terça-feira, 23 de julho de 2024

 

SOBRE UNIVERSOS E UNIVERSALIDADE DA LITERATURA

 

                                                            Luiz Antonio Aguiar

                     

 








 

A Literatura em Perigo

Tzvetan Todorov

 

 

Conceição Evaristo escreveu seus contos dilacerantes, Olhos d’Água, elencando como protagonistas, em absoluto primeiro plano, personagens femininos, pretos e pardos, moradores de comunidades e periferias, humildes, humilhados, oprimidos. Mas, seus enredos se proliferam para além desses universos, e celebram igualmente o drama – ou a tragédia – humana. Há quem não suporte lê-los, tamanha a dor que goteja dessas linhas. Ao mesmo tempo, lê-los é experimentar outros olhos, é vivenciar uma dor secular – neste país em que o racismo, a misoginia e o desdém pelos pobres predominam, e têm guarida os que prefeririam não vê-los, que não existissem, e que dispensam os personagens de Evaristo para lembrar-lhes de seu delírio intolerante.




 

 Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida.

...

Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

 

               Lê-los é também enxergar a Universalidade (humana) desses personagens e dramas, um mergulho em sentimentos submersos e indeléveis. Algo que pode nos fazer sublinhar o que Todorov destaca como o(s) tema(s) central(is) da Literatura.

               De certo modo, Machado de Assis cometeu a mesma reviravolta na cena literária, mais de um século e meio atrás, e isso elevou nossa Literatura, permitindo que decolasse da estreiteza exótica, pitoresca – que tanto agradava ao colonizador – e trazendo o drama humano universal, em suas facetas, para nosso ambiente, ao mesmo tempo que fazia seus personagens descarnarem, à semelhança dos dilemas e conflitos que movimentam as peças de Shakespeare, ou outros do panteão  dos gênios planetários da Literatura.

               Assim, amasiando galhofa e melancolia, como um tempero/viés, só nosso, local, de ver o mundo (no caso da Europa, do mundo mais avançado, vê-lo de esguelha, todo ironia), no que Hamlet proclama que ninguém retorna do País Não-Descoberto, Machado traz de volta da tumba Braz Cubas, para nos narrar o mundo com seus lábios mordiscados pelo primeiro verme. Se Otello assassina Desdêmona por conta de seus destemperos de mouro – o que estabelece Shakespeare, que se valia como estratégia de composição dos preconceitos de sua época e mundo (quem se atreve a cancelá-lo?) –,  Bento Santiago é mais radical ainda, num modo cortês-tropical, no cancelamento de Capitu; aqui e lá sofrem (e sofremos) as delícias do amor e os tormentos do ciúme. Chamar Machado de realista, ou mesmo de cronista da história de seu tempo, é negar-lhe a transcendência, o que ele oferece além. Mesmo que seja de além-túmulo.

               Bento Santiago tem ímpetos/impulsos (mouros?) brasileiros e submundistas, que lutam com uma roupagem/ostentação de serem europeus implantados no Rio de Janeiro 40º C para se diferenciarem da horda de pretos/escravos e da ralé dos cortiços que cercavam o parisianismo da Rua do Ouvidor. 

               Já pulando para o século XX, Graciliano Ramos faz um predador-grileiro de terras brutas como Paulo Honório rasgar sua alma para nos defrontar com a mais absoluta e aterradora solidão que um ser humano pode construir para si mesmo (não que muitos personagens de Machado tenham se poupado de chafurdar no mesmo lodaçal). Guimarães Rosa, em seu metafísico A terceira margem do rio, e em outros contos, também traz imagens do que seria a (alma) saga humana, em sertões ignotos, perdidos. São personagens e romances “regionais”, mas com um estofo lírico-universal imenso e superior, para quiser descobri-los (desvendá-los).

               E isso para ficarmos somente em autores nacionais, sem nos arriscarmos à desolação de um Príncipe Michin, aos horrores (como se fúrias gregas o perseguissem) da culpa de um Raskolnikov (O idiota  e Crime e Castigo, respectivamente, de Dostoiévski), do amor, esse que nasce a contragosto, lutando para se desprender de idiossincrasias sociais e elitismos, de Elisabeth e Mr. Darcy (Orgulho e preconceito, Jane Austen), do sombrio Capitão Ahab, que persegue a morte, ou do inexplicável e desnorteante Bartleby – esses personagens que nos confrontam com nossa incompetência/incapacidade de compreender o que está fora do script ordinário - (Moby Dick e Bartleby, Herman Melville), e mais... da dor homicida de Medeia, a de Eurípides (ah, suportar a dor, num tempo de marketing dos sorrisos... queria ousar parodiar Fernando Pessoa e escrever que nunca vi quem postasse uma foto, desfeito em lágrimas, maquiagem borrada, no Instagram) ... Enfim, três mil anos.

               ISSO É LITERATURA (isso e muito mais coisa; generosa Literatura, universal, fraternal, humanista, iluminista e planetária, que tem um tanto de si para cada um de nós). Este legado – o drama humano -, a capacidade de nos levar em excursão perigosa por intimidades que na vida cotidiana, no dia a dia, não vislumbramos. Talvez porque ninguém ande na rua, nem vá ao trabalho, com a alma à vista – e talvez porque haja até mesmo os que, em relacionamentos mais próximos, familiares que sejam, não a revelem. Mas, na Literatura que se apropria de sua herança de três mil anos, lá está; e basta abrir um livro, basta conhecer Ana Davenga, Sorôco, sua mãe e sua filha, e todos os do vilarejo,  Pai & Filho & Canoa no Rio, Braz Cubas, Bentinho, Capitu, Paulo Honório...

               É uma Literatura perturbadora ...  (como a obsessão desvairada de Heathcliff por sua Catherine, em O morro dos ventos uivantes, de Emily Bronte – ler esse romance é como contaminar-se de uma paixão insana!)....  Não cabe em livros-frasistas/legendados, em alegorias planas, mas não é desafeta inclusive de públicos ariscos. Não é à toa que um Bartolomeu Campos de Queiroz (Indez, um dos livros que me levou a  querer escrever), Lygia Bojunga Nunes (Nós três, Meu amigo Pintor – e os desatinos do amor, do desapego à vida) e Ana Maria Machado (mesmo em seu aparentemente inocente Beto, o carneiro, que busca a si mesmo com uma determinação de quem sonha tornar-se apanhador no campo de centeio) são considerados livros para crianças ou jovens, quando são isso e mais muita coisa, no que enveredam (Grande Sertões) pelos domínios humanos, os quais os sorrisos patenteados, a auto-glorificação e a sabedoria protegida por máscaras de serenidade, que pretendem tornar maciçamente (maçante, previsível, depurada) fácil e feliz a vida, não comportam. Há mesmo uma tendência de chamar essas máximas, esse trivial aconselhamento sobre o trivial, de existencialismo, num profano reducionismo da denominação de uma questionadora escola filosófica do século XX (Viva Sartre e sua maneira de amar que valia a pen, dele e da sua eterna  Simone de Beauvoir!). Nem muito menos a mania de nos protegermos na coisa distante, antepassada, que fecha os olhos para o presente conturbado, que oferece caminhos anestesiados e não-aderentes para se contornar o nosso âmago – universal e perene, sempre namoricando a Infinitude!

               O que coloca A Literatura em perigo é a tendência corrente a se valorizar, promover, comprar, privilegiar a parte da literatura que sabe o que não deve cutucar para evitar de ser censurada – dócil à regulação predominante e ao conservadorismo, asséptica, sem odores nem dejetos e fluidos humanos... e também privada de paixão, daquela paixão que nos desequilibra no mundo. Que nos renova.

               Esse é o XPTO do problema.

Literatura apaixonada renova!

 

                               


 

 

               ... E paixão tanto por outro ser humano quanto por uma causa política, um trabalho, um ofício... Pessoas apaixonadas são mais difíceis de se lidar. Com frequência, investem contra moinhos e fazem de uma cuidadora de porcos do vilarejo uma Senhora Dulcineia del Toboso – como somente um perturbado o faria - , com a mesma arte com que as crianças de Evaristo nos comovem as vísceras ao, na falta de comida na panela,  coroarem sua Rainha. É uma cena de fazer os olhos se encherem d’água.

               E isso, PARA MIM, é o que é Literatura. 

               #minhapatriaéaliteratura   !




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