Ainda Sobre EUCLIDES DA CUNHA:
com admiração e carinho...
"Aquela Campanha de Canudos lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo".
Escrever Canudos exigiu de Euclides da Cunha coragem pessoal e política. Pessoal, porque ali era o clímax, a consagração, a explicitação pública de um processoárduo, penoso, de mudança de opinião sobre a República, o Exército da época, com suas intenções golpistas, e sobre o próprio povo brasileiro. E política, porque temia enfrentar uma crítica inclemente dos conservadores e dos que tramavam a tomada do poder. No entanto, ele o escreveu, publicou, e foi um sucesso.
Assim como a coragem e espírito de sacrifício mostrada pelos jagunços de Canudos, e raras vezes reproduzidos, bem poderiam ter se tornado um modelo de caráter e de determinação para as pessoas deste país. O que temos aqui é um escritor dedicado a tornar sua Literatura um fator de peso na formação do imaginário de seus leitores. Uma Literatura de Conteúdo!
A ver "O FIM", capítulo de encerramento de Os Sertões, que ele chamava de "livro vingador", uma das mais pelas e poderosas páginas de nossa Literatura, e cuja vitalidade imagética e dramnática também poderia servir de modelo para quem quer escrever, hoje em dia, sem pensar que deve cuidar de compor cenas que capturem seu leitor.
[spoiler para quem pretende ler Os Sertões... Ou, Ora, que mesquinharia lembrar Euclides somente pelo escândalo midiático da "Tragédia da Piedade"!]
"O fim
Não há [como] relatar o que houve a 3 e a 4.
A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas.
Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o "hospital de sangue" dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército.
E lutavam com relativa vantagem ainda.
Pelos menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39°, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperam pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os...
Mas eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que os faziam. Aprumavam-se sobre o fosso e sopeava-lhes o arrojo o horror de um quadro onde a realidade tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de sangue e esvurmando pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada. E salteava-os a atonia do assombro...
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antonio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre essa fase obscura da nossa História?"
Selo de 1965
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