DESLOCAMENTOS
A poesia de Marília
Garcia, Rita Von Hunty, Oscar Wilde, Gabriel García Marquéz, Rembrandt e a Esfinge
de Sófocles (além de alguns poemas ruins).
Imagino como ama
Rita von Hunty.
Um enigma.
Li, há
poucas semanas,
Câmara lenta, de Marília Garcia. Com esse seu livro de poesia, ela venceu o Prêmio Oceanos, um dos mais importantes prêmios literários entre os
países de língua portuguesa. Até onde pesquisei, Marília já foi publicada em
Portugal, Espanha, Argentina, Colômbia, Chile e Estados Unidos.
A questão é que não sei
se gosto da poesia de Marília Garcia e de Câmara Lenta, único livro seu
que li até agora. Não sei se sequer reconheço sua poesia como poesia (ela prevê
que isso possa acontecer em muitos leitores; provavelmente, o deseje). Não
consigo decidir. Mas, sua estética me abalou profundamente. A ponto de sentir
vontade de emulá-la. Não sei aonde isso me leva. É uma experiência oposta a
(má) poesia que escrevo e à (boa) que estou habituado a ler.
12.
em 2009 eu estava na frança
e minha mãe foi me visitar
meu padrasto
comprou a passagem para ela
ir
no voo 447
da air france ele me ligou
para
confirmar os dados do voo:
minha mãe
sairia do rio de janeiro no domingo 31 de maio
e chegaria
em paris na segunda-feira 1º de
junho
mas eu
preferia que ela chegasse
no domingo e
não segunda
para ir ao aeroporto buscá-la
perguntei ao
meu padrasto
se ele poderia trocar a passagem por outra
que saísse
na véspera
meu padrasto trocou a passagem que tinha
comprado pra ela no voo 447
da air
france
por uma
passagem pela TAM saindo do rio de janeiro
na véspera
minha mãe
saiu do rio de janeiro no sábado
30 de maio
e chegou no
aeroporto charles de gaulle no domingo 31 de maio
o voo 447 da
air france saiu do rio de janeiro como previsto
no domingo
31 de maio
e caiu no
meio do oceano atlântico
na madrugada
do dia 1º- de junho
dia 1º- de junho era feriado na frança
e eu não
tive compromissos de trabalho
como
imaginei que teria quando pedi
ao meu
padrasto para trocar a passagem da minha mãe
Em outro
momento, Marília revela que...
ao escrever
eu estava sempre preocupada
com o
deslocamento tentava pensar nele não só como tema
mas como procedimento
Garcia, Marília. Câmera lenta: Poemas (Portuguese Edition).
Companhia das Letras. Edição do Kindle.
E, daí,
minha emulação...
Há tanta
misoginia
No Wilde de O
retrato de Dorian Gray...
E mesmo
assim me vejo amando
e aninhando
paixões amanhecidas
como as
mulheres que
ele
desdenhava,
em correspondência
simbiótica
com aquele
vitorianismo (brasil 2019>22) esquálido que sitiava seus personagens.
Já eu
imagino como
ama Rita Von Hunty.
Um enigma.
E, sobre enigmas...
Minhas
paixões não passam,
Embora o
tempo não as espere.
O tempo que
faz
faz de conta
que passa.
Mas, não
para mim.
Só me faz de
conta.
Feito os
olhos de Rembrandt em seus auto-retratos (amo os hífens).
Que cofream
(ou seria cofreiam?) uma dor rebelada (não se resigna à tela).
Apavorante.
que não
passa.
Entra em nós.
Nos faz tumba.
O tempo não
passa
para a dor
das muitas perdas
que ejaculam
sobre nós
dos olhos de
Rembrandt.
Penso em
Gabo e
Mais uma vez
no tempo que não passa.
A solidão
não deixa o tempo passar.
Somente as
poderosas mulheres de Macondo,
capazes de
fazer tremer a terra com seu gozo. Solitário.
Elas reinam no
tempo.
A Vida deve
imitar a Arte?
Pressinto
limites para a errática
busca do ser
humano pela felicidade.
E sinto termos
um Deus que sofre e chora por
não conseguir consertar o mundo, não poder evitar
nem chacinas, nem mortes de quem desejaria tanto viver,
mas cuja
empatia (de Deus), esperançosamente,
de tão
cósmica,
quem sabe,
há de fertizar-se
um dia em cada um de nós
nossos
óvulos
evitar então
atrocidades
e mesmo
meras maldades.
Daqui a tempos.
Que tarde, e no entanto não passa.
Mas, fato é
que a Eternidade não é Humana.
Não vou
tentar neste ensaio costurar abalos que, por mais que se enrosquem, na minha
perturbação, não tenho como ligar em uma colcha de retalhos. Talvez porque não sejam
para ser assim.
Rita von
Hunty.
Rita me
evoca algo que escrevi no thriller (de tribunal) de 2020, O caso Édipo...
Me fez entender a visão que tive de um dos meus personagens, a Esfinge.
Aqui,
ponho em cena a Esfinge, como testemunha de defesa, na apelação imposta por
Antígona, que tem como patrono Dioniso e, como promotor, Tirésias, o vidente
cego, defendendo a prerrogativa do deus Hades (também, por disparate, o juiz da
causa) de manter o espectro de Édipo e de toda a sua família, na condenação, sem
Redenção, ao Esquecimento e à Escuridão do Reino dos Mortos, do qual é o senhor
e com o qual compartilha o nome. É ele seu deus onipotente. Eis o trecho...
“Entretanto, interrompendo Tirésias,
surgiu em cena o monstro chamado Esfinge...O vidente calou-se, fosse por temor a Hades e subserviência a sua
decisão de permitir que a Esfinge participasse do processo, fosse porque até
mesmo ele, que, em sua cegueira, vira o que nenhum mortal vira, em vida, se
espantou com a figura. Corpo opulento. Patas, dorso e ancas de leoa, fartos
seios de mulher, rosto indefinível, andrógino e dotado de uma perversa beleza,
principalmente nos lábios, abusadamente entumecidos. Asas como os de um abutre
gigante. Os olhos da Esfinge tinham cor de esmeralda, temperados com chispas
sanguíneas, e examinavam o ambiente com a malícia de um predador, que ela era,
uma devoradora de pessoas, enquanto, com seu passo silencioso e altivo, sem
pressa, em majestosa lassidão, ganhava o
centro do palco. Foi exatamente onde se
deteve. Depois de uma pausa, sustentando imperturbável os olhares que buscavam
compreendê-la, a Esfinge falou:
- Por que me trouxeram a este antro
defunto? Aqui, a carne fede. Aliás, nem carne há, pelo que constato. Não...
carne nenhuma! Só o que restou dela... esse fedor!
Também sua voz era ambígua, nem de
mulher, nem de homem. Nem de animal, nem humana. Tirésias, com a prerrogativa
do primeiro interrogatório, inquiriu-a:
- Então, comece dizendo quem é você,
afinal. Ente morto que no entanto não habita o Reino dos Mortos. Espectro que
vaga, mas não no Submundo, e sim num limbo inalcançável para qualquer
compreensão. Você é uma... não-pessoa...!
- É como você diz, criatura insossa,
fantasma... – sorriu a Esfinge. – Eu sou o
Enigma.”
Este mesmo Ser, proclama, mais
adiante...
“Não
poderíamos irromper, de repente, como exceções... como... aberrações, é como nos chamariam... num cosmos repleto de
leis. Um tédio de mundo! Não sou um
pedaço de uma espécie. Sou uma
criatura única.”
É o que me fascina nas Drag Queens
(talvez algo à semelhança do que me tumultua nos poemas de Marília). São
singularidades. Isso é mais complexo do que os clichês sobre diversidade. Cada
qual é única, e isso é desafiador demais. Perturbador demais. Tem um poder deslocador
imenso, devastador, sobre o conservadorismo. Haja vista o impacto do show de
Madonna, no Rio de Janeiro, em maio de 2024, e o pânico raivoso, irado,
furibundo, dos conservadores, envenenando as redes sociais.
Rita
von Hunty é uma Drag ainda mais deslocada, porque não somente desloca o
conceito de gênero, seja qual for o que se queira aplicar a ela, como também
desloca o próprio enclausuramento de mentes sobre o que é ser uma Drag. Ela não
saiu de uma Gaiola das Loucas, nem cruzou o deserto, a bordo da Rainha
Priscila (lindos filmes!). Não é somente espalhafato (bem pouco disso, aliás),
mas é uma Drag singular por ser de esquerda e professar isso. Uma Drag Comunista.
Talvez
seus conceitos de marxismo estejam um tanto eivados duma ortodoxia a lá Martha
Hanecker. Mas, ela se propõe a educar, e assim um certo didatismo não é
despropositado. Claro que a esquerda radical não pode se prender às ortodoxias.
A esquerda, a idealista, quixotesca e transformadora é a maior defensora da
democracia, opõe-se a ditaduras, repressão e tiranetes, a bufões de redes
sociais, a todo tipo de repressão política, ao obscurantismo, à boçalidade e ao
fanatismo, em suas diversas versões; é iluminista, humanista, aposta na
ciência, e tanto no avanço do conhecimento e do refinamento da cultura quanto
na prosperidade.
Creio,
no entanto, que acima dessas mensagens explícitas, o quanto Rita von Hunty desloca
é mais pela sua presença entre nós -
espaço que ela conquistou, que não lhe foi cedido sem sacrifícios e luta (VIVA
PABLO VITTAR e TOD...S)– do que em respostas. São suas perguntas, seu non-sense,
vs a lógica fechadora, sua capacidade de, por se expor, expor também ao
ridículo (Múúú!) todo pensamento (sic!) conservador. Ela indaga o que,
sem respostas prontas, politicamente corretas e canônicas, nos leva a becos sem saída.
Ela
é o enigma.
E
creio que sua potência não é pedir decifração, mas permanecer na estrada,
devoradora, latente – deslocante.
Que me fez abrir mão, nesse poema (?) acima, de uma perseguição estética diferente para pretender experimentar a de Marília García. Alguns de meus poemas (ruins – e não é modéstia; sou leitor, inclusive de mim mesmo) seguem abaixo como amostra. Antecipo que não os renego, nem abandonei a musicalidade(anacrônica?) que tentei alcançar com eles. Não se trata disso, mas de um deslocamento, provavelmente, temporário.
Poesia ou não (os meus são óbvios!) os poemas de Marília Garcia são mais poderosos do que
os meus.
Para mim, a Arte, o Conhecimento
e a Cultura têm sim, como efeito superior, deslocar o conservadorismo de
sua inércia. E VACINAR CONTRA SEU PODER DE INFECÇÃO cujo princípio ativo é o medo à descoberta.
Por exemplo, os que ostentam a Bandeira
Nacional, onde podem, abusadamente, como se não só a nação – o Brasil, no
caso – pertencesse somente a eles, e o significado de ser brasileiro, mas
também como se a noção (pertencimento) de nação já estivesse dada/o,
talvez secularmente, nos quartéis, se não na paz eterna. Como se não tivéssemos
de redefinir o mundo diante de fatos emergentes que vão desde a Internet às migrações
forçadas, à questão dos refugiados. Como se a nacionalidade deste país mestiço fosse uma só, pura – e como
se não tivéssemos a chance (como se fosse decente ignorar essa chance) justamente por isso de criar uma noção mais
fraterna, planetária e generosa de nação. Como se a miscigenação não fosse
nossa grande oportunidade; como se nosso
cadinho cultural (Saravá! Inshalá !Mazel Tov!) não fosse o maravilhamento necessário
para substituirmos a fé na Verdade por uma amplitude de possibilidades – os “impossíveis
possibilíssimos” (A suposta existência), que nos legou Drummond, como se
toda a reflexão que se impõe sobre a proximidade do Nosso Próximo e sobre as
vicissitudes da vida pudesse ser substituída (a não ser para lacrar sentimentos
e inteligências, o clichê de corações e
mentes) por conselhos genéricos e vagos sobre a vida, sobre o ser humano,
quando não pelo fanatismo.
Por isso, Rita Von Hunty, o
Enigma, os olhos (que negam a capacidade diluidora e o fluir do tempo da dor, do
amor, da busca) de Rembrandt e o Deslocamento
que produziu em mim a poesia de Marília García, para não insistir no
patriotismo patético dos... PATRIOTAS...
foram reunidos neste ensaio.
Que são dúvidas.
Como alertei ao leitor fortuito,
não concluí chongas disso tudo.
[Para minha mulher, que entendeu perfeitamente por que tive
de passar a manhã do Dia de Natal de 2024, escrevendo esta coisa que não chega
a um lugar devido, que não deve e não deve a ninguém, e não rende nada
na nossa conta bancária: EU TE AMO!!!).