sexta-feira, 4 de março de 2016

O MÍNIMO E O ESCONDIDO


Faz um bom tempo, me dei conta de que as crônicas de Machado de Assis são um acolhedor hall de entrada para a leitura da obra do Bruxo. E, por consequência, uma estrada encantada de tijolos bem amarelos, que apura nosso paladar (e apetite) para a Literatura...




Machado de Assis, em crônica de 11/11/1900
(Foi a última crônica que publicou.)


Todos os truques de Machado para compor seus enredos e personagens super-envenenados estão nas crônicas. Assim como alguns de seus temas mais constantes, que lhe eram mais caros.

A ironia? A reflexão sobre a nossa dificuldade de aceitar nossa condição de mortais? A indiferença das estrelas em relação à existência (e viscissitudes, ou peripécias) humana? Nossa atávica tentação pelo patético? Pela canastrice? Suas dúvidas e toda a metafísica profunda de seus romances, de seus dramas existenciais, a maneira como expõe – como nenhum outro autor que eu tenha lido – a alma humana e a entrega de bandeja (principalmente aos leitores Cascudos) a quem quiser meter um nariz mais enxerido nessas dobras secretas da história? Até mesmo sua célebre narração em 1ª pessoa, à la Bentinho Santiago em D. Casmurro, que se volta cruelmente contra aquele que pensa que tem o poder, que é o dono da história...que serve acima de tudo para descarnar (e estripar) o narrador?

E que tal de quebra acostumar o ouvido à malícia (alguns dizem: malignidade) da sintaxe machadiana? 







Está tudo em suas crônicas,  textos curtos, de cinco, seis páginas. Ideais para iniciar um leitor nos mistérios machadianos.

Machado renovou a crônica no Brasil, recriou-a, acrescentando-lhe um grau de literariedade inédito, que definiu o caráter principal do gênero e fundou o jeito brasileiro da crônica, seguido por nomes gloriosos como Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Luís Fernando Veríssimo.


Mostrar esse aspecto de Machado, sua poderosa literariedade, foi o que me levou a organizar O mínimo e o escondido, uma coleção de crônicas de Machado, com notas (que permitem ao leitor entender algumas menções factuais), sugestões, provocações, interações com os romances e contos de Machado.



Foi um livro que me custou um bocado de trabalho de leitura, seleção, reflexão, resultado também de anos de pesquisa sobre a obra de Machado. Mas, eu me orgulho muito desse trabalho e é uma alegria conversar sobre ele. É um dos momentos em que posso abrir o jogo, me declarar um tiete de Machado, de sua arte, da maneira como incrementou recursos tradicionais de composição de histórias (recursos narrativos) e como inventou outros, até então inimagináveis.

Quem ama a Literatura ama, ou está destinado a amar Machado de Assis.

Exemplar é, entre muitas, exatamente a última crônica publicada por Machado de Assis, de onde tirei o título da coletânea. Há diferentes trechos memoráveis, nessa crônica, desde a frase de abertura (ver citação acima), que praticamente entrega o método machadiano, sua maneira de observar o mundo e de extrair daí material para sua Literatura, até o caso da espada.

Não vou me alongar muito nisso, até para não estragar o prazer e a surpresa de ler essa crônica, uma das mais saborosas que podem existir. Mas, o caso é que Machado (ou melhor, seu alter-ego cronista, um personagem, ficção, como tudo o que sai das mãos desse cara) dá com uma espada antiga (ou velha?) e levanta várias hipóteses, aparentemente estapafúrdias e infundadas, que explicam como a espada veio parar onde ele a encontrou, e a sua história pregressa. Mas, cada uma dessas hipóteses, ele as preenche com tal veemência, com tantas pulsações vitais, que acabam parecendo plausíveis. Até que ele desfaz a ilusão, o truque, a prestidigitação, executando-os a sangue frio, nas frases finais da crônica. O que nos oferece a oportunidade de contemplar o que é a ficção, a arte da verossimilhança, a maestria em escrever falsidades como se deve, como diria Aristóteles, louvando Homero. O maquiavelismo na costura do mínimo e do escondido num tecido que o leitor passe a enxergar (sem se dar conta de que o rei está nu).




É Machado, no ano de 1900, escrevendo como nunca, com vitalidade, com experiência e controle total sobre o efeito de cada frase, cada sugestão.

Isso é bruxaria pura. Bruxaria Literária.

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