LIVROS TÊM HISTÓRIA
"SONHOS EM AMARELO"
Muitos
livros que escrevi têm uma história. Não a história que contam, somente, mas
também a história de como e por que foram escritos.
É o
caso de “Sonhos em Amarelo”...
... Que
tem uma história que conta um pouco sobre como os livros são criados, o tal do processo criativo em Literatura.
Com 19
anos, eu estava na Europa, no meio do inverno. Mais especificamente, em
Londres. E foi no inverno porque é quando as passagens ficam mais baratas. Eu
não tinha dinheiro para comprar comida, propriamente falando, somente pão e
livros. E também não tinha um casaco adequado para enfrentar aquele frio todo.
Então,
certa manhã gelada, eu quase virando picolé de carioca, passei por um museu, e
era dia de entrada grátis para estudantes. Com minha carteira internacional de
estudante (que me garantiu descontos em restaurantes universitários, cinemas e
vaga nos albergues), entrei, e lá dentro estava bem quentinho.
Nunca
tive gosto especial por pintura. Não conhecia quadros, nem pintores. Mas, de
repente, sei lá por quê, um quadro me deixou estatelado. Era uma pincelada
grossa, viva, pulsante. Um amarelo que explodia na tela, entrava pelas minhas
retinas e descia ao meu estômago, me tirando fora do tempo e espaço à minha
volta.
O
próximo momento consciente nas minhas lembranças foi um guarda do museu me
cutucando algo rispidamente para me tirar do transe, exigindo que eu me
levantasse, que museu não era lugar para sentar no chão, que não era assim que
se olhava quadros.
"Auto-retrato", Van Gogh, 1887
Só então me aproximei e li o nome do autor, na placa: Van Gogh. Creio que era um
de seus girassóis. Mas, poderia ser
outro. Gozado, disso não lembro ao certo. Mas, sim, do que estava se passando
dentro de mim. Nunca pensei que a pintura pudesse me emocionar daquela maneira.
Nem que um pintor poderia continuar vivo, na tela. Mas, senti tudo isso, ao ver
aquele quadro.
Dali
pra frente, foi paixão irremediável. Eu perseguia quadros de Van Gogh, quando podia viajar, e lia tudo o que me caía
nas mãos sobre ele, inclusive a coleção completa das Cartas, que ele escreveu a
Theo, principalmente nos seus últimos anos, em Arles.
Só fui
escrever
Sonhos em Amarelo, meu livro
sobre Van Gogh, aos 50 anos, em 2005. Tive de fazer uma cirurgia ortopédica nos
pés, para me devolver a mobilidade, e fiquei meses, em
casa, engessado (faria primeiro o pé esquerdo, depois o direito, no ano
seguinte). Sem reclamações: eu já não
conseguia andar, e recuperei isso, graças à cirurgia (Obrigado, Dr. Marcos
Donato Serra). E o caso é que aproveitei
a recuperação para escrever o livro.
Sempre
soube que o escreveria. Por outro lado, sentia um frio na barriga quando
pensava em começar. Até porque eu sabia que precisava arrumar um jeito de escrevê-lo. Não poderia ser na minha voz,
ou de um narrador em terceira pessoa em que eu me camuflasse, senão tudo o que
eu sentia por Van Gogh iria transbordar, e o livro ia ficar um saco, uma
tietagem sem fim. Precisaria arrumar uma outra voz para contar a história, para
me conter, frear, ou seja: outros olhos
para ver Van Gogh, o ser humano e seus quadros.
Tantas
vezes tinha ido ao MASP (SP) visitar os 4 quadros de Van Gogh que tem lá. E um
dia, sem me dar conta, me vi sonado diante de O Menino de Quepe, no qual Van
Gogh retrata Camilo Roulin, aos 11 anos.
"O Menino de Quepe", Van Gogh, 1888
Joseph
Roulin – um homenzarrão de ideias socialistas, generoso e extrovertido ao
extremo - , o carteiro de Arles, de tanto pegar e entregar cartas de Van Gogh
(que escrevia quase diariamente e às vezes mais de uma vez por dia ao irmão
Theo) tornou-se amigo do pintor. De fato,
o único amigo que Van Gogh fez na vida. E a convivência com os Roulin foi a
única oportunidade que ele teve de experimentar viver em família, algo que ele desejava ardentemente. Van Gogh
retratou toda a família Roulin, e fez vários quadros de cada um deles,
inclusive de Camile, filho de Joseph.
"Joseph Roulin", Van Gogh, 1888
Aliás,
esse era um dos encantos de Van Gogh sobre mim. Sentia que o que ele mais
queria da vida, e não tinha, pôs nos quadros. Há por exemplo um quadro dele que
se chama Primeiros Passos. Nele,
vemos o pintor, se autorretratando, chegando em casa, a esposa na porta,
deixando ir ao encontro dele um menininho pequeno, que anda pela primeira vez.
O pintor está agachado, em vias de receber o menininho nos braços. Uma cena linda,
tocante, e mais ainda quando sabemos que Van Gogh sempre ansiou por viver algo
assim – ter esposa, um casamento, filhos, família, testemunhar os primeiros
passos de seu filho –, e só pôde viver isso na sua pintura.
"Primeiros Passos", Van Gogh, 1888
E,
naquele apagão que me levou a
conversar com O Menino de Quepe, eu
havia encontrado o olhar e a voz que
procurava. Sem a pieguice apaixonada, um narrador algo temeroso, estranhando o
que vê, uma pintura deslumbrante que pega de vez mesmo quem não entende de
pintura, que apaixona, que surpreende pela vitalidade, cor, alegria que
irradia, e ainda mais em contraste com o espírito enroscado, amargurado,
combalido, depauperado de quem a produz. Um menino de 11 anos, tentando
entender o que está sentindo, sua estranheza diante do que os quadros lhe
despertam, e, ao mesmo tempo, buscando lidar com sua compaixão por aquele ser solitário,
repudiado pelo seu meio, tão inapto para a vida no mundo, para o dia a dia; um cara tão... esquisito.
Daí,
tempos depois, lá estava eu, imobilizado, me restabelecendo da cirurgia. Minha
mulher foi bem legal, me deixou ocupar a sala do nosso apartamento, forrando-a
com reproduções de Van Gogh. E foi passeando por elas, todos aqueles meses e
outros depois, vendo com seus olhos de pintor a vida e traduzindo-as para voz
que criei para Camilo Roulin, que escrevi meu livro.
"Café Noturno", Van Gogh, 1888
"A Casa Amarela", Van Gogh, 1888
Tem
gente que não gosta de biografia ficionalizada. Fui aprender isso depois...
Preferem tudo baseado em fatos reais.
Bem, Literatura não fala de realidade, nem de verdades. É invenção. Muito da
biografia de Van Gogh, eu tirei das cartas (é a maior fonte para conhecermos
sua vida). Mas há todo um lado íntimo, diálogos, momentos privados, que
inventei. Isso é ficção. Como escrevi em algum lugar, é feito farinha e pão.
Pão não é farinha. Além dela, leva outros ingredientes, uma boa pitada de
fermento (ou não), a mão que amassa, sova, o período de descanso da massa, para
ela crescer, o forno bem quente... Ficção não é realidade. A realidade é um dos
ingredientes. Mas a ficção leva
muitos outros e muito mais coisa, além de realidade.
Foi
assim, descobrindo isso dentro de mim, refletindo
sobre isso, que comecei a escrever meu Sonhos
em Amarelo, que ganhou prêmios no Brasil e no exterior, e que foi traduzido
para o italiano com o título Vicente Il Matto (Vicente, o louco, que era como o chamavam em Arles), publicado
pela editora Giunti.Outras traduções estão sendo negociadas e/ou em produção.
A
história de Vincent Van Gogh é absurdamente comovente. Ninguém o reconhecia
sequer como pintor, muito menos como gênio. Vendeu somente um de seus quadros
em vida, o que o deprimia bastante. Mas, logo depois de sua morte (suicidou-se,
depois de uma temporada em asilos para doentes mentais), em 1890, começou a
fazer sucesso, até se tornar o que é hoje, um ícone, um dos artistas mais
conhecidos do público leigo – quem não identifica de cara um Girassóis? Nada é tão impactante como
seus quadros e como a influência avassaladora que teve sobre a pintura e sobre
a cultura do Planeta.
[Trecho da resenha publicada originalmente em O
GLOBO de 06/10/2007
OBRA-PRIMA TRATA JOVENS COMO GENTE GRANDE
Gustavo
Bernardo
Uma
maneira de avaliar a qualidade de um livro para jovens é observar a reação de
leitura de um adulto. Se o livro “captura” a atenção e a emoção do adulto,
então ele deve ser um livro bom também para o leitor adolescente. Isso acontece
porque o adolescente é muito mais adulto do que supõe a nossa vã pedagogia.
Ainda que o nosso sistema social e correspondentes meios de comunicação se
esforcem bastante para espichar a infância e desresponsabilizar os jovens pelo
máximo de tempo possível, há reservas de inteligência, afetividade e
responsabilidade que resistem. Elas aparecem e brilham sempre que um professor
os trata não como iguais mas como pares responsáveis, ou sempre que eles se
deparam com um livro para jovens que não os infantiliza nem menospreza, isto é,
que os respeita como adultos que já são.
Entre os escritores que manifestam esse respeito, encontramos Luiz Antonio
Aguiar. Sua última novela para jovens chama-se Sonhos em amarelo: o garoto que
não esqueceu Van Gogh (São Paulo: Melhoramentos, 2007). Avaliação sucinta:
trata-se de nada menos do que uma obra-prima. Quando a lemos, ficamos
profundamente tocados, como se ainda fôssemos... jovens! Em contrapartida,
pode-se supor que um jovem “de verdade”, ao ler essa novela, dirá logo que ela
“não é para crianças!”, e a desejará ler por isso mesmo: para ser tratado como
gente que já tem o cérebro e o coração grandes.
A solução narrativa de Luiz Antonio contempla essa condição: a história é
narrada por um senhor de 37 anos à beira da 1ª Guerra Mundial, relembrando a
época em que tinha 11 anos de idade. Esse narrador é um personagem da vida
“real” trazido para a ficção: seu nome é Camille Roulin. Quando garoto, ele foi
retratado várias vezes por Vicent Van Gogh. Um dos quadros que o retrata é dos
mais populares do pintor e se encontra no Museu de Arte de São Paulo – chama-se
O garoto de quepe.
Para mim, foi uma realização sem fim. Escrevi um livro que me desafiava, que me custou empenho emocional para escrever ew um bocado de elaboração para saber como ia escrever, que tinha dentro de mim fazia quase 30 anos, e que se tornou uma alegria, um grande orgulho. Desses que me dão sentido a eu me dedicar à Literatura.
A escrever por (e com) paixão pela Literatura.
... Daí,
quando eu já estava nas releituras/reescrituras sem fim, sobre o texto,
recebemos um telefonema. De uma só vez, nos comunicaram que nosso primeiro neto iria nascer,
que seria um menino e que o nome já estava escolhido: Vicente. Diante dessa
conspiração cósmica, eu me sentei na mesma hora e digitei a dedicatória do
livro: “Para o nosso Vicente”.
É essa
a história de Sonhos em Amarelo.