terça-feira, 22 de março de 2016

ARQUEOLOGIAS MACHADIANAS 2


[Infelizmente, como sempre acontece, este artigo contém estraga-prazeres, aliás, spoilers]



Desdêmona Traiu Bentinho?

             Reler uma obra clássica, a partir de uma sacação, uma revelação, uma nova perspectiva que se abre de repente e que pode iluminar recantos escuros, assim como obscurecer o que parecia claro e evidente, enfim: subverter o que considerávamos conhecido...pode parecer uma diversão meio nerd. Mas, típica de Leitores Cascudos. Reler uma obra literária com um olhar mudado, que faz o leitor lê-la de maneira diferente, e como se fosse a primeira vez...
                Essa é também a situação em que toda a crítica brasileira se viu – pega de calças curtas – quando a estudiosa e tradutora de Machado americana, Helen Caldwell, publicou, em 1960, a tese que defendeu na Universidade da Califórnia, Machado de Assis, o Otelo Brasileiro. [1]





               
         “Praticamente três gerações – pelo menos de críticos – julgaram Capitu culpada.
         Permitam-nos reabrir o caso. [2]
                                                             Helen Caldwell

                Caldwell, feminista, vivendo numa Universidade que era palco de grandes manifestações políticas pela paz, pelo fim da intervenção americana no Extremo Oriente, em defesa dos Direitos Civis e como vanguarda do Feminismo, e num momento de grande convulsão social nos EUA, alertou a crítica brasileira tradicional[3] para o fato de esta ter sido traída pelos machismo e patriarcalismo atávicos de nossa cultura e, com isso, não ter questionado se o fato de a história ser contada por Bentinho não compromete sua versão sobre o romance dele com Capitu.
                A chamada de Caldwell caiu como uma bomba arrasa-quarteirão na crítica brasileira, que pôs a mão na cabeça, percebendo o furo. Não, nunca haviam atentado para a possibilidade de Capitu, que não tem direito a defesa no livro, nem um insight que verifique suas confidências íntimas, e nem sequer a palavra – Bentinho, da maneira como conta a história, não lhe dá nenhuma chance de dizer algo sobre a acusação – ter sido injustiçada.
Ela foi, sim, condenada sem que o leitor a ouça sobre o caso.
                Tudo isso se deve à ardilosa utilização da narração em primeira pessoa composta por Machado. O narrador em terceira pessoa pode entrar no íntimo dos personagens porque não é um personagem. Às vezes, passa como transparente, como se não existisse. Tem esse poder e paga, em troca, o preço da necessidade de demonstrar, comprovar o que quer que o leitor sinta e pense de um personagem – de levar, à custa de muita técnica, o leitor a vivenciar o personagem. Já o narrador em primeira pessoa – um personagem – narra a sua história, não tem de comprovar nada, ele apresenta, ou assim faz parecer, sua vivência. Não mente, confessa. Tem maiores chances de convencimento, portanto. Mas não pode se movimentar com a mesma liberdade que tem o narrador em terceira. É fisicamente limitado porque tem os mesmos atributos de qualquer outro personagem. Não pode, por exemplo, contar uma cena à qual não esteve presente, a não ser que escute o relato de outro personagem. Não tem superpoderes (onipresença, onipotência, onisciência). Não tem acesso ao íntimo dos personagens. E pode portanto até mesmo ser enganado por eles, como Bentinho se alega enganado por Capitu. 
                Machado, luciferinamente, torna o ponto fraco (ou cego) de um narrador em primeira pessoa num recurso (poderoso) para contar a sua história. Em reforço para o fato de ele poder dar a sua versão, muito à vontade, sem ter de lidar com a interferência de Capitu, sem precisar ver  seu íntimo, nem revelar a verdade dela ao leitor. Ele pode desconhecer/ignorar essa parte da história. Existe somente uma verdade. A dele. E, no caso de Bentinho, como homem, dono da casa, é também o dono da história.  A trama de D.Casmurro somente existe, como é, porque é a história contada por Bento Santiago, e seria outra coisa contada por outro personagem ou por um narrador que não estivesse inserido como personagem na história. 
                Nada disso é novidade. É peculiar, no estudo da única e extraordinária recepção crítica da obra de Machado. Mas já se contou essa história muitas e muitas vezes.[4] Foi o momento de virada do entendimento sobre o Machado, e como ele se consagrou com o apelido de Bruxo do Cosme Velho. Até então louvado pelo seu estilo elegante, foi denunciado como um magistral criador de estruturas narrativas que iludem (e como iludiram!) o seu leitor, até mesmo pela dissimulada afabilidade.[5]








                A leitura de Caldwell parte de  sugestões do próprio Machado. Otelo é mencionado cinco vezes em D. Casmurro. Além disso, há suposições de que, no nome do narrador,  Bento Santiago, ele não tenha esse  Iago, à toa (o que pode ser não-deliberado em Machado?). Trata-se logo do nome do maligno intrigante que convence Otelo a acreditar, falsamente, que Desdêmona o trai. Bento não precisa de um Iago à parte, externo. É tão Iago como o Médico é o Monstro. Ele próprio se convence, à custa de muita repetição, e como consequência de um caráter poroso, inane. Mas faz as vezes de Iago para o leitor: calúnia?
                Esse porém não é o indício[6] mais forte.

         “Tais eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o  mouro rolava convulso, e Iago destilava sua calúnia.

                                     D. Casmurro, Cap.135, “Otelo”.Bento Santiago assiste a                                                                     uma representação da tragédia de                                                                                            Shakespeare. 

                No capítulo que intitula "Otelo", Machado embute o mouro de Veneza e o drama shakespeariano nas caraminholas íntimas e inconfessas de Bento Santiago e na trama como um todo. Bento (Otelo) Santiago tem a partir daí toda a “convulsão” de Otelo dentro de si. Só que, Bentinho é o que é, enquanto Otelo é uma força da natureza, um terrível guerreiro, um general vencedor, terror de seus inimigos, mas que se rendeu e entregou seu coração, sua vaidade e seus temores[7] interiores ao puro amor, à devoção de Desdêmona.
                Quem vê Plácido Domingo interpretá-lo (a versão de Verdi, em ópera, de 1887, da peça de Shakespeare), absorve com impacto ainda maior todo o sofrimento daquele homem, à medida que se convence de que Desdêmona o trai. E é esse sofrimento que está embutido, essa agonia e dilaceração, em Bento Santiago. Cada gesto seu a partir desse capítulo os subentendem, os pressupõem. Mas, de novo, ao contrário de Otelo, modelo de explosão passional, Bentinho explode para dentro. Sua convulsão está abaixo da superfície, dando somente sinais sutis. Mas, como vemos no momento em que ele quase envenena o menino (seu filho; capt.137) Ezequiel, não é por conta de sua contenção, que seu rancor e sua mágoa são menos intensos.
Ao mesmo tempo, Otelo, aquele homem primitivo em seu ciúme, é apaixonado, loucamente apaixonado por Desdêmona. Para Bento Santiago, carregar dentro de si, como uma úlcera mais do que dolorosa, esse magma de sentimentos, sendo incapaz de provocar sua erupção, é um suplício ainda mais corrosivo.  
                Amor e morte. Paixão e Ódio. Como se fosse uma colisão entre estrelas. Um cataclismo cósmico  encaixotado na alma de um ser humano.

[OTELO] É essa a razão, é essa a razão, minha alma! Permitam que não diga o nome dela diante de vocês, castas estrelas! Mas, é essa a razão de tudo... Mesmo assim, não quero derramar-lhe o sangue, nem manchar sua pele mais branca do que a neve e tão lisa quanto o alabastro dos monumentos. Deve morrer, entretanto, para que não traia mais homens [... beija Desdêmona] Oh, hálito balsâmico que quase convence a justiça a quebrar sua espada. Ainda um! Mais um! Permaneça assim quando estiver morta  - e eu te matarei – e depois te amarei. Mais um e este é o último beijo. Beijo tão doce jamais foi tão fatal!
Otelo, Ato V, cena 2.



William Shakespeare
                                                                            Este ano celebramos 
                                                                                     4 séculos de seu Falecimento! 


                Bento (Otelo) Santiago. Estão ambos em cena, a partir de então, como referência para o leitor.[8]
                No entanto, não seria razoável propor uma certa simetria nessa leitura?
                Agora, chegamos onde eu queria, minha pequena adição a esse debate ... Ou seja: se Otelo está embutido em Bento Santiago, da mesma maneira Desdêmona estaria engastada em Capitu?  Ou : Otelo está para Bentinho assim como Desdêmona está para Capitu?
Daí, o que teríamos?

         [DESDÊMONA] Ele disse que não demora nada. Mandou que eu me deitasse logo e que a dispensasse (para sua dama de companhia) (E depois...:) Anda depressa, por favor. Não demora a chegar.
Cena 3.

                Ao contrário de Capitu, Desdêmona se defende, nega a acusação. Assistimos às intrigas de Iago. Desdêmona nos fala olhando diretamente em nossos olhos, do fundo de sua alma. E, ao final, mesmo sabendo que será assassinada por Otelo, recusa-se a fugir, recusa-se a salvar-se, e se resigna a cumprir as determinações do marido: que a sentenciou à morte. Ela não quer ,morrer. Não abre mão do amor à Otelo. Não admite fugir, sendo inocente e íntegra, recusa macular essa sua integridade, mesmo que seja para salvar-se. Sua inocência, crê até o final, é sua proteção, é a dignidade que não abandona. È esta a sua maneira de ser fiel a Otelo, que ele, enlouquecido, não tem mais capacidade para entender.   Desdêmona é submissa demais para os padrões de hoje, mas estamos assistindo a um martírio.
                Mas, Capitu terá sido igualmente caluniada por um Iago embutido em Bento Santiago?[9]
                E se Capitolina também contiver Desdêmona? Ela também aceitou  a vontade do marido, fielmente  - no caso dela, o exílio. E não deixou de amá-lo, até o final. E se a mesma alusão à peça de Shakespeare, que deve pairar como uma sombra (de Otelo sobre Bento Santiago) valer também como referência, com subentendido, pressuposição para Capitu? E se toda essa dignidade de Desdêmona estiver também subtendida em Capitu? E se lermos o personagem dessa maneira, o que muda?  
                Não se trata de somente mais um argumento em desmerecimento da confiabilidade de Bentinho, como narrador. Talvez, sim, um indício[10] que poderia ser usado da inocência de sua esposa. Mas, principalmente, de uma outra perspectiva – que a eleva, a fortalece – (não ostensiva, subliminar, imiscuída nas entrelinhas... Machadianamente!) do personagem Capitu. Uma leitura possível desse magnífico personagem.  


Poe foi internado na Casa Verde?

                O alienista é talvez a obra mais popular de Machado de Assis. Claro, contém muito do que se pode ler no melhor Machado. Inclusive essa tendência de seus protagonistas para o patético, para uma misteriosa alquimia entre a galhofa e a melancolia, como é o caso de Simão Bacamarte, o médico que pretendia curar a insânia do mundo, tendo como seu “universo” uma ensandecida, desvairada, carnavalesca Itaguaí.

Adaptação em Quadrinhos, com desenhos de Cesar Lobo



                Assim como é também evidente que Machado tenha sido um leitor aficionado de Edgar Allan Poe.[11]
                Há, no entanto, um conto pouco lido, pouco comentado, e portanto pouco conhecido de Edgar Allan Poe, intitulado O sistema do Dr. Tarr e o professor Fether que pode muito bem ter sido o ancestral (literário) de O alienista. Seria então mais um elo nessa linhagem (literária) que liga lindamente Poe a Machado, uma vinculação ainda pouco estudada.  
                Trata-se de um conto subestimado, quem sabe, porque é por muitos considerado cômico. E como tal colocado num nível inferior ao restante da obra do escritor gótico americano, famoso por suas histórias de terror (embora esse não tenha sido o único gênero em que atuou). De certo modo, é a mesma sina que se abate contra O alienista, que muitos consideram como somente humor, sem ver a tragédia humana embutida na rigidez de Bacamarte, que inviabiliza sua existência no mundo e entre as demais pessoas. O alienista acaba, após rever todos os seus conceitos do que é loucura, internando a si mesmo na Casa Verde, o manicômio que erguera em Itaguaí, e libertando de lá todos os que diagnosticara antes como malucos.
                 Vale a pena sair em busca desse conto de Poe e compará-lo com O alienista. Nele, a loucura é absolutamente relativizada. A grosso modo, resumo aqui... Um visitante aparece num sanatório, desejoso de conhecer os métodos de tratamento empregados ali, dos quais escutara falar. É bem recebido, sua curiosidade científica encontra grande satisfação no contato com o psiquiatra responsável pelo lugar. Mas, esta convivência  torna-se aos poucos tensa já que tanto o médico quanto os seus auxiliares exibem, sem constrangimento, procedimentos que o visitante considera bizarros. No entanto, nem de longe suspeita do que aconteceu ali...

Edgar Allan Poe



                Revoltados com os maus tratos, cansados de serem relegados à condição de sub-humanos, e da solidão de sua insanidade, que os responsáveis pelo manicômio não poderiam nem estavam interessados em captar, nem entender, nem muito menos consolar, os internos haviam se rebelado, prendido o médico-psiquiatra e seus ajudantes nas celas, incomunicáveis, passando a tratá-los como loucos – exatamente como eles eram tratados antes –, e tomaram o poder no manicômio.
                Há uma subversão total do que se pode entender como loucura. E ao mesmo tempo, um desmascaramento das noções que consideram loucura algo totalmente contrastante,  evidente e nitidamente reconhecível, quando comparara à sanidade.[12] A loucura nesse manicômio tem lógica.. Lá, como na Casa Verde, poderia ressoar o bordão agourento do Corvo: "Nunca mais!". 
                E, também aqui, a dor se mistura ao riso, a solidão à hilariedade, para compor personagens cuja imagem é uma metáfora (universal, permanente) da complexidade, dos enigmas e dilemas do espírito humano.[13]
               

#minhapátriaéaliteratura





[1] Somente traduzida no Brasil 40 anos depois: São Paulo, Ateliê Editorial, 2002.
[2] Obra citada: P. 100.
[3] Lúcia Miguel Pereira, em dois momentos breves, foi a primeira a levantar dúvidas sobre a “versão Bentinho”, e sobre o narrador em si, pondo em questão se ele seria um narrador confiável. Foram em “O defunto autor”, Escritos da Maturidade, Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 2005 (1958), p.44, e Prosa de ficção, BH e SP, Itatiaia, (1936)1988, p. 240. Não deram atenção a esses alertas de Lúcia, amorosa biógrafa de Machado – minha preferida. A bem da verdade, a própria autora não investiu muito nisso e em outros momentos ateve-se à versão oficial.
[4] Eu próprio a viro e reviro pelo avesso de diversas maneiras no Almanaque Machado de Assis.
[5] Há críticos que rejeitam a possibilidade de Capitu ser inocente da acusação. Várias leituras possíveis se contrapõem, sempre, quando se trata de Machado de Assis.
[6] Defendo que não se pode, em Literatura, tratar uma interpretação como a única verdadeira. Há leituras possíveis, e indícios, apontados na obra, que dão menos ou mais lastro a essa ou àquela possibilidade.  
[7] Presa fácil de Iago...!
[8] Estima-se que Otelo tenha sido escrita em 1603. Assim seria  a última tragédia, entre as mais típicas de Shakespeare. Em D. Casmurro, Bentinho  a qualifica de “a mais sublime tragédia deste mundo” (capt.135).  
[9] Esta provocação deveria ser desenvolvida num ensaio à parte, que eu não pretendo escrever.
[10] Ver nota (6).
[11] Ver “Arqueologias Machadianas” (1), neste blog, postado em 15/03/2016.

Anton Tchekov





[12] Ver a crônica de 31/05/1896, de Machado, incluída e comentada em O mínimo e o Escondido (Melhoramentos), onde eu aponto essa conexão com O alienista. Nela, Machado comenta a fuga de loucos, do hospício, e se pergunta como, sem ter a certeza de que os loucos estão confinados, poderá andar nas ruas e se relacionar com as demais pessoas, seguro de que não está lidando com um louco fugitivo. Comno distinguir são de insanos, qiando uns e outros estão soltos? Tem a ver também com o dilema colocado ao leitor pela trajetória do personagem Quincas Borba, de Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, um louco, mas que convenceu até muitos estudiosos de Literatura de que o Humanitismo, a doutrina que prega, deveria ser considerado (Fala sério!) como a filosofia de vida de Machado. Sim, a loucura tem lógica. E pode ser sedutora, e o último reduto da sanidade, como em Enfermaria 6, conto de Tchekov (1860-1904), que também vale tomar como objetivo de leitura... Ou seja, vão lê-lo, Cascudos!. É genial! Magnífico! Ao que eu saiba, Machado não leu nem conheceu Tchekov; entretanto, essa perspectivação da loucura é um tema universal. 
[13] ... Algo que não caberia na Literatura de um único país, nem cultura, nem povo, nem poderia ser tematizado generosamente numa perspectiva  (nacionalista, regional, localizada, particularizante, estanque, incapaz de amplitudes, dessas que se contentam com filigranas, desconstruções e diferenças etc...) limitada. 

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