SOBRE
UNIVERSOS E UNIVERSALIDADE DA LITERATURA
A Literatura em
Perigo
Tzvetan Todorov
Conceição Evaristo escreveu seus
contos dilacerantes, Olhos d’Água, elencando como protagonistas, em
absoluto primeiro plano, personagens femininos, pretos e pardos, moradores de comunidades
e periferias, humildes, humilhados, oprimidos. Mas, seus enredos se proliferam
para além desses universos, e celebram igualmente o drama – ou a tragédia –
humana. Há quem não suporte lê-los, tamanha a dor que goteja dessas linhas. Ao mesmo tempo, lê-los é experimentar outros olhos, é vivenciar uma dor
secular – neste país em que o racismo, a misoginia e o desdém pelos pobres predominam,
e têm guarida os que prefeririam não vê-los, que não existissem, e que
dispensam os personagens de Evaristo para lembrar-lhes de seu delírio
intolerante.
Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe
cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o
nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que
fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago,
ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de
comida.
...
Nessas ocasiões
a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se
assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes, colhíamos
flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco.
As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo.
E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e
batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos,
dançávamos, sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um sorriso
molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
Lê-los é
também enxergar a Universalidade (humana) desses personagens e dramas,
um mergulho em sentimentos submersos e indeléveis. Algo que pode nos fazer
sublinhar o que Todorov destaca como o(s) tema(s) central(is) da Literatura.
De certo
modo, Machado de Assis cometeu a mesma reviravolta na cena literária, mais de
um século e meio atrás, e isso elevou nossa Literatura, permitindo que
decolasse da estreiteza exótica, pitoresca – que tanto agradava ao colonizador
– e trazendo o drama humano universal, em suas facetas, para nosso ambiente, ao
mesmo tempo que fazia seus personagens descarnarem, à semelhança dos dilemas e
conflitos que movimentam as peças de Shakespeare, ou outros do panteão dos gênios planetários da Literatura.
Assim,
amasiando galhofa e melancolia, como um tempero/viés, só nosso, local, de ver o
mundo (no caso da Europa, do mundo mais avançado, vê-lo de esguelha,
todo ironia), no que Hamlet proclama que ninguém retorna do País
Não-Descoberto, Machado traz de volta da tumba Braz Cubas, para nos narrar
o mundo com seus lábios mordiscados pelo primeiro verme. Se Otello
assassina Desdêmona por conta de seus destemperos de mouro – o que estabelece
Shakespeare, que se valia como estratégia de composição dos preconceitos de sua
época e mundo (quem se atreve a cancelá-lo?) –, Bento Santiago é mais radical ainda, num modo
cortês-tropical, no cancelamento de Capitu; aqui e lá sofrem (e sofremos) as
delícias do amor e os tormentos do ciúme. Chamar Machado de realista, ou
mesmo de cronista da história de seu tempo, é negar-lhe a
transcendência, o que ele oferece além. Mesmo que seja de além-túmulo.
Bento
Santiago tem ímpetos/impulsos (mouros?) brasileiros e
submundistas, que lutam com uma roupagem/ostentação de serem europeus implantados
no Rio de Janeiro 40º C para se diferenciarem da horda de pretos/escravos e da ralé
dos cortiços que cercavam o parisianismo da Rua do Ouvidor.
Já
pulando para o século XX, Graciliano Ramos faz um predador-grileiro de terras
brutas como Paulo Honório rasgar sua alma para nos defrontar com a mais
absoluta e aterradora solidão que um ser humano pode construir para si mesmo
(não que muitos personagens de Machado tenham se poupado de chafurdar no mesmo
lodaçal). Guimarães Rosa, em seu metafísico A terceira margem do rio, e em
outros contos, também traz imagens do que seria a (alma) saga humana, em
sertões ignotos, perdidos. São personagens e romances “regionais”, mas com um
estofo lírico-universal imenso e superior, para quiser descobri-los
(desvendá-los).
E isso
para ficarmos somente em autores nacionais, sem nos arriscarmos à desolação de
um Príncipe Michin, aos horrores (como se fúrias gregas o perseguissem) da
culpa de um Raskolnikov (O idiota e Crime e Castigo, respectivamente, de
Dostoiévski), do amor, esse que nasce a contragosto, lutando para se desprender
de idiossincrasias sociais e elitismos, de Elisabeth e Mr. Darcy (Orgulho e
preconceito, Jane Austen), do sombrio Capitão Ahab, que persegue a morte,
ou do inexplicável e desnorteante Bartleby – esses personagens que nos
confrontam com nossa incompetência/incapacidade de compreender o que está fora
do script ordinário - (Moby Dick e Bartleby, Herman Melville), e mais...
da dor homicida de Medeia, a de Eurípides (ah, suportar a dor, num tempo de
marketing dos sorrisos... queria ousar parodiar Fernando Pessoa e escrever que nunca
vi quem postasse uma foto, desfeito em lágrimas, maquiagem borrada, no Instagram)
... Enfim, três mil anos.
ISSO É
LITERATURA (isso e muito mais coisa; generosa Literatura, universal, fraternal,
humanista, iluminista e planetária, que tem um tanto de si para cada um de
nós). Este legado – o drama humano -, a capacidade de nos levar em excursão
perigosa por intimidades que na vida cotidiana, no dia a dia, não vislumbramos.
Talvez porque ninguém ande na rua, nem vá ao trabalho, com a alma à vista – e
talvez porque haja até mesmo os que, em relacionamentos mais próximos,
familiares que sejam, não a revelem. Mas, na Literatura que se apropria de sua
herança de três mil anos, lá está; e basta abrir um livro, basta conhecer Ana
Davenga, Sorôco, sua mãe e sua filha, e todos os do vilarejo, Pai & Filho & Canoa no Rio, Braz
Cubas, Bentinho, Capitu, Paulo Honório...
É uma
Literatura perturbadora ... (como a
obsessão desvairada de Heathcliff por sua Catherine, em O morro dos ventos
uivantes, de Emily Bronte – ler esse romance é como contaminar-se de uma
paixão insana!).... Não cabe em livros-frasistas/legendados,
em alegorias planas, mas não é desafeta inclusive de públicos ariscos. Não é à
toa que um Bartolomeu Campos de Queiroz (Indez, um dos livros que me
levou a querer escrever), Lygia Bojunga
Nunes (Nós três, Meu amigo Pintor – e os desatinos do amor, do
desapego à vida) e Ana Maria Machado (mesmo em seu aparentemente inocente Beto,
o carneiro, que busca a si mesmo com uma determinação de quem sonha
tornar-se apanhador no campo de centeio) são considerados livros para
crianças ou jovens, quando são isso e mais muita coisa, no que enveredam (Grande
Sertões) pelos domínios humanos, os quais os sorrisos patenteados, a
auto-glorificação e a sabedoria protegida por máscaras de serenidade, que
pretendem tornar maciçamente (maçante, previsível, depurada) fácil e feliz a
vida, não comportam. Há mesmo uma tendência de chamar essas máximas, esse trivial
aconselhamento sobre o trivial, de existencialismo, num profano
reducionismo da denominação de uma questionadora escola filosófica do século XX
(Viva Sartre e sua maneira de amar que valia a pen, dele e da sua eterna Simone de Beauvoir!). Nem muito menos a mania
de nos protegermos na coisa distante, antepassada, que fecha os
olhos para o presente conturbado, que oferece caminhos anestesiados e
não-aderentes para se contornar o nosso âmago – universal e perene, sempre namoricando
a Infinitude!
O que
coloca A Literatura em perigo é a tendência corrente a se valorizar,
promover, comprar, privilegiar a parte da literatura que sabe o que não deve
cutucar para evitar de ser censurada – dócil à regulação predominante e ao
conservadorismo, asséptica, sem odores nem dejetos e fluidos humanos... e
também privada de paixão, daquela paixão que nos desequilibra no mundo. Que nos
renova.
Esse é o
XPTO do problema.
Literatura apaixonada renova!
... E
paixão tanto por outro ser humano quanto por uma causa política, um trabalho,
um ofício... Pessoas apaixonadas são mais difíceis de se lidar. Com frequência,
investem contra moinhos e fazem de uma cuidadora de porcos do vilarejo uma
Senhora Dulcineia del Toboso – como somente um perturbado o faria - ,
com a mesma arte com que as crianças de Evaristo nos comovem as vísceras ao, na
falta de comida na panela, coroarem sua
Rainha. É uma cena de fazer os olhos se encherem d’água.
E isso,
PARA MIM, é o que é Literatura.
#minhapatriaéaliteratura !