O MÍNIMO E O ESCONDIDO
Faz um bom tempo, me dei conta de que as crônicas de Machado
de Assis são um acolhedor hall de entrada para a leitura da obra do Bruxo. E,
por consequência, uma estrada encantada de tijolos bem amarelos, que apura nosso
paladar (e apetite) para a
Literatura...
Machado de Assis, em crônica de 11/11/1900
(Foi a última crônica que publicou.)
Todos os truques
de Machado para compor seus enredos e personagens super-envenenados estão nas
crônicas. Assim como alguns de seus temas mais constantes, que lhe eram mais
caros.
A ironia? A reflexão sobre a nossa dificuldade de aceitar nossa condição de mortais? A indiferença das estrelas em relação à existência (e viscissitudes, ou peripécias) humana? Nossa atávica tentação pelo patético? Pela canastrice? Suas dúvidas e toda a metafísica profunda de seus romances, de seus dramas existenciais, a maneira como expõe – como nenhum outro autor que eu tenha lido – a alma humana e a entrega de bandeja (principalmente aos leitores Cascudos) a quem quiser meter um nariz mais enxerido nessas dobras secretas da história? Até mesmo sua célebre narração em 1ª pessoa, à la Bentinho Santiago em D. Casmurro, que se volta cruelmente contra aquele que pensa que tem o poder, que é o dono da história...que serve acima de tudo para descarnar (e estripar) o narrador?
E que tal de quebra acostumar o ouvido à malícia (alguns dizem: malignidade) da sintaxe machadiana?
Está tudo em suas crônicas, textos curtos, de cinco, seis
páginas. Ideais para iniciar um leitor nos mistérios machadianos.
Machado renovou a crônica no Brasil, recriou-a, acrescentando-lhe um grau de literariedade inédito, que definiu o caráter principal do gênero e fundou o jeito brasileiro da crônica, seguido por nomes gloriosos como Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Luís Fernando Veríssimo.
Mostrar esse aspecto de Machado, sua poderosa literariedade,
foi o que me levou a organizar O mínimo e
o escondido, uma coleção de crônicas de Machado, com notas (que permitem ao
leitor entender algumas menções factuais), sugestões, provocações, interações com
os romances e contos de Machado.
Foi um livro que me custou um bocado de trabalho de leitura,
seleção, reflexão, resultado também de anos de pesquisa sobre a obra de Machado.
Mas, eu me orgulho muito desse trabalho e é uma alegria conversar sobre ele. É
um dos momentos em que posso abrir o jogo, me declarar um tiete de Machado, de
sua arte, da maneira como incrementou recursos tradicionais de composição de
histórias (recursos narrativos) e como inventou outros, até então
inimagináveis.
Quem ama a Literatura ama, ou está destinado a amar Machado
de Assis.
Exemplar é, entre muitas, exatamente a última crônica
publicada por Machado de Assis, de onde tirei o título da coletânea. Há
diferentes trechos memoráveis, nessa crônica, desde a frase de abertura (ver
citação acima), que praticamente entrega
o método machadiano, sua maneira de
observar o mundo e de extrair daí material para sua Literatura, até o caso da espada.
Não vou me alongar muito nisso, até para não estragar o prazer e a surpresa de ler essa crônica, uma das mais saborosas que podem existir. Mas, o caso é que Machado (ou melhor, seu alter-ego cronista, um personagem, ficção, como tudo o que sai das mãos desse cara) dá com uma espada antiga (ou velha?) e levanta várias hipóteses, aparentemente estapafúrdias e infundadas, que explicam como a espada veio parar onde ele a encontrou, e a sua história pregressa. Mas, cada uma dessas hipóteses, ele as preenche com tal veemência, com tantas pulsações vitais, que acabam parecendo plausíveis. Até que ele desfaz a ilusão, o truque, a prestidigitação, executando-os a sangue frio, nas frases finais da crônica. O que nos oferece a oportunidade de contemplar o que é a ficção, a arte da verossimilhança, a maestria em escrever falsidades como se deve, como diria Aristóteles, louvando Homero. O maquiavelismo na costura do mínimo e do escondido num tecido que o leitor passe a enxergar (sem se dar conta de que o rei está nu).
É Machado, no ano de 1900, escrevendo como nunca, com vitalidade, com experiência e controle total sobre o efeito de cada frase, cada sugestão.
Isso é bruxaria pura. Bruxaria Literária.
Isso é O mínimo e o escondido.
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