(SonHos em AmaReLo)
OBRA-PRIMA TRATA
JOVENS
COMO GENTE GRANDE
Gustavo Bernardo *
Publicado originalmente
em O GLOBO de 06/10/2007
Uma maneira de avaliar a qualidade de
um livro para jovens é observar a reação de leitura de um adulto. Se o livro
“captura” a atenção e a emoção do adulto, então ele deve ser um livro bom
também para o leitor adolescente. Isso acontece porque o adolescente é muito
mais adulto do que supõe a nossa vã pedagogia.
Ainda que o nosso sistema social e
correspondentes meios de comunicação se esforcem bastante para espichar a
infância e desresponsabilizar os jovens pelo máximo de tempo possível, há
reservas de inteligência, afetividade e responsabilidade que resistem. Elas
aparecem e brilham sempre que um professor os trata não como iguais mas como
pares responsáveis, ou sempre que eles se deparam com um livro para jovens que
não os infantiliza nem menospreza, isto é, que os respeita como adultos que já
são.
Entre os escritores que manifestam esse
respeito, encontramos Luiz Antonio Aguiar. Sua última novela para jovens
chama-se Sonhos em amarelo: o garoto que
não esqueceu Van Gogh (São Paulo: Melhoramentos, 2007). Avaliação sucinta:
trata-se de nada menos do que uma obra-prima. Quando a lemos, ficamos
profundamente tocados, como se ainda fôssemos... jovens! Em contrapartida,
pode-se supor que um jovem “de verdade”, ao ler essa novela, dirá logo que ela
“não é para crianças!”, e a desejará ler por isso mesmo: para ser tratado como
gente que já tem o cérebro e o coração grandes.
A solução narrativa de Luiz Antonio
contempla essa condição: a história é narrada por um senhor de 37 anos à beira
da 1ª Guerra Mundial, relembrando a época em que tinha 11 anos de idade. Esse
narrador é um personagem da vida “real” trazido para a ficção: seu nome é
Camille Roulin. Quando garoto, ele foi retratado várias vezes por Vicent Van
Gogh. Um dos quadros que o retrata é dos mais populares do pintor e se encontra
no Museu de Arte de São Paulo – chama-se O
garoto de quepe.
A história se passa no final da vida do
pintor, quando ele foi mais produtivo e ao mesmo tempo mais sofreu. O pai do
narrador, o simplório carteiro Joseph Roulin, se tornou o melhor amigo de Van
Gogh. O pai humilde e o seu jovem filho parecem entender Van Gogh e suas
pinturas melhor do que seus contemporâneos e até do que o famoso Paul Gauguin.
Entremeando-se à descrição cuidadosa da
vida cotidiana em uma aldeia do sul da França entre 1888 e 1890, quando o
pintor se suicidou com um tiro no peito, lemos a descrição-narração espetacular
de vários dos mais famosos quadros de Van Gogh. Dizemos “descrição-narração”
porque eles nos são mostrados pela ótica de um garoto que os viu serem
pintados, portanto eles nos são mostrados em movimento, desde os primeiros
esboços. A percepção desses quadros pelo narrador é iluminadora, porque ele os
vê com o olhar virgem tão perseguido pela filosofia daquele período, a
fenomenologia.
Essa percepção colide com os
preconceitos dos que não aceitavam de modo algum a “incerteza da beleza”,
digamos assim, promovida e provocada pelas pinturas de Van Gogh. Os maiorais da
aldeia não suportavam nem a personalidade tão agressiva quanto tímida do
pintor, nem seus quadros, que lhes davam vertigem. À página 53, um deles,
propositalmente sem nome, discursa com rancor: “ora, me diga alguém, o que se aprende
com essas pinturas dele? São um mal! Que mensagem edificante se pode depreender
delas? (...) o que o seu pincel toca, distorce. Nada do que ele pinta é
reconhecível, tudo delírio, tudo falsificação. (...) Em suas telas, há tudo
para os olhos, e nada para o espírito ou a mente.”
A novela de Luiz Antonio Aguiar prega todo o
contrário do que diz o personagem sem nome. Ela não pretende de modo algum
fazer uma literatura edificante ou didatizante, mas sim uma literatura que
propositalmente distorce a realidade para melhor nos mostrar novas e inusitadas
perspectivas sobre ela. Como nos quadros do pintor, ela não confirma nem
reafirma os clichês que grudaram na nossa mente, mas oferece aos olhos e à
imaginação do leitor outras tantas cores intensas, como devem de ser.
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