se trata, nos dias de hoje, do cara mais mal-humorado que já se viu atendendo o público. Mas, não tinha essa marca azeda, naqueles anos, principalmente em sua exploração pelo Grande Bazar. Pelo contrário, estava animadíssimo por estar conhecendo aquele cenário de histórias mágicas.
 Podia-se dizer que era um cara que sempre tinha a esperança de encontrar algum tesouro oculto “nas dobras e disfarces do tempo” (a expressão é de um ensaio que ele havia escrito na universidade).
Sua transformação talvez (ele não terá o hábito de falar sobre isso) tenha a ver com algo que irá acontecer exatamente naquele dia em que atravessou o portão de entrada no Grande Bazar. Ele havia se distraído apreciando objetos pitorescos, farejando os aromas de um outro mundo – que pairam em toda a Istambul, mas é ainda mais impregnado e difícil de decifrar no Grande Bazar – e, quando viu, havia se metido na  parte mais antiga do suk. Estava diante de uma pequena tenda, onde entrou.
Nunca saberia dizer o que o tinha atraído ali. Não se tratava de uma tenda diferente; pelo contrário, tinha um jeito ordinário, miúdo, era apertada, algo imersa na penumbra, e o cheiro ali dentro o fez se lembrar dos fundilhos de alguns camelos que havia montado no Egito, semanas antes. 
Talvez, tivesse na cabeça demorar-se apenas alguns minutos. Ou segundos. De fato, na hora, não diria que fora atraído, mas que entrara ali como poderia ter entrado na tenda ao lado, ou em nenhuma. Pensar em algum tipo de atração foi algo que veio muito, muito depois.
Era uma tenda de lâmpadas de azeite. Havia as de latão, as de cobre, as de estanho, todas, mal ou bem, reproduzindo o que um turista imaginoso pensaria em comprar, como se estivesse levando uma Lâmpada de Aladim. Mas, o homem que o recebeu dentro da tenda logo desfez o encanto:
- Não há lâmpadas encantadas aqui – disse o sujeito sorrindo, em inglês.
Túnica branca, calças verdes, muito largas e ambas de uma seda amassada, típica da região. Calçava sandálias de couro cru. Tinha mais de sessenta anos, mas Lúcio não foi capaz de lhe precisar a idade. Pele bastante clara, olhos entre verdes e cor de tijolo, cabelos grisalhos, presos no alto da cabeça num coque, barba e bigodes compridos. O que imediatamente chamou a atenção de Lúcio foram as tatuagens que ele tinha nas costas das mãos.
E, em ambas as mãos, o mesmo desenho de uma cobra engolindo o próprio rabo. Uma cobra com olhos vermelhos, faiscantes, expressão voraz e absolutamente privada de sentimentos. Puro instinto e ferocidade.  Tratava-se de um símbolo milenar, e Lúcio já havia esbarrado com ele algumas vezes. Era chamado de Uróboro.
O dono da loja apresentou-se como Mehmedi. Educadamente, como todo lojista em Istambul, insistiu que  Lúcio, mesmo que não lhe interessasse comprar nada, se sentasse nas almofadas, que cobriam um recanto da tenda, e tomasse chá com ele. Foi o que o jovem arqueólogo fez, colocando de lado sua mochila de lona.
Lúcio já havia recusado inúmeros daqueles convites,  de outros comerciantes do Grande Bazar, mas resolveu aceitar aquele. Justamente aquele.
- Não estou mesmo interessado em lâmpadas – lamentou Lúcio.
Mehmedi sorriu e serviu o chá numa taça. Lúcio aspirou o perfume do chá – era delicioso. Teve uma sensação de bem-estar absoluto, naquela tenda. E foi assim, relaxado, que conversou com Mehemedi. O comerciante fez questão de saber de onde ele era e o que  viera fazer na Turquia:
- Turismo... Explorações ... Estudo ... – respondeu Lúcio. – Um pouco cada.
- Ah, meu amigo. Então, o suk é o lugar certo. E se não vai mesmo comprar uma lâmpada, talvez eu possa lhe oferecer uma outra coisa.
Sem esperar a resposta de Lúcio, Mehemedi curvou-se sobre uma pequena mesa, bastante baixa, entre as almofadas – que Lúcio, bem mais tarde, consideraria que estivera ali, arrumada, aguardando somente a oportunidade certa. Ergueu então uma toalha de seda negra, sob a qual havia uma pequena caixa de madeira escura. Havia algo gravado em dourado na tampa, que, ao olhar de Lúcio, pareceu, à primeira vista, um “D”. Olhando melhor, reparou que a linha que formava a letra era o corpo de uma serpente que também engolia seu rabo, na base do “D”. Sentiu um calafrio e certa aversão àquela figura.
Mehemedi abriu a caixa, e dentro dela havia três dados de bronze.
Por todo o tempo, acompanhando os gestos de seu anfitrião, Lúcio ficara como que magnetizado pelas tatuagens nas mãos de Mehemedi, como se as serpentes também se movessem. Na hora, sorriu, desdenhando a ilusão, e tentou focar a vista. Mas, como se repelindo sua reação, sentiu uma pressão crescente nas têmporas, e seu coração começou a dar saltos repentinos.
- O que são? – perguntou Lúcio. As faces dos dados não tinham números, mas símbolos que ele desconhecia.
- Um jogo... – respondeu Mehemedi.
- E como se joga?
- Ah, sim, as regras. Estão perdidas. Ninguém mais as conhece. Quer pegá-los? – perguntou o comerciante, suspendendo a caixa na altura das mãos de Lúcio. – Veja como rolam na sua mão como se ganhassem vida.
Lúcio deu uma risada, acreditando que o lojista procurava intrigá-lo para  conseguir vender-lhe os dados. Apanhou-os  e os rolou de uma mão para outra. O ruído que faziam, ao se chocarem, lhe lembrou o guizo de uma cascavel.
-  Parecem bastante antigos... – observou Lúcio. – Devem valer muito.
- Fique com eles, meu amigo.  
- Minha nossa! Imagine se tenho dinheiro para algo assim.
- Um presente!
- Como? – surpreendeu-se Lúcio. Mas, logo recuperou-se. Pensou e replicou: - Não, não posso! – disse, devolvendo os dados à caixa. – Não devo aceitar um presente tão caro. Além do mais, parecem ser uma relíquia... Com valor arqueológico. São autênticos, não são?
- Únicos!
- Bem, as autoridades não vão permitir que saiam do país.
- Não creio que o jovem vai ser incomodado por isso ... – riu-se Mehemedi.
- Mesmo assim, não, obrigado – disse Lúcio, levantando-se.
- Pelo menos, veja o que mais tenho aqui na loja. Não quer um lenço de seda? Tenho pequenas bijuterias feitas de osso de camelo por um preço bastante razoável.
Acabou não comprando coisa alguma. Saiu apressado e sentiu-se melhor do lado de fora. Se bem que...
Na saída, estranhara algo, que passou de relance por seus olhos, mas só depois se deu conta do que era. Só depois, no hotel modesto onde se instalara, descobriu, dentro da sua mochila, a caixa de madeira preta, com o uróboro na tampa –  era mesmo uma preciosa gravação a ouro. Os três dados estavam ali dentro. Então, se deu conta do que o perturbara, quando se despediu de Mehemedi, apertando sua mão na saída da tenda. Ainda voltou ao Bazar, buscando pelo comerciante de lâmpadas, para lhe devolver a caixa e os dados, mas, enredado no labirinto de tendas, sem recordar ao certo as ruas que percorrera antes,  jamais conseguiu encontrá-lo.  
Pensou em entregar os objetos às autoridades, ou talvez ao Museu, mas teve receio das desconfianças, da conhecida brutalidade da polícia local, que não seguia o preceito de que uma pessoa é inocente até que se prove em contrário. Seria acusado de roubo, mesmo que fosse um ladrão arrependido, devolvendo as relíquias. E, o tempo todo, perseguiu-o a certeza de que, de todas as alternativas, a pior, a mais arriscada, a que pareceria mais criminosa foi a que escolheu. Sabia que seria atirado na cadeia – se fosse pego no aeroporto - sob a suspeita de ser um contrabandista de antiguidades, algo odiado em países como a Turquia, que tanto sofreram com pilhagens estrangeiras sobre seu patrimônio arqueológico. E sabia que ninguém se preocuparia com a formalidade de contatar a embaixada brasileira para informa-la da detenção. Ele simplesmente sumiria. Era o risco.
No entanto, fez o que fez, e talvez o tenha feito perturbado pela visão da mão de Mehemedi, de ambas as mãos, no momento em que deixou a tenda, e se na hora não entendeu o que o incomodara, horas depois, a visão se tornara evidente. As serpentes, os uróboros tatuados ... haviam desaparecido das costas das mãos dele.
Como se tivessem seguido os dados.



EPISÓDIO 2




Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!










                 Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário. 
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar. 
... E mais todos os paparicos  que esperava receber do pai e da mãe. 
... E o ciumeco que contava causar em  seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter de aturar Nani na posição de dono da festa. 
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu. 
Para piorar, entraram no jogo uns certos DADOS amaldiçoados, que haviam sido encontrados no Grande Bazar de Istambul, tempos atrás... 
Aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido. 




De volta ao Estranho Aniversário de Nani
13 de Agosto
10 hs da manhã

               
Danado da vida por ter sido abandonado pela sua família, Nani resolveu dar uma descida e ir à Além da Imaginação, ver se encontrava amigos, ou qualquer um que não tivesse esquecido seu aniversário.
No térreo do prédio, ao longo da calçada, além da portaria do edifício, que dava acesso para os apartamentos residenciais, havia uma fileira de lojas. Havia uma lanchonete, na esquina, a Sucos e Sucatas, com os sanduíches mais trash do bairro, depois o (In)famous, um salão de cabelereiro e manicura, a 1001 Bolos, cujo nome dispensa explicações, e a maior delas, a Além da Imaginação.
Maior até porque, além da parte da frente, onde se atendiam os clientes – antro dominado pela Lúcio Sorriso e seus rancores contra qualquer ser vivente  -  havia toda a parte dos fundos, onde a garotada da vizinhança costumava se reunir. A passagem era protegida por um biombo alto, com desenhos escandalosamente vermelhos-sangue escorrendo pelo fundo negro das placas de madeira. 
Era quase um clube secreto. (Era chamada assim  mesmo: Clube.)  Lá , nerd não precisava se proteger com identidade secreta, sentia-se dentro da sua caverna,  rodeado sua tribo. Nani vivia mais lá do que em seu apartamento, até porque seu melhor amigo, Lucio Filho, era filho do dono da loja.
 Isso sem contar que Nani era o considerado O Fera nos joguinhos de computador. Um verdadeiro rei do pedaço. O cara a ser batido. E estava crente que a turma – todos já sabendo que era aniversário dele, e logo 13 anos numa sexta-feira, 13 de agosto, uma data nobre – ia armar uma homenagem nerdiana para ele. No mínimo, iam se posicionar em duas alas e erguer os sabres de luz como num túnel, para que ele passasse sob eles, recebendo reverências.
No entanto, menos de três segundos depois de ter aberto a porta, empolgadíssimo com o que esperava encontrar lá dentro, murchou.
Não tinha ninguém lá.
Nenhum de seus companheiros de batalhas.
O que era estranhíssimo para um feriado.
Nem mesmo Lúcio Pai. O silêncio era tamanho que Nani chegou a sentir falta dos resmungos do Sr. Sorriso.
“Será que estão entocados no Clube?”, pensou esperançoso...
Mas, já sabia que não ia encontrar nada disso. Tudo quieto demais. Parado demais. Dava para sentir que não havia vibração nenhuma vindo de lá...  
E, de fato, o Clube estava deserto.
Metade da manhã de um feriado (mesmo sendo um feriado que ninguém explicara até agora, só decretara e pronto), e ninguém à vista.
E o mais esquisito...
Nada da bagunça que os frequentadores da loja, por hábito, faziam.
As prateleiras estavam absolutamente arrumadas e em ordem. Nada largado sobre os balcões. Os bonecos de personagens de jogos e filmes, todos aqueles bruxos, extraterrestres e extragalácticos, monstros e heróis e guerreiros, princesas enfeitiçadas, robôs e autômatos, com seus olhos parados, pareciam ter algo para contar, mas estavam mais imóveis e silenciosos do que nunca. Até mesmo as estantes de livros do Clube estavam perfeitamente arrumadas, nenhum livro retirado e aberto sobre alguma das mesas em torno da qual a galera se reunia. Nada, nada, nada.
Um nada sobrenatural.
Como se num determinado instante, todos as criaturas vivas tivessem sido sorvidas dali – para onde, não se podia saber – e extraídas para fora dos cenários.
Cenários que haviam permanecido mornos, como se a presença humana recente tivesse deixado rastros que ainda não haviam se apagado completamente. E isso dava nos nervos do garoto.
“Sim, é mais ou menos isso...”, entendeu Nani. “Uma presença invisível... Como se alguma coisa estivesse aqui... Só que a gente não vê...Que raio!”...
De repente...
Um esqueleto.
Despencando sobre Nani.
Se requebrando, rebolando, agitando os braços como se estivesse na torcida do Mengão. E com um sorriso cretino no rosto. Ou melhor, não havia rosto. Havia o crânio, os buracos de onde olhos havia caído, as mandíbulas, aqueles dentes muito brancos e gastos...
 A coisa ossuda deu uma cambalhota no ar – braços e pernas numa pirueta desconjuntada, mandíbulas batendo como se fosse um chocalho.
E estendeu para ele, não exatamente seus braços, mas o que foram seus braços, antes do túmulo e dos vermes, ou seja... seus úmeros, rádios e ulnas... Estendeu-os para ele, como se tentasse agarrá-lo.
Nani berrou.
Um desses berros que a gente somente solta nos pesadelos... quando a coisa medonha que está para nos agarrar dá o bote às nossas costas. A gente não vê. Pressente. A sombra pesada desabando em cima da gente. As garras da coisa. Quase perfurando nossa carne... quase... chegando, chegando e ... quase...
E só o que resta é mesmo berrar!
Paralisado...
...o berro dele ecoando nas paredes do Clube.
... a  coisa ainda mais chacoalhada, mais desconjuntada...
... Então...



JOCA


                - Guri! – gritou, irritado Lucio Pai, surgindo de repente. – Cuidado! Não quebre o Joca!
                Tarde demais. Nani saltou de banda e a coisa veio abaixo, trincando vários de seus ossos.
                - Mas, que raio  ...? Hem?
                -  Não olha por onde anda? Você esbarrou nele!   – continuou gritando Lucio Pai, correndo para socorrer o esqueleto.
                O dono da loja, tão popular por seu sorriso constante, recolheu Joca do chão, com o maior afeto que se pode ter por uma ossada. Não conseguiu evitar que o crânio de Joca se deslocasse e ficasse pendurado.
                - Essa coisa é de verdade? – gaguejou Nani, se levantando.
                - Mais de verdade do que você. E tinha que berrar daquele jeito? Você me deu um susto, sabia?
                - Eu... dei um susto em você? Puxa, desculpe...
                Naquele instante, Lucio Filho entrou no Clube. Vinha apressado e com uma expressão tensa, como se tivesse algo muito importante para fazer. Chegou a ensaiar uma careta, quando deu com Nani ali. Lucio Pai desapareceu numa salinha lateral, onde tinha a sua oficina, na loja, carregando seu amigo e resmungando.
                - Oi, cara! – disse Lucio Filho. – Olha, é uma hora ruim, tá sabendo? Tô ocupado. Não marquei nada  com você hoje, marquei?
                - Como é que é? – exclamou, injuriado Nani. – Mas, você esqueceu que dia é hoje?
                - Hem?... – murmurou o garoto, parecendo zonzo.
                - Ah, deixa pra lá... -,  disse Nani, chateado. – Cadê o resto da turma? Como é que não tem ninguém aqui num feriado?
                -  Feriado?
                - É, hoje não é feriado?
                - Nem sabia... é?
                - Você reparou que não teve colégio hoje? –
                - É, não tive, mas, não me lembro por quê... Olha, Nani. Tô falando sério. Tenho uma coisa importante pra fazer. Foi por isso que mandei mensagem pra galera, dizendo pra ninguém aparecer. Vamos até fechar mais cedo, hoje.
                - Vocês...? Mas, que raio! Tá todo mundo me abandonando! Fui esquecido no mundo!
                - Nani, do que é que você está falando?
                - Não interessa... Você é só o meu melhor amigo, por que ia saber?
                - Hem? Como é que é? Nani... você está esquisito à beça!
                - Eu! Tá... Então, tô esquisito. E não vai aparecer ninguém no Clube, hoje. Ninguém se lembrou, né?
                - Não vai, não!... Peraí! Lembrar o quê? Olha... – Lucio respirou fundo e deu uma espiada de quina para o lado da oficina do pai. A porta dele estava fechada. – Nani, sério. Tô numa encrenca. Mas, meu pai não pode saber de nada.
                - Pensei que bruxo pudesse ler pensamentos.
                - Larga disso, Nani! – o garoto hesitou por um instante, depois puxou a manga da camiseta do amigo. – Vem cá. Vou mostrar a você. Mas, não pode contar pra ninguém, tá?
                - Um joguinho novo? – indagou Nani curioso.
                - Queria que fosse... ! – disse Lucio, e atravessou o Clube, até um canto onde havia um armário, no qual o garoto guardava suas coisas.
                “É impressão minha, ou as mãos do LFo estão tremendo...?”, preocupou-se Nani, enquanto o amigo erguia a tampa da arca.
                - Aqui! Meu pai ainda não deu pela falta! E agora eu não sei se vai dar pra devolver...
                Nani aproximou-se. Nas mãos do amigo, estava uma pequena caixa de madeira escura. Tinha um símbolo gravado em dourado, na tampa, que parecia um “D”.



 UM SINISTRO TILINTAR METÁLICO

                - É por causa do meu tio, que seu pai está ... um pouco... mais mal-humorado do que de costume? Ele passou aqui na loja, hoje?
-  Nada disso, cara! – protestou Lucio Filho. Tô falando sério!
 Nani sabia que a Além da Imaginação corria o risco de fechar. E só de pensar nisso, sentia uma certa culpa. Porque o vilão dessa história era o irmão da mãe dele, a quem o pai de Nani, Felipe, chamava de Ricard-o-Ogro,  o dono daquelas lojas, no térreo do prédio. O caso é que  agora ele estava querendo um aumento de aluguel tipo arrasador. Não ia dar para o Lucio Sorriso bancar.
                -  Vou acabar com ele, nas próximas eleições para síndico! – prometia Felipe. – Ele acha que só porque mora na cobertura vai ficar eternamente no cargo? E grosso do jeito que ele é? Ganha sempre no grito, assustando todo mundo na assembleia dos condôminos! Mas, vou me candidatar! Vou concorrer também! Ah, dessa vez, ele vai ver só!
                Marieta, a mãe de Nani, nascera num circo. O dono era pai dela, o famoso Palhaço Crisoldo. Ela e o irmão haviam sido criados sob tendas, dentro de trailers. Depois, foram estudar cada qual numa cidade, e perderam contato por anos. Um belo dia, ela e Felipe receberam a notícia de que Ricardo  vinha morar no mesmo prédio que eles.  A alegria do reencontro  durou menos de um mês. Ricardo havia se transformado num sujeito que tomava atitudes que Marieta não aprovava. Já Felipe, não o aturava de jeito nenhum.  Mesmo assim, a mãe de Nani, não se tocava tanto com as raivas do marido e, sobre a disputa dos dois, cortava direto:
                - Briga de garotos! – resmungava ela.
                E o deboche da mulher deixava Felipe ainda mais zangado.
Mas, nem mesmo Ricard-o-Ogro seria capaz de cravar aquele olhar assustado no rosto de Lucio Filho. Não, não... Nani já tinha percebido que só podia ser outra coisa...
Sempre preocupado, vigiando a porta da oficina do pai, Lucio Filho levantou a tampa da caixa. O interior era forrado de veludo vermelho. E nela havia três dados de bronze. Não havia números nas faces dos dados, mas desenhos que Nani nunca vira nem em joguinho de fantasia multidimensional, nem em filme extragaláctico, nem  em livros sobre segredos ultratemporais...
                -  Dados? – estranhou Nani. – Dados de verdade? Quer dizer... não são digitais?
                - Já disse que não é um joguinho de computador – disse Lucio Filho aflito, como se tivesse pouco tempo de sobra.
                - E o que é, então, cara? Não vai me dizer? Ou não sabe?
                - Droga! – exclamou Lucio Filho balançando a cabeça. – Eu não deveria ter tirado essa coisa da oficina do meu pai. Mas, dei com essa caixa esquisita, abri, tinha os dados dentro... Achei legais os dados, então quis experimentar. Mas, quando peguei essas coisas e rolei elas na mão, começaram a acontecer umas coisas...
                - Que coisas? – perguntou Nani, cada vez mais intrigado, mais curioso. E seus dedos começaram a formigar de vontade de pegar naqueles maneiríssimos dados de bronze.
                - Coisas estranhas... – respondeu Lucio Filho em voz baixa, quase um cochicho, olhando para todos os lados, agora. Nani entortou a boca, com jeito de quem diz que não estava entendendo nada, mas começava a achar que o amigo estivesse delirado. Então, Lúcio Filho finalmente falou: –  Tem uma maldição nesses dados.
                - Hem? – exclamou Nani, recuando um passo.
                - Você nunca escutou falar em Mestre Diábolo, né?
                - Nerd novo na loja?
                - Não! – replicou Lucio Filho impaciente. – Nem perto... !
                - Cara, do que é que você está falando, hem? Ou melhor, do que é que a gente está falando?
                Nesse momento, escutou-se um chocalhar de ossos. Lucio Filho fechou a tampa do  baú de madeira escura e o escondeu, rapidamente, atrás das costas. A porta da oficina se abriu e o rosto fechado de Lucio Pai surgiu lá de dentro:
                - Filho! Me ajuda aqui! Preciso de ajuda para colar o Joca, que esse seu amigo desastrado aleijou!
                - Tô indo, pai! – respondeu o garoto.
                Lucio Pai desapareceu de novo dentro da oficina, deixando a porta aberta atrás de si. O filho agachou-se, por trás de uma poltrona, e escondeu o baú de madeira lá. Então, cheio de pressa, passou por Nani, cochichando:
                - Não mexe em nada, tá? Senão...!  Volto num segundinho!
                - Tá... -, respondeu o aniversariante frustrado do dia.
                Mas, o caso é que Nani já sabia que estava mentindo. Nunca iria conseguir fazer  o que amigo tinha pedido. Ou melhor, nunca seria capaz de não fazer o que ele, bastante diretamente, tinha lhe dito que não fizesse.
E, sim, ele fez...
Ah, aquela pequena arca, com o símbolo estranho gravado (“Em fogo? e tinta de ouro por cima? UAU!!!D+++++! ”) era irresistível, não era?
                Mal Lucio Filho sumiu pela porta da oficina, Nani correu para a poltrona, tirou o baú do esconderijo e o abriu. Lá estavam os dados.
                Era certo que Lucio estava estranho. Ou melhor, um pouco mais estranho do que de costume. “Afinal, ter um pai desses deve deixar qualquer um maluco”, dizia sempre Nani para si mesmo. Ou seja, um pai do tipo que, numa estante da sua oficina, segundo Lucio Filho contava (Nani nunca se atrevera a entrar no antro do zumbi),  tinha frascos com rótulos como: “Saliva Cristalizada de Aranha Devoradora de Gente, coletada no período de digestão da Língua de um Político Corrupto Defendendo-se das Acusações em Público”; ou  “Escamas de Encantadores de Serpentes que nisso foram transformadas por Feitiços, mas que originalmente eram Agiotas”; ou “Fiapos de Hálito de Aves de Rapina, depois de comerem Carcaça de Quem Nunca Assistiu um Filme Nerd nem leu um livro do Gênero”...)
                - São somente nomes de código – explicara Lúcio Filho, na ocasião.  – É para ninguém descobrir os ingredientes que ele usa nas alquimias dele. No fundo, meu pai tem uma pontinha de bom humor, sabia?
                - Não, nunca desconfiei – respondeu Nani. E completou sem perceber que o amigo traíra na voz um certo tom de mágoa. –  Ele guarda esse segredo bem à beça, né?
                - Para de zoar com meu pai, tá? Ele... é ele e pronto! Faz mal a alguém, por acaso?
Lucio Filho detestava que todo mundo debochasse  do pai pelas costas e que o achassem tão de outro universo... um ser exodimensional, ou algo assim. Além disso, vivia dizendo que achava o pai solitário demais, desde que a mãe, a mulher de Lúcio, tinha morrido, quando o menino ainda era bem pequeno.
Mas, Nani passou batido por todos esses pensamentos. Estava impaciente, Lucio Filho demorava  a voltar, e lá estavam os dados, no baú. Parecendo mais antigos do que nunca e possuir mais segredos do que era possível imaginar. Ao alcance dos dedos, da mão.
                Horas depois, Nani se perguntaria se naqueles últimos momentos era ele mesmo pensando, ou alguma voz vírtuo-qualquer-coisa-também infectando seus miolos.
                Foi sem sentir. Em dois segundos, tinha os três dados na palma da mão. E os estava rolando, fazendo se chocarem e emitir um tilintar metálico que pareceu ao garoto mais alto do que deveria. Ou não pareceu. Nani não se indagou sobre nada. Não perguntou mais nem por quê, nem como.  Remexia os dados e os dados rolavam em sua mão. Os dados e ele. Ele e os dados.
                De repente, trazendo num susto o garoto de volta, uma explosão abafada aconteceu dentro da oficina.




EPISÓDIO 3

Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!










                 Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário. 
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar. 
... E mais todos os paparicos  que esperava receber do pai e da mãe. 
... E o ciumeco que contava causar em  seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter de aturar Nani na posição de dono da festa. 
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu...
A sua família havia sumido. O irmão apareceu transformado. E até na Além da Imaginação começaram a acontecer lances pra lá de sinistros... MISTERIOSOS! 
Definitivamente, aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido. 







OS DESAPARECIDOS

                Além de descobrir passagens que ninguém mais farejava, entre dimensões virtuais paralelas, enfiando-se por frestas que se abriam para outros universos... e de ser o mais feroz caçador de monstrinhos digitais, desses que passeiam como quem não quer nada mas querendo, pelos diferentes  mundos... Bem, além dessas aptidões, tão preciosas para um garotão que quer sobreviver hoje em dia... Nani se orgulha de ser um tremendo detetive.
                Esperto pacas – é o que ele se acha.
                Daí, quando a tal “explosão abafada” aconteceu, ele correu para a porta da oficina do Zumbi-Sorriso, já com três ou quatro conjecturas detetivescas na cabeça. Mas nenhuma delas o preparou para encontrar o que o esperava...
                Nada.
                A oficina estava vazia.
                E, pelo que Nani sabia,  não havia nenhuma porta secreta  nos fundos, nem nenhum alçapão, nem cabine de transporte, nada que pudesse permitir que os dois Lúcios, pai e filho, saíssem de lá sem passar por ele, na entrada.
                 Nani ficou parado na porta. Estava meio escuro lá dentro. E ele ficou com medo de entrar. Mas, não precisava atravessar a porta para saber que não tinha ninguém ali. Era uma paradeira mal-assombrada. Um silêncio de abismos.
                Ou melhor, só para ser mais preciso... Nani, apertando a vista, teve a impressão de ver uma espécie de névoa pairando no ar. Muito tênue, muito fina. Quase invisível. Quase desaparecendo. Quase podendo ser somente impressão dele, ilusão de ótica...
                Ou não.
                Era de arrepiar. Como se os Lucios tivessem desaparecido naquela névoa.
                Ou  transformado nela: PUFSHT!
                De repente, escutou um chocalhar metálico. Tlect! Tlect! Tlect!
                Levou alguns segundos para querer acreditar. Eram os dados. Os dados estavam na sua mão. E ele os estava rolando, rolando... Tlect! Tlect! Tlect!
                No mesmo instante, ele se sentiu cercado de olhos, como se criaturas o espionassem, ocultas pelos véus entre as dimensões paralelas.
                - Lucio! – chamou ele. – Ei, cara!  A brincadeira acabou, tá? Tô começando a ficar apavorado de verdade! Chega, cara! Aparece aí!
                Mas, ao mesmo tempo, um a voz lhe dizia que, se fosse uma piadinha de Lucio Filho, para fazê-lo de bobo, o garoto precisaria ter convencido o pai a entrar numa brincadeira...
“ E ele não é disso! Deve ser um problema de alergia dele, ou...”
                Seu estômago roncou tão alto, que Nani se assustou, lembrando ao garoto que ele não tomara café da manhã. “Fica quieto, traidor!”, exigiu, em pensamentos, olhando para os lados para ver se alguém  ou algo havia escutado. Mas, nada parecia capaz de perturbar o fúnebre silêncio da loja. Da loja inteira. E não podia ser normal. Ninguém entrava. Os Lúcios desaparecidos. Aqueles dados, que ele não conseguia parar de rolar e de espremer uns contra os outros, só para continuar escutando o barulho que faziam em sua mão.
                - Toma essa coisa de volta! – disse, largando os dados, de passagem no balcão da loja. – Não pode ter dado para pegar a maldição se eu fiquei tão pouquinho com eles, pode?
                “ Mas, que maldição, irra!” – pensou, já impressionado por começar a levar a sério os avisos de Lúcio Filho. “Não tem maldição nenhuma! Que história é essa?”...
                Jurava que, se estivesse se olhando num espelho, teria impressa no rosto a mesma expressão de medo que vira no amigo. Na hora, ainda pensou também que Lúcio Filho era tão bom quanto ele para inventar enredos, personagens, um poderoso Mestre de Jogos. Nani e Lucio Filho viviam em disputa permanente, um sempre tentando passar a perna no outro. Nos jogos, se fossem adversários, saía faísca, até briga podia dar. Daí, Nani ficar com um pé atrás sobre a “história”...
                “Se bem que nem o Lúcio é tão bom de encenação assim. Nossa! Ele tava com medo de verdade! E esse lance do desaparecimento duplo, ele e o pai? E a fumacinha que ficou no ar... ? Catso! Tudo isso pra rir na minha cara depois? Um pouco demais, né? “
                Mas, com a esperança de que fosse tudo uma jogada... E mesmo que essa esperança fosse acumulando mais e mais furos, quanto mais pensava no assunto... Ele voltou para casa, esperando... torcendo... Vá lá: rezando!... para seus pais estarem atrás da porta, numa de lhe dar um susto,  e saltarem sobre ele gritando: Feliz Aniversário!, acompanhado de beijos bem babados. E numa altura dessas, até mesmo receber parabéns do Monstro, que estaria se esforçando para fazer uma cara bem raivosa,, mas parecendo de fato totalmente imbecil,  seria bom à beça, não seria?  
                Ah, o Monstro!
                Ah, um almoço de aniversário no capricho! Família de volta. Família inteira. Inteirinha, sem faltar pedaço nenhum! Ah...!
                Ah, o Fator Gogoia, anunciado e prometido pela própria, para aquele dia!
                Ah... Ah, nada. Totalmente nada!
                O apartamento estava deserto.
                Um túmulo! (Foi Nani que pensou isso, mas se arrependeu na velocidade da luz!)
                 Então, começou a reparar nuns detalhes. Não tinha certeza se estavam lá, mais cedo, e ele é que não tinha notado. Mas... Era estranho um copo de água pela metade, deixado na beirada da mesa. Seus pais não faziam dessas coisas – viviam evitando  acidentes. O Monstro, sim, aprontava dessas e  piores. Mas, fazia questão de beber água e tudo o mais somente em sua caneca-monstro, talhada em pedra de caverna profunda, escura e fedida. Era uma caneca horrenda, pesadona, desajeitada... Mas era bem ele. Quem mais ia largar aquele copo ali?
                Nani então resolveu dar uma busca pela casa. Viu um par de tênis da mãe deixado na soleira da porta do banheiro. Muito, muito estranho... Ela jamais se calçava ali, e nunca iria deixar os tênis no meio do caminho. E, no banheiro, viu a escova de dentes do pai sobre a tampa da privada... e mais... o celular dele, deixado no chão de ladrilho. Assim! Sem mais nem menos! Largadão!
                Mas, o estranho dos estranhos foi entrar no quarto do Monstro e encontrar a cama arrumada, como se ninguém tivesse dormido ali. O Monstro nunca arrumara a cama na vida, e jurara que jamais iria fazer isso. E ainda seria cedo para a mãe passar a ronda nos quartos e dar aquela arrumada básica, de toda a manhã, antes de ir trabalhar. O pai de Nani também não teria feito isso. O departamento dele nos afazeres domésticos era cozinha, supermercado, feira, e não quartos...
                Então? Então...?
                E foi nesse momento, vendo a rotina e a organização do seu lar toda revirada, que Nani começou a acreditar que algo esquisito estava mesmo acontecendo em sua vida.



MONSTRO


                “Mas, o que será que deu nessa minha família maluca? Será que ficaram sem paciência de esperar eu acordar e saíram? E vão fazer o meu almoço de aniversário sem mim? Isso não se faz, Dr. Felipe e Sra. Marieta! Isso não se faz!”
                “Ou será que o Monstro conseguiu convencer todo mundo de que eu não sirvo para ser irmão dele?”...
                “Mas, não é possível...! Esqueceram tudo o que houve entre nós? 13 anos! Uma vida, cara! Minha vida! Como pode...?”
                “Tudo em cima, um feriado bem no dia, tudo  para eles me paparicarem à vontade. Café da manhã especial. Levado na cama, por que não?  São só por 24 hs. É demais? No resto do ano, dá-lhe bronca, cobrança, tem de fazer isso, tem de fazer isso também... Mas, hoje! É o meu dia! Minha vez! E eles somem...”
                Na verdade, não fazia nem uma semana, Nani teve uma brigona em casa, reclamando que os planos para a comemoração do seu aniversário estavam “de gente velha”. Almoço em restaurante! E com o irmão de contrapeso? Tudo como no ano passado? Como sempre e sempre? Que chatice!!!!
                - Você quer desconvidar seu irmão caçula? – inquiriu a mãe, zangada.
                - Eu não tenho culpa de ele ser meu irmão! Eu nunca quis ter irmão nenhum!
                - Não fala uma coisa dessas, Nani! – murmurou a mãe. – Eu sei... que você não está falando de coração!
                E lá das profundezas do apartamento, soou um grunhido...
                E outro...
                E mais um...
                De repente, Nani se deu conta de que não estava mais lembrando do que tinha acontecido dias antes. E que o grunhido estava soando naquele instante... E bem ás costas dele...
                Então, se virou...
                - Zé!
                (Outro grunhido...)
                Nani engoliu em seco.
                Se era para chamar o irmão de Monstro, como o menino queria ser chamado, nunca ele havia merecido mais esse nome do que ali, naquele momento. O rosto do Monstro estava contraído, como se seus músculos tivessem levado uma descarga elétrica e ainda não tivessem se recolocado nos lugares nem na vibração certa. Os lábios estavam tortos. Da boca, escorria alguma coisa amarronzada. Baba, e da grossa. O olhar dele cravara-se como alfinetes em Nani. E o corpo todo estava algo torcido, um pouco pra lá, outro pouco pra cá. Tinha ainda as mãos, que pareciam pontudas, como se tivessem virado garras, de repente. Ou qualquer coisa meio assim muito, mas muiiito esquisita.
                - Monstro... – gemeu, engasgado, agora, Nani, sob a pressão do visual. E logo ele que nunca havia dado confiança ao irmão de chama-lo pelo apelido que o menino elegera. – Onde está o pai? E a mãe? Vocês se esqueceram de que dia é hoje?
                Mais um grunhido... E então o Monstro falou:
                - Jura... seu otário... que você não desconfiou dessa armação de feriado?
                 - Hem...? Mas, a mãe falou...
                - E que feriado é hoje, hem? Você sabe? Ela disse?
                - Eu... sei lá!
                - Falou em dia de folga, você se encantou tanto que nem pensou no assunto. É 13 de agosto... Dia de...? Da...? Do...? Dia do Nani? Não brinca que você engoliu essa! Que feriado é esse, cara?
                E tudo isso numa voz meio chiada, sibilante. Feito cobra em filme bruxesco.
                - Cadê todo mundo, cara? – reagiu Nani.
                Monstro deu uma gargalhadinha seca, como se fosse motor de máquina de lavar grimpado. Mais cacarejo do que gargalhada, de fato. E cacarejando sempre, virou as costas, deiando o irmão sem resposta.
                Nani deu duas engolidas em seco, paralisado, bobão. E foi o que bastou para Monstro sumir de vista. Quando Nani correu atrás dele, não o encontrou mais. Mas, reparou numa outra coisa muito estranha. Muito contra todo o jeito como funcionava a casa: em vez do seu lugar, na escrivaninha do quarto do casal,  o laptop do pai estava sobre a mesa de jantar da sala – onde nunca ficava – e com algo na tela, piscando, mostrando que estava ligado – como seu pai nunca o deixava. Parecia que tinha sido abandonado de repente.
                Só que, como se esquecesse do irmão, quando Nani parou diante da tela, sofreu um arrepio. E dois. E três. Porque a imagem na tela não era bem um pisca-pisca. Tinha uma coisa rodopiando lá. Ou melhor, três coisas. Três dados. Os três dados de bronze.
                No que Nani os reconheceu, quase fugiu correndo. Quase. Para o seu quarto. De volta pra cama, morrendo de vontade de, quem sabe, dormir e acordar para ver se o dia começava de novo. Mas, não dava mais para escapar.
                Nani chegou junto da tela, tocou-a, e a imagem se desfez. Sobre um fundo de cores que rodopiavam, misturando-se ou se dissolvendo, alternadamente, apareceu a caixa pedindo a senha. Nani conhecia a senha do seu pai. Na verdade, todo mundo conhecia,  até o peixinho dourado que seu Zildo, o zelador, criava num aquário, que deixava sobre a  mesa da portaria... O pai de Nani tinha algumas manias... Além da eterna birra entre ele e Ricard-o-Ogro, era nerdíssimo em Astronomia,  Cosmologia e Filosofia da Ciência. Ensinava  Astrofísica numa universidade e muita gente dizia que somente outros três caras no mundo falavam a mesma língua, quando danavam de conversar sobre labirintos científicos, pirações hiperdimensionais e cósmicas. E era tipo plugado em telas. Nunca desligava seu laptop. Seu mascote era o jabuti Azazel Fisto  (o único poupa-tela, de todas as dimensões virtuais, com nome e sobrenome), que lá ficava, se arrastando, borrando cores, abrindo clarões e passagens entre universos paralelos. O nome dele era a senha: AZAZEL.
                Só que, quando Nani digitou o nome do bicho, nada aconteceu.
                Azazel Fisto devagar passava e devagar continuou passando, ignorando o Nani.
                - E eu que esperava uma mensagem tipo Feliz Aniversário! O pessoal aqui endoidou? Todo mundo, até esse jabuti?
                Nada, nada, absolutamente nada.
                Toda casa fica meio mal-assombrada quando está vazia. É um ventinho que entra por uma fresta da janela ou um vão por baixo da porta e acaba remexendo a cortina da sala, ou os papéis em cima da mesa. São os estalidos no encanamento, que a gente só ouve quando não tem  barulho de gente em casa, e que ecoam por dentro das paredes, como se tivesse um morto-vivo sepultado por trás do reboco, exigindo ser solto. Ou então aquela impressão de que, se as pessoas que moram ali saíram, não saíram totalmente. Alguma coisa ficou para espantar os intrusos. No mínimo para ficar rondando...
                Nani estava começando a se sentir vigiado, ali dentro. Como se ele fosse o intruso. Como se alguém, alguma coisa, algo tivesse entrado, tomado conta do apartamento, e era quem mandava no pedaço agora.
                - Tudo contra mim! Que jogo sujo! – disse alto Nani, encarando a tela, Azazel Fisto e o que mais estivesse ali.
                A coisa era tão, tão pirante, que ele começou a observar o Azazel Fisto pelo canto do olho, se perguntando qual seria a possibilidade de um jabuti virtual ser o responsável por todas as estranhices que estavam acontecendo. E se ele fosse...?
... O tal!
“Só falta acontecer que nem num joguinho e o Azazel Fisto ter virado  uma entidade milenar do Mal, hiperpoderosa. Ou ter sido dominado pela dita cuja. Mente possuída, miolos infectados, o esquimbau... Ou qualquer enredo desses e... Nossa! Que miolos, Cara? Jabuti virtual lá tem miolos?  De onde eu tirei essa história?”.
                Daí, ele teve uma ideia. Ou um certo tilintar metálico dentro do seu bolso, que ele se recusou a reconhecer (“Os dados! Claro que são os dados! Mas, eu não deixei essas coisas lá na loja?”) ... Enfim, algo que passou na sua cabeça, mesmo ele preferindo que tivesse passado muito mais longe. E a ideia veio, ficou,  ele obedeceu ao impulso e digitou: “Diábolo”.
                 Azazel Fisto voltou-se para o garotão e fez para ele uma careta irritadíssima, que não deveria estar programado para fazer. Então, as letras da senha se reviraram, se contorceram, e logo estavam grossas e vermelhas, na tela, escorrendo em pingos feito sangue, deformando-se. Por um segundo, os filetes de sangue se enroscaram, uma ponta na outra, uma ponta engolindo a outra. Mas, o rodopio acentuou-se e, logo,  Nani tinha a impressão de enxergar mais alguma coisa, como um espectro ao fundo, uma caveira sorridente. Rindo para ele, ou rindo dele. Então berrou, recuou dois passos, assustado, pego numa zonzeira, uma tontura. Daí, a tela piscou algumas vezes, então um texto começou a aparecer, subindo linha por linha...