ARQUEOLOGIAS MACHADIANAS 2
[Infelizmente, como sempre acontece,
este artigo contém estraga-prazeres,
aliás, spoilers]
Desdêmona Traiu
Bentinho?
Reler
uma obra clássica, a partir de uma sacação, uma revelação, uma nova perspectiva
que se abre de repente e que pode iluminar recantos escuros, assim como obscurecer
o que parecia claro e evidente, enfim: subverter o que considerávamos conhecido...pode parecer uma diversão
meio nerd. Mas, típica de Leitores Cascudos. Reler uma obra literária com
um olhar mudado, que faz o leitor lê-la de maneira diferente, e como se fosse a primeira vez...
Essa é também
a situação em que toda a crítica brasileira se viu – pega de calças curtas –
quando a estudiosa e tradutora de Machado americana, Helen Caldwell,
publicou, em 1960, a tese que defendeu na Universidade da Califórnia, Machado de Assis, o Otelo Brasileiro.
“Praticamente três gerações – pelo menos
de críticos – julgaram Capitu culpada.
Permitam-nos reabrir o caso.
Helen Caldwell
Caldwell,
feminista, vivendo numa Universidade que era palco de grandes manifestações
políticas pela paz, pelo fim da intervenção americana no Extremo Oriente, em
defesa dos Direitos Civis e como vanguarda do Feminismo, e num momento de
grande convulsão social nos EUA, alertou a crítica brasileira tradicional
para o fato de esta ter sido traída pelos machismo e patriarcalismo atávicos de
nossa cultura e, com isso, não ter questionado se o fato de a história ser
contada por Bentinho não compromete sua versão sobre o romance dele com Capitu.
A chamada
de Caldwell caiu como uma bomba arrasa-quarteirão na crítica brasileira, que
pôs a mão na cabeça, percebendo o furo.
Não, nunca haviam atentado para a possibilidade
de Capitu, que não tem direito a defesa no livro, nem um insight que verifique suas confidências íntimas, e nem sequer a
palavra – Bentinho, da maneira como conta a história, não lhe dá nenhuma chance
de dizer algo sobre a acusação – ter sido injustiçada.
Ela foi, sim, condenada sem que o
leitor a ouça sobre o caso.
Tudo
isso se deve à ardilosa utilização da narração em primeira pessoa composta por
Machado. O narrador em terceira pessoa pode entrar no íntimo dos personagens
porque não é um personagem. Às vezes, passa como transparente, como se não existisse. Tem esse poder e paga, em troca, o preço da
necessidade de demonstrar, comprovar o que quer que o leitor sinta e pense de
um personagem – de levar, à custa de muita técnica, o leitor a vivenciar o personagem.
Já o narrador em primeira pessoa – um personagem – narra a sua história,
não tem de comprovar nada, ele apresenta,
ou assim faz parecer, sua vivência. Não mente, confessa. Tem maiores chances de
convencimento, portanto. Mas não pode se movimentar com a mesma liberdade que
tem o narrador em terceira. É fisicamente limitado porque tem os mesmos
atributos de qualquer outro personagem. Não pode, por exemplo, contar uma cena à qual
não esteve presente, a não ser que escute o relato de outro personagem. Não tem
superpoderes (onipresença, onipotência, onisciência). Não tem acesso ao íntimo dos
personagens. E pode portanto até mesmo ser enganado por eles, como Bentinho se alega enganado por Capitu.
Machado,
luciferinamente, torna o ponto fraco (ou cego)
de um narrador em primeira pessoa num recurso (poderoso) para contar a sua
história. Em reforço para o fato de ele poder dar a sua versão, muito à
vontade, sem ter de lidar com a interferência de Capitu, sem precisar ver seu íntimo, nem revelar a verdade dela ao leitor. Ele pode desconhecer/ignorar essa parte
da história. Existe somente uma verdade. A dele. E, no caso de Bentinho, como
homem, dono da casa, é também o dono da história. A trama de D.Casmurro somente existe, como é, porque é a história contada por Bento Santiago, e seria outra coisa contada por outro personagem ou por um narrador que não estivesse inserido como personagem na história.
Nada
disso é novidade. É peculiar, no estudo da única e extraordinária recepção
crítica da obra de Machado. Mas já se contou essa história muitas e muitas
vezes.
Foi o momento de
virada do
entendimento sobre o Machado, e como ele se consagrou com o apelido de
Bruxo do Cosme Velho. Até então louvado
pelo seu estilo elegante, foi
denunciado
como um magistral criador de estruturas narrativas que iludem (e como iludiram!)
o seu leitor, até mesmo pela dissimulada afabilidade.
A
leitura de Caldwell parte de sugestões
do próprio Machado. Otelo é mencionado cinco vezes em D. Casmurro. Além disso, há suposições de que, no nome do
narrador, Bento Santiago, ele não tenha
esse Iago,
à toa (o que pode ser não-deliberado em Machado?). Trata-se logo do nome do maligno intrigante
que convence Otelo a acreditar, falsamente, que Desdêmona o trai. Bento não
precisa de um Iago à parte, externo. É tão Iago como o Médico é o Monstro. Ele
próprio se convence, à custa de muita repetição, e como consequência de um
caráter poroso, inane. Mas faz as vezes de Iago para o leitor: calúnia?
Esse
porém não é o indício
mais forte.
“Tais
eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava sua
calúnia.”
D. Casmurro, Cap.135, “Otelo”.Bento Santiago assiste a uma representação da tragédia de Shakespeare.
No
capítulo que intitula "Otelo", Machado embute o mouro de Veneza e o drama shakespeariano
nas caraminholas íntimas e inconfessas de Bento Santiago e na trama como um
todo. Bento (Otelo) Santiago tem a partir daí toda a “convulsão” de Otelo
dentro de si. Só que, Bentinho é o que é, enquanto Otelo é uma força da natureza,
um terrível guerreiro, um general vencedor, terror de seus inimigos, mas que se
rendeu e entregou seu coração, sua vaidade e seus temores
interiores ao puro amor, à devoção de Desdêmona.
Quem vê
Plácido Domingo interpretá-lo (a versão de Verdi, em ópera, de 1887, da peça de
Shakespeare), absorve com impacto ainda maior todo o sofrimento daquele homem,
à medida que se convence de que Desdêmona o trai. E é esse sofrimento que está embutido, essa agonia e dilaceração, em Bento
Santiago. Cada gesto seu a partir desse capítulo os subentendem, os pressupõem.
Mas, de novo, ao contrário de Otelo, modelo de explosão passional, Bentinho explode para dentro. Sua convulsão está
abaixo da superfície, dando somente sinais sutis. Mas, como vemos no momento em
que ele quase envenena o menino (seu filho; capt.137) Ezequiel, não é por conta
de sua contenção, que seu rancor e sua mágoa são menos intensos.
Ao mesmo tempo, Otelo, aquele
homem primitivo em seu ciúme, é apaixonado, loucamente apaixonado por Desdêmona.
Para Bento Santiago, carregar dentro de si, como uma úlcera mais do que
dolorosa, esse magma de sentimentos, sendo incapaz de provocar sua erupção, é
um suplício ainda mais corrosivo.
Amor e
morte. Paixão e Ódio. Como se fosse uma colisão entre estrelas. Um cataclismo
cósmico encaixotado na alma de um ser humano.
[OTELO] É essa a razão, é essa a
razão, minha alma! Permitam que não diga o nome dela diante de vocês, castas
estrelas! Mas, é essa a razão de tudo... Mesmo assim, não quero derramar-lhe o
sangue, nem manchar sua pele mais branca do que a neve e tão lisa quanto o alabastro
dos monumentos. Deve morrer, entretanto, para que não traia mais homens [... beija Desdêmona] Oh, hálito balsâmico
que quase convence a justiça a quebrar sua espada. Ainda um! Mais um! Permaneça
assim quando estiver morta - e eu te
matarei – e depois te amarei. Mais um e este é o último beijo. Beijo tão doce
jamais foi tão fatal!
Otelo, Ato V, cena 2.
William Shakespeare
Este ano celebramos
4 séculos de seu Falecimento!
Bento (Otelo)
Santiago. Estão ambos em cena, a partir de então, como referência para o
leitor.
No
entanto, não seria razoável propor uma certa simetria nessa leitura?
Agora, chegamos onde eu queria, minha pequena adição a esse debate ... Ou
seja: se Otelo está embutido em Bento Santiago, da mesma maneira Desdêmona
estaria engastada em Capitu? Ou : Otelo
está para Bentinho assim como
Desdêmona está para Capitu?
Daí, o que teríamos?
[DESDÊMONA]
Ele disse que não demora nada. Mandou que eu me deitasse logo e que a
dispensasse (para sua dama de companhia) (E depois...:) Anda depressa, por
favor. Não demora a chegar.
Cena 3.
Ao
contrário de Capitu, Desdêmona se defende, nega a acusação. Assistimos às
intrigas de Iago. Desdêmona nos fala olhando diretamente em nossos olhos, do
fundo de sua alma. E, ao final, mesmo sabendo que será assassinada por Otelo,
recusa-se a fugir, recusa-se a salvar-se, e se resigna a cumprir as
determinações do marido: que a sentenciou à morte. Ela não quer ,morrer. Não abre
mão do amor à Otelo. Não admite fugir, sendo inocente e íntegra, recusa macular
essa sua integridade, mesmo que seja para salvar-se. Sua inocência, crê até o
final, é sua proteção, é a dignidade que não abandona. È esta a sua maneira de
ser fiel a Otelo, que ele, enlouquecido, não tem mais capacidade para entender.
Desdêmona é submissa demais para os padrões de
hoje, mas estamos assistindo a um martírio.
Mas, Capitu terá sido igualmente
caluniada por um
Iago embutido em Bento Santiago?
E se
Capitolina também contiver Desdêmona?
Ela também aceitou a vontade do marido, fielmente - no caso dela, o
exílio. E não deixou de amá-lo, até o
final. E se a mesma alusão à peça de Shakespeare, que deve pairar como uma
sombra (de Otelo sobre Bento Santiago) valer também como referência, com subentendido, pressuposição para Capitu? E se toda
essa dignidade de Desdêmona estiver também subtendida em Capitu? E se lermos o
personagem dessa maneira, o que muda?
Não se trata de somente mais um
argumento em desmerecimento da confiabilidade de Bentinho, como narrador. Talvez,
sim, um indício
que
poderia ser usado da inocência de sua esposa. Mas, principalmente, de uma outra
perspectiva – que a eleva, a fortalece – (não ostensiva, subliminar, imiscuída nas entrelinhas... Machadianamente!) do personagem Capitu. Uma leitura possível
desse magnífico personagem.
Poe foi internado na
Casa Verde?
O alienista é talvez a obra mais popular
de Machado de Assis. Claro, contém muito do que se pode ler no melhor Machado.
Inclusive essa tendência de seus protagonistas para o patético, para uma
misteriosa alquimia entre a galhofa e a melancolia, como é o caso de Simão
Bacamarte, o médico que pretendia curar a insânia do mundo, tendo como seu “universo”
uma ensandecida, desvairada, carnavalesca Itaguaí.
Adaptação em Quadrinhos, com desenhos de Cesar Lobo
Assim
como é também evidente que Machado tenha sido um leitor aficionado de Edgar
Allan Poe.
Há, no
entanto, um conto pouco lido, pouco comentado, e portanto pouco conhecido de
Edgar Allan Poe, intitulado O sistema do
Dr. Tarr e o professor Fether que pode muito bem ter sido o ancestral (literário) de O alienista. Seria então mais um elo
nessa linhagem (literária) que liga lindamente Poe a Machado, uma vinculação ainda
pouco estudada.
Trata-se
de um conto subestimado, quem sabe, porque é por muitos considerado cômico. E como tal colocado num nível
inferior ao restante da obra do escritor gótico americano, famoso por suas histórias
de terror (embora esse não tenha sido o único gênero em que atuou). De certo modo,
é a mesma sina que se abate contra O
alienista, que muitos consideram como somente humor, sem ver a tragédia humana embutida na rigidez de Bacamarte,
que inviabiliza sua existência no mundo e entre as demais pessoas. O alienista acaba, após rever todos os seus
conceitos do que é loucura, internando a si mesmo na Casa Verde, o manicômio
que erguera em Itaguaí, e libertando de lá todos os que diagnosticara antes como malucos.
Vale a pena sair em busca desse conto de Poe e
compará-lo com
O alienista. Nele, a
loucura é absolutamente relativizada. A grosso modo, resumo aqui... Um
visitante aparece num sanatório, desejoso de conhecer os métodos de tratamento
empregados ali, dos quais escutara falar. É bem recebido, sua curiosidade científica
encontra grande satisfação no contato com o psiquiatra responsável pelo lugar. Mas,
esta convivência torna-se aos poucos
tensa já que tanto o médico quanto os seus auxiliares exibem, sem constrangimento, procedimentos que o
visitante considera bizarros. No entanto, nem de longe suspeita do que aconteceu
ali...
Edgar Allan Poe
Revoltados
com os maus tratos, cansados de serem relegados à condição de sub-humanos, e da solidão
de sua insanidade, que os responsáveis pelo manicômio não poderiam nem estavam
interessados em captar, nem entender, nem muito menos consolar, os internos
haviam se rebelado, prendido o médico-psiquiatra e seus ajudantes nas celas,
incomunicáveis, passando a tratá-los como loucos – exatamente como eles eram
tratados antes –, e tomaram o poder no manicômio.
Há uma
subversão total do que se pode entender como loucura. E ao mesmo tempo, um
desmascaramento das noções que consideram loucura algo totalmente contrastante,
evidente e nitidamente reconhecível,
quando comparara à sanidade.
A loucura nesse manicômio tem lógica.. Lá, como na Casa Verde, poderia ressoar o bordão agourento do Corvo: "Nunca mais!".
E, também
aqui, a dor se mistura ao riso, a solidão à hilariedade, para compor
personagens cuja imagem é uma metáfora (universal, permanente) da complexidade,
dos enigmas e dilemas do espírito humano.[13]