quarta-feira, 25 de dezembro de 2024


 

 

DESLOCAMENTOS

A poesia de Marília Garcia, Rita Von Hunty, Oscar Wilde, Gabriel García Marquéz, Rembrandt e a Esfinge de Sófocles (além de alguns poemas ruins).

 

 

 

 

 

Imagino como ama Rita von Hunty.

Um enigma.

 

 


               Li, há poucas semanas, Câmara lenta, de Marília Garcia. Com esse seu livro de poesia, ela venceu o Prêmio Oceanos, um dos mais importantes prêmios literários entre os países de língua portuguesa. Até onde pesquisei, Marília já foi publicada em Portugal, Espanha, Argentina, Colômbia, Chile e Estados Unidos.

A questão é que não sei se gosto da poesia de Marília Garcia e de Câmara Lenta, único livro seu que li até agora. Não sei se sequer reconheço sua poesia como poesia (ela prevê que isso possa acontecer em muitos leitores; provavelmente, o deseje). Não consigo decidir. Mas, sua estética me abalou profundamente. A ponto de sentir vontade de emulá-la. Não sei aonde isso me leva. É uma experiência oposta a (má) poesia que escrevo e à (boa) que estou habituado a ler.  

 

12.

 

 em 2009 eu estava na frança

 e minha mãe foi me visitar

meu padrasto comprou a passagem para ela

 ir

no voo 447 da air france ele me ligou

para confirmar os dados do voo:

minha mãe sairia do rio de janeiro no domingo 31 de maio

e chegaria em paris na segunda-feira 1º de

junho

 

mas eu preferia que ela chegasse

no domingo e não segunda

 para ir ao aeroporto buscá-la

perguntei ao meu padrasto

 se ele poderia trocar a passagem por outra

que saísse na véspera

 

 meu padrasto trocou a passagem que tinha comprado pra ela no voo 447

da air france

por uma passagem pela TAM saindo do rio de janeiro

na véspera

 

minha mãe saiu do rio de janeiro no sábado

 30 de maio

e chegou no aeroporto charles de gaulle no domingo 31 de maio

 

o voo 447 da air france saiu do rio de janeiro como previsto

no domingo 31 de maio

e caiu no meio do oceano atlântico

 

na madrugada do dia 1º- de junho

 dia 1º- de junho era feriado na frança

e eu não tive compromissos de trabalho

como imaginei que teria quando pedi

ao meu padrasto para trocar a passagem da minha mãe

 

             

               Em outro momento, Marília revela que...

 

ao escrever eu estava sempre preocupada

com o deslocamento tentava pensar nele não só como tema

 mas como procedimento

 

Garcia, Marília. Câmera lenta: Poemas (Portuguese Edition). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

 

               E, daí, minha emulação...

 

 

Há tanta misoginia

No Wilde de O retrato de Dorian Gray...

E mesmo assim me vejo amando

e aninhando paixões amanhecidas

como as mulheres que

ele desdenhava,

em correspondência simbiótica

com aquele vitorianismo (brasil 2019>22) esquálido que sitiava seus personagens.

Já eu

imagino como ama Rita Von Hunty.

Um enigma.

E, sobre enigmas...

Minhas paixões não passam,

Embora o tempo não as espere.

O tempo que faz

faz de conta que passa.

Mas, não para mim.

Só me faz de conta.

Feito os olhos de Rembrandt em seus auto-retratos (amo os hífens).

Que cofream (ou seria cofreiam?) uma dor rebelada (não se resigna à tela).  

Apavorante.

que não passa.

Entra em nós. Nos faz tumba.

O tempo não passa

para a dor das muitas perdas

que ejaculam sobre nós

dos olhos de Rembrandt.

Penso em Gabo e

Mais uma vez no tempo que não passa.

A solidão não deixa o tempo passar.

Somente as poderosas mulheres de Macondo,

capazes de fazer tremer a terra com seu gozo. Solitário.

Elas reinam no tempo.

A Vida deve imitar a Arte?

Pressinto limites para a errática

busca do ser humano pela felicidade.

E sinto termos um Deus que sofre e chora por

não  conseguir consertar o mundo, não poder evitar nem chacinas, nem mortes de quem desejaria tanto viver,

mas cuja empatia (de Deus), esperançosamente,

de tão cósmica,

quem sabe,

há de fertizar-se um dia em cada um de nós

nossos óvulos

evitar então atrocidades

e mesmo meras maldades.

Daqui a tempos. Que tarde, e no entanto não passa.

Mas, fato é que a Eternidade não é Humana.

 

 

               Não vou tentar neste ensaio costurar abalos que, por mais que se enrosquem, na minha perturbação, não tenho como ligar em uma colcha de retalhos. Talvez porque não sejam para ser assim.

 

               Rita von Hunty.

               Rita me evoca algo que escrevi no thriller (de tribunal) de 2020, O caso Édipo... Me fez entender a visão que tive de um dos meus personagens, a Esfinge.

               Aqui, ponho em cena a Esfinge, como testemunha de defesa, na apelação imposta por Antígona, que tem como patrono Dioniso e, como promotor, Tirésias, o vidente cego, defendendo a prerrogativa do deus Hades (também, por disparate, o juiz da causa) de manter o espectro de Édipo e de toda a sua família, na condenação, sem Redenção, ao Esquecimento e à Escuridão do Reino dos Mortos, do qual é o senhor e com o qual compartilha o nome. É ele seu deus onipotente. Eis o trecho...

              

 

            “Entretanto, interrompendo Tirésias, surgiu em cena o monstro chamado Esfinge...O vidente calou-se,  fosse por temor a Hades e subserviência a sua decisão de permitir que a Esfinge participasse do processo, fosse porque até mesmo ele, que, em sua cegueira, vira o que nenhum mortal vira, em vida, se espantou com a figura. Corpo opulento. Patas, dorso e ancas de leoa, fartos seios de mulher, rosto indefinível, andrógino e dotado de uma perversa beleza, principalmente nos lábios, abusadamente entumecidos. Asas como os de um abutre gigante. Os olhos da Esfinge tinham cor de esmeralda, temperados com chispas sanguíneas, e examinavam o ambiente com a malícia de um predador, que ela era, uma devoradora de pessoas, enquanto, com seu passo silencioso e altivo, sem pressa,  em majestosa lassidão, ganhava o centro do palco.  Foi exatamente onde se deteve. Depois de uma pausa, sustentando imperturbável os olhares que buscavam compreendê-la, a Esfinge falou:

            - Por que me trouxeram a este antro defunto? Aqui, a carne fede. Aliás, nem carne há, pelo que constato. Não... carne nenhuma! Só o que restou dela... esse fedor!

            Também sua voz era ambígua, nem de mulher, nem de homem. Nem de animal, nem humana. Tirésias, com a prerrogativa do primeiro interrogatório, inquiriu-a:

            - Então, comece dizendo quem é você, afinal. Ente morto que no entanto não habita o Reino dos Mortos. Espectro que vaga, mas não no Submundo, e sim num limbo inalcançável para qualquer compreensão. Você é uma... não-pessoa...!

            - É como você diz, criatura insossa, fantasma... – sorriu a Esfinge. –  Eu sou o  Enigma.”

           

 

 

Este mesmo Ser, proclama, mais adiante...

 

“Não poderíamos irromper, de repente, como exceções... como... aberrações, é como nos chamariam... num cosmos repleto de leis.  Um tédio de mundo! Não sou um pedaço de uma espécie. Sou uma criatura única.”

 

 

É o que me fascina nas Drag Queens (talvez algo à semelhança do que me tumultua nos poemas de Marília). São singularidades. Isso é mais complexo do que os clichês sobre diversidade. Cada qual é única, e isso é desafiador demais. Perturbador demais. Tem um poder deslocador imenso, devastador, sobre o conservadorismo. Haja vista o impacto do show de Madonna, no Rio de Janeiro, em maio de 2024, e o pânico raivoso, irado, furibundo, dos conservadores, envenenando as redes sociais.

 

Rita von Hunty é uma Drag ainda mais deslocada, porque não somente desloca o conceito de gênero, seja qual for o que se queira aplicar a ela, como também desloca o próprio enclausuramento de mentes sobre o que é ser uma Drag. Ela não saiu de uma Gaiola das Loucas, nem cruzou o deserto, a bordo da Rainha Priscila (lindos filmes!). Não é somente espalhafato (bem pouco disso, aliás), mas é uma Drag singular por ser de esquerda e professar isso. Uma Drag Comunista.

Talvez seus conceitos de marxismo estejam um tanto eivados duma ortodoxia a lá Martha Hanecker. Mas, ela se propõe a educar, e assim um certo didatismo não é despropositado. Claro que a esquerda radical não pode se prender às ortodoxias. A esquerda, a idealista, quixotesca e transformadora é a maior defensora da democracia, opõe-se a ditaduras, repressão e tiranetes, a bufões de redes sociais, a todo tipo de repressão política, ao obscurantismo, à boçalidade e ao fanatismo, em suas diversas versões; é iluminista, humanista, aposta na ciência, e tanto no avanço do conhecimento e do refinamento da cultura quanto na prosperidade.

Creio, no entanto, que acima dessas mensagens explícitas, o quanto Rita von Hunty desloca é mais pela sua presença  entre nós - espaço que ela conquistou, que não lhe foi cedido sem sacrifícios e luta (VIVA PABLO VITTAR e TOD...S)– do que em respostas. São suas perguntas, seu non-sense, vs a lógica fechadora, sua capacidade de, por se expor, expor também ao ridículo (Múúú!) todo pensamento (sic!) conservador. Ela indaga o que, sem respostas prontas, politicamente corretas e canônicas,  nos leva a becos sem saída.

Ela é o enigma.

E creio que sua potência não é pedir decifração, mas permanecer na estrada, devoradora, latente – deslocante.

            Que me fez abrir mão, nesse poema (?) acima, de uma perseguição estética diferente para pretender experimentar a de Marília García. Alguns de meus poemas (ruins – e não é modéstia; sou leitor, inclusive de mim mesmo) seguem abaixo como amostra. Antecipo que não os renego, nem abandonei a musicalidade(anacrônica?) que tentei alcançar  com eles. Não se trata disso, mas de um deslocamento, provavelmente, temporário.


                                             

                                                           



    











 

Poesia ou não (os meus são óbvios!) os poemas de Marília Garcia são mais poderosos do que os meus.

Para mim, a Arte, o Conhecimento e a Cultura têm sim, como efeito superior, deslocar o conservadorismo de sua inércia. E VACINAR CONTRA SEU PODER DE INFECÇÃO cujo princípio ativo é o medo à descoberta.

 Por exemplo, os que ostentam a Bandeira Nacional, onde podem, abusadamente, como se não só a nação – o Brasil, no caso – pertencesse somente a eles, e o significado de ser brasileiro, mas também como se a noção (pertencimento) de nação já estivesse dada/o, talvez secularmente, nos quartéis, se não na paz eterna. Como se não tivéssemos de redefinir o mundo diante de fatos emergentes que vão desde a Internet às migrações forçadas, à questão dos refugiados. Como se a nacionalidade deste país mestiço fosse uma só, pura – e como se não tivéssemos a chance (como se fosse decente ignorar essa chance)  justamente por isso de criar uma noção mais fraterna, planetária e generosa de nação. Como se a miscigenação não fosse nossa grande oportunidade;  como se nosso cadinho cultural (Saravá! Inshalá !Mazel Tov!) não fosse o maravilhamento necessário para substituirmos a fé na Verdade por uma amplitude de possibilidades – os “impossíveis possibilíssimos” (A suposta existência), que nos legou Drummond, como se toda a reflexão que se impõe sobre a proximidade do Nosso Próximo e sobre as vicissitudes da vida pudesse ser substituída (a não ser para lacrar sentimentos e inteligências,  o clichê de corações e mentes) por conselhos genéricos e vagos sobre a vida, sobre o ser humano, quando não pelo fanatismo.

 

Por isso, Rita Von Hunty, o Enigma, os olhos (que negam a capacidade diluidora e o fluir do tempo da dor, do amor, da busca) de Rembrandt e o Deslocamento  que produziu em mim a poesia de Marília García, para não insistir no patriotismo patético  dos... PATRIOTAS... foram reunidos neste ensaio.

Que são dúvidas.

Como alertei ao leitor fortuito, não concluí chongas disso tudo.

 

 

 

[Para minha mulher, que entendeu perfeitamente por que tive de passar a manhã do Dia de Natal de 2024, escrevendo esta coisa que não chega a um lugar devido, que não deve e não deve a ninguém, e não rende nada na nossa conta bancária: EU TE AMO!!!).