O NARRADOR
EXCÊNTRICO
Luiz Antonio Aguiar
(Sobre Esaú
e Jacó e Memorial de Aires: resgatando considerações de monografia apresentada ao Mestrado de Letras PUC-RJ em 1989, artigo no Idéias-JB em 2004, Almanaque Machado de Assis de 2008 e outras, a respeito desses estranhos romances,
últimas Bruxarias Literárias de Machado)
O Jogo das Advertências
Quem está narrando as
histórias de Esaú e Jacó[1]
e Memorial de Aires?
Como vimos, é uma
pergunta fundamental, em Machado, quando ele utiliza o narrador-personagem. No
entanto, nesses dois romances ¾ que são os últimos que ele escreveu ¾ parece que, propositalmente, o Bruxo resolveu criar
um labirinto no qual se perdem tanto as convenções do narrador quanto os nossos
hábitos de leitura ¾ e tudo isso na surdina, sem alarde, tanto que até
hoje pouco se escreveu a esse respeito.
O jogo começa nas advertências no início dos livros.
ADVERTÊNCIA
Quando o conselheiro
Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos,
rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número
de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta
encarnada. O sétimo trazia este título: Último.
A razão desta designação
especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos sete
cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do
Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e
era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da
hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o
próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas
aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis
cadernos. Último por que?
A hipótese de que o
desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros, não é
natural, salvo se queria obrigar à leitura dos seis, em que tratava de si,
antes que lhe conhecessem esta outra história, escrita com um pensamento
interior e único, através das páginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do
homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando
fizesse, valia a pena satisfazê-la? Ele não representou papel eminente neste
mundo, percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se. Nos lazeres do ofício,
escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria
(e talvez de) para matar o tempo da barca de Petrópolis.
Tal foi a razão de se[2]
publicar somente a narrativa. Quanto ao titulo, foram lembrados vários, em que
o assunto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu,
porém, a idéia de dar estes dous nomes que o próprio Aires citou uma vez:
ESAÚ E JACÓ
Esaú e Jacó
ADVERTÊNCIA
Quem me leu Esaú e Jacó
talvez reconheça estas palavras do prefácio: "Nos lazeres do ofício
escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e
talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis." Referia-me ao Conselheiro
Aires. Tratando-se agora de imprimir o Memorial, achou-se que a parte relativa
a uns dous anos (1888-1889), se for decotada de algumas circunstâncias,
anedotas, descrições e reflexões, - pode dar uma narração seguida, que talvez
interesse, apesar da forma de diário que tem. Não houve pachorra de a redigir à
maneira daquela outra, - nem pachorra, nem habilidade. Vai como estava, mas
desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto. O resto
aparecerá um dia, se aparecer algum dia.
M.de Assis
Memorial de Aires
Ou será que a primeira pergunta seria: Quem é o autor
dessas Advertências? Na primeira, não
há assinatura. Na segunda, um “M. de Assis”. Mas, o autor delas seria o
escritor Joaquim Maria Machado de Assis?
Como poderia?
Temos todos esses pequenos enigmas levantados no texto em
si, quase talvez como cortina de fumaça para ocultar o principal. E o
principal, o que escapole quase despercebido, é que ambas as advertências foram
escritas por alguém que deixa claro que conhece o Conselheiro Aires ¾
diretamente. Ora, Aires é um personagem. Machado de Assis, uma pessoa. Não há
plano em que um possa ter sido conhecido, nem amigo do outro. Então, temos o
seguinte: nas Advertências, não se
trata de uma mensagem do autor ao leitor; a história já começou, a encenação já
está em andamento, e o autor das
Advertências faz parte dela ¾
é um personagem como Aires.
Sendo que nem o título ficou de fora do jogo. Não foi, ao
que consta, dado pelo escritor Joaquim Maria Machado de Assis, mas por “M. de
Assis”, embora este não tenha assinado a primeira Advertência (suponhamos que
foi esquecimento e que “M. de Assis” é o autor de ambas), que por sua vez o
pegou de uma sugestão do próprio Aires.
Uma boa brincadeira para aquecer as idéias. Muitas outras
surpresas estão por vir.
O Narrador Excêntrico
Havíamos ficado alguns diferentes tipos de narrador, suas
atribuições e limites.
O narrador-personagem não pode entrar no íntimo e nos
pensamentos dos demais personagens. Também não pode contar (narrar) cenas nas
quais não esteja presente ou as quais alguém não lhe contem.
Diferente portanto do narrador de terceira pessoa, aquela
voz que vê tudo e sabe de tudo, que está sempre presente, embora invisível e
sem a consciência dos demais personagens, a quem dirige, o narrador-personagem
em primeira pessoa tem os limites em cena dos seus confrades, os demais
personagens. É quem confunde as duas vozes, primeira e terceira, geralmente
comete um erro de lógica (narrativa), assim percebido pelo leitor que logo
estranha e considera a coisa como mal-feita.[3]
Mas, e se Machado não se tivesse conformado com isso? E
se transgredisse essas leis? E se
conseguisse criar um super-narrador, ou um narrador excêntrico, com acesso sempre ao melhor de todos os mundos?
Ou seja, com possibilidades de usar tanto os recursos do narrador em terceira
pessoa, o invisível, quanto o narrador-personagem de primeira pessoa, o
presente em cena? Ou seja, a onisciência e onipresença de um, o tom de
confidência, a emoção direta na cena de outro?
Ora, Esaú e Jacó
é uma história ¾
talvez ficção, talvez relato verídico
produzido pelo (personagem) diplomata aposentado, o Conselheiro Aires. O Memorial de Aires, como o nome diz, é um
diário, já anunciado na primeira Advertência.
Então, o Conselheiro Aires deveria ser o narrador-personagem de ambos os
livros.
Ocorre que...
Excentricidade 1
è
Natividade,
mãe dos gêmeos, vai consultar, no início de Esaú
e Jacó , a Cabocla do Morro do
Castelo, sobre o futuro dos seus filhos, nascidos havia pouco mais de um
ano, os gêmeos Pedro e Paulo ¾
que brigarão por tudo, disputarão tudo um ao outro, e inclusive serão rivais no
amor, disputando também a moça Flora ¾ essa é a história básica do romance.
Como
consultar uma cabocla seria algo malvisto na época, coisa aliás que um bom
católico não deveria fazer, ela não conta nada a ninguém, dividindo esse
segredo apenas com Perpétua.
Na volta,
cruzam com o Irmão das Almas, uma figura que recolhia esmolas para os pobres,
mas, depois que Natividade ¾
que lhe dá algum dinheiro ¾,
se afasta, segue seu caminho e resolve ficar com a esmola para si.
Na igreja, ao tirar a opa, depois
de entregar a bacia ao sacristão ouviu uma voz débil como de almas remotas que
lhe perguntavam se os dous mil-réis... Os dous mil-réis, dizia outra voz menos
débil eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e, em
segundo lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à
igreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas
pequenas.
Capítulo III – 3 – A esmola da felicidade
Ora, como se justificaria, diante das leis da narrativa, que o Conselheiro Aires soubesse desse subida,
ao Morro do Castelo, de Natividade, cuja casa freqüenta, mas sem tanta
intimidade assim?
E principalmente, como poderia saber do desvio de
dinheiro praticado pelo Irmão das Almas? Como poderia descrever essas cenas?
Aqui, está no papel de narrador tradicional em terceira
pessoa, onipresente e onisciente.
A explicação poderia ser, claro, que tudo não passasse de
uma ficção criada por Aires. Ocorre que não podemos firmar o pé nessa hipótese
porque...
Excentricidade 2 è
O próprio Machado nos alerta que uma estranheza dessa
hipótese, a de O último ser uma
narrativa (ficcional) esbarra na excentricidade de o Conselheiro Aires aparecer
nela. E aparecer realmente como se não tivesse nada a ver com a voz que narra
...
CAPÍTULO XII ¾ 12 ¾
/ ESSE AIRES
Esses Aires que aí
aparece conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum
vício. Não atribuas tal estado a qualquer propósito. Nem creias que vai nisto
um pouco de homenagem à modéstia da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e
natural efeito. Apesar dos quarenta anos, ou quarenta e dous, e talvez por isso
mesmo, era um belo tipo de homem. Diplomata de carreira, chegara dias antes do
Pacífico, com uma licença de seis meses.
Não me demoro em
descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo do ofício, o sorriso aprovador, a
fala brande a cautelosa, o ar da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem
distribuído que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara rapada
estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo. Ainda assim o bigode,
que era moço na cor e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um
ar de frescura ao rosto, quando o meio século chegasse. O mesmo faria o cabelo,
vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um início de
calva. Na botoeira uma flor eterna.
Tempo houve, -- foi por
ocasião da anterior licença, sendo ele apenas secretário de legação, -- tempo
houve em que também ele gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não
era homem disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão
depressa viu que não era aceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou
frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas A questão para
ele é que nem as queria à força, nem curava de as persuadir. Não era general
para escala à vista, nem para assédios demorados; contentava-se de simples
passeios militares, -- longos ou breves, conforme o tempo fosse claro ou turvo.
Em suma, extremamente cordato.
Uma dissociação dessas entre a criatura que narra e o
personagem Aires é de se estranhar, sim. Por que essa encenação toda, se
estivesse contando suas memórias ¾
como o fará no Memorial de Aires? Por outro lado, como explicar
a promiscuidade, se memórias fossem,
de um narrador em terceira pessoa, como vimos na Excentricidade anterior?
É como se houvesse aqui dois Aires. Um deles, convive com
o drama de Natividade, de Flora, dos gêmeos Pedro e Paulo, conhece-os,
freqüenta a casa; outro, o que está fora das cenas e nos conta a história. É
mais um capricho o fato de esse narrador
e personagem não confessar seu duplo papel, o que é de praxe na
Literatura ¾ narra a si mesmo não como eu, mas como ele.
Pelo menos até agora.
É, ainda,
como se fossem diferentes planos de
realidade, um saindo do outro, como um jogo de cubos que se encaixam. Num
plano de realidade, a de nós, leitores, temos Joaquim Maria Machado de Assis,
que criou essa história toda. Em outro, embutido no primeiro, temos o autor das
advertências, que é legatário dos cadernos de Aires, a quem conhecia, e que
conviveu com esse Aires que está contando a história: “M. de Assis”.Sendo que
este, por vezes, como que sai da pele de Aires, converte-se em outra criatura,
algo como um Não-Aires, e relata
episódios em que o Conselheiro Aires atua como personagem.[4]
Noutro plano, subseqüente, já temos um Aires personagem, convivendo com os
demais personagens de Esaú e Jacó. E
fica sem solução possível (mais uma narrativa contada no gume da lâmina, com
precisão e sem oscilação perceptível nem para um lado nem para outro ) se temos
aqui um relato de algo que testemunhou ou se uma obra sua de ficção, desse
Aires, que o autor das advertência conheceu e que, agora falecido, deixou esses
estranhos cadernos, aparentemente para ninguém.
è
(Joaquim Maria) Machado de Assis + Leitores
è
“M. de Assis” + Aires/Diplomata Aposentado + Não-Aires
è
Aires (personagem) + personagens de EJ e MA
Ainda há
mais...
Excentricidade 3 è
Isso porque o excêntrico narrador dessa história, na
verdade, não aceita, só porque usou e
abusou dos atributos de um narrador oniciente-onipresente, abrir mão da
possibilidade de se introduzir como eu,
e aos seus sentimentos (o que sempre facilita a empatia do leitor, grande
vantagem do narrador-personagem em primeira pessoa), diretamente na
narrativa....
CAPÍTULO CVII ¾ 107 ¾
/ ESTADO DE SÍTIO
Não há novidade nos
enterros. Aquele teve a circunstancia de percorrer as ruas em estado de sítio.
Bem pensado, a morte não é outra cousa mais que uma cessação da liberdade de
viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72
horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de
reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria cometido
aquela moça, além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas
amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se não ajustam, antes se contrariam.
A razão é que não recordo este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à
vista...
(...)
CAPÍTULO CIX ¾ 109 ¾
/ AO PÉ DA COVA
Nenhum deles contou o
tempo gasto naquele lugar. Sabem só que foi de silêncio, de contemplacão e de
saudade. Não digo, para os não vexar agora, mas é possível que chorassem
também. Tinham um lenço na mão, enxugavam os olhos; depois com os braços
caídos, as mãos prendendo o chapéu, olhavam aparentemente para as flores que
cobriam a sepultura, mas na realidade para a criatura que lá estava embaixo.
Enfim, cuidaram de
arrancar-se dali, e despedir-se da defunta, não se sabe com que palavras, nem
se eram as mesmas; o sentido seria igual. Como estivessem defronte um do outro,
acudiu-lhes a idéia de um aperto de mão por cima da cova. Era uma promessa, um
juramento. Juntaram-se e vieram descendo, calados. Antes de chegar ao portão,
reduziram à palavra o gesto das mãos feito sobre a cova. Que juravam a
conciliação perpétua.
-- Ela nos separou,
disse Pedro; agora, que desapareceu, que nos e una.
Paulo confirmou de
cabeça.
-- Talvez-morresse para
isso mesmo, acrescentou.
Depois, abraçaram-se.
Gesto nem palavra traziam ênfase ou afetação; eram simples e sinceros. A sombra
de Flora decerto os viu, ouviu e inscreveu aquela promessa de reconciliação nas
tábuas da eternidade.
Aí está, um pesaroso Aires, não podendo conter a emoção,
deixa-a transbordar de seu disfarce de narrador ausente da cena e confessa o
abalo que sente quando lembra o enterro de Flora. Transforma-se assim, transitoriamente,
em um narrador em primeira pessoa pleno. Mas não seguiu nesse tom.
Logo, outra vez como um narrador que tudo vê, que tudo
sabe, um narrador de terceira pessoa onisciente-onipresente, o da Excentricidade 1, nos conta o diálogo reservado entre os
gêmeos, no qual juram amizade mútua dali para frente sob a inspiração da perda
de Flora, e que ninguém mais, além dos dois, testemunhou ¾ até
porque, produzido por enorme emoção, o acordo firmado será revogado poucas
páginas adiante, e Pedro e Paulo voltarão às animosidades de sempre.
Assim,
Machado perpetrou um assassinato a sangue frio das mais prezadas convenções
sobre a narrativa. Tão mais genial porque se trata de um crime perfeito. É
preciso ler como uma lupa esse romance e seu par inseparável, Memorial de Aires, para perceber os
pulos, os saltos, de uma entidade-narrador para outra. O público que leu o
livro na época não percebeu. Os críticos de então também não. E até há poucos
anos, nada se comentava a respeito.[5]
Tudo
passou e foi emgolido como se não fosse nada de mais. Tanto que Esaú e Jacó e Memorial de Aires não são considerados normalmente grandes romances
da Segunda Fase Machadiana, pelo menos não à altura dos três anteriores. Ou então,
ainda na linha da depreciação, se busca
analisar estes dois romances apenas pelo que têm de ambientação histórica ¾ a
passagem da Monarquia para a República etc... Já houive quem dissesse que a
grande virtude desses romances seria o fato de o autor ter com eles rersgatado
seu viés mais realista.
E, claro,
jamais se ressalta a beleza existencial do Memorial
de Aires, em que a fragilidade humana, inclusive a moral, a de caráter, não
recebe o inclemente julgamento de MPBC e DC, mas é assumida como a
possibilidade ou a carência de todos nós ¾ parece que essa face do Memorial, pressentida por amigos mais íntimos de Machado, na época
da publicação, deixou de ser destacada quando escolas de análise mais rígidas,
racionalistas e formalistas começaram a predominar nos estudos literários.
Brás
Cubas e Bento Santiago são relidos ¾
ou perdoados, ou pelo menos compreendidos, consolados ¾ pelo Conselheiro Aires.
É por
isso que, assim como D. Casmurro
passou 60 anos ocultando seu segredo, parece que Esaú e Jacó e Memorial de
Aires também são arcas do tesouro esperando para serem abertas de vez e com
muito a nos revelar.
Apêndice
ESAÚ E JACÓ : Há Um Século Guardando Segredos[6]
Luiz Antonio Aguiar
Esaú e Jacó, penúltima novela de Machado
de Assis, completa um século este ano. Trata-se de uma obra pouquíssimo lida e
muito subestimada. Mas, ora, se D. Casmurro levou 60 anos, e precisou do olhar
estrangeiro de Helen Caldwell, para começar a nos revelar seus segredos, não se
estranha que, a Esaú e Jacó, se tenha permitido dissimular-se em meio às obras
de Machado, à espera de sua vez. O enredo ostensivo são as desavenças dos
gêmeos Pedro e Paulo, ambos apaixonados pela virginal Flora que, incapaz
de se decidir entre os dois, morre
dilacerada pelo dilema amoroso. Logo abaixo dessa superfície romântica,
descobre-se uma refinada tessitura que reserva, entre outros segredos, a
bizarrice de seu narrador (ou, narradores?) – aquele que conta a história –, o
qual troca de pele e cerne repetidamente.
Na
ficção, é mais do que tradicional o narrador com poderes de ver o que os
personagens não vêem, de se deslocar para qualquer lugar, ir e voltar no tempo,
e de penetrar na alma dos seus personagens. Trata-se de um narrador
(onisciente, onipresente) que não está preso à história (não é um personagem),
não está no mesmo plano dos personagens –
quase o que o sistema operacional é para os aplicativos. Os leitores habituaram-se aos volteios deste
narrador. Sua presença – comparada a de outros tipos mais exibidos – é a que menos sentem, apesar de seus
super-poderes. Seus limites? Não é dos
mais hábeis em dar à narrativa o tom de confidência-cá-entre-nós (entre ele e o
leitor). Isso é especialidade do chamado narrador-personagem: um personagem a
quem é dado também contar a história ao leitor, do seu ponto-de-vista. O que
este não pode fazer? Como não é super, não pode invadir o pensamento dos seus
semelhantes, os demais personagens, nem (é óbvio) contar cenas às quais nem esteve presente nem
recebeu notícia. Via de regra, cada história tem seu tipo de narrador, um único
modo narrativo: sem misturas.
Mas,
suponhamos que um narrador cisme de agarrar o melhor de todos os mundos. E
vire, caprichosamente e ao sabor de suas conveniências, o tipo de narrador que
quiser, quando bem entender. E faça isso repetidamente – para mostrar que é de propósito, não por
descuido, nem equívoco – sem que o leitor se perturbe com essa instabilidade da
narrativa. Claro que aqui seria um leitor sem preocupações com a construção
narrativa, ou especialistas que dessem mais importância a uma leitura macro da obra
do que a pinçar sob a lupa detalhes e momentos de como o truque é feito. O fato é que o narrador de Esaú e Jacó
auto-transmuta-se vezes seguidas, abolindo, para si, as convenções de atributos
e de limites dos diferentes modos de narrar.
A
travessura ilusionista começa na Advertência que abre a obra. Alguém relata a
descoberta de uma seqüência de livros, no espólio do falecido Conselheiro
Aires, que contêm suas memórias. Há ainda um volume que, apesar de intitulado
como Último, não tem anteriores nem, aparentemente, ligação com os demais – é
Esaú e Jacó. O escritor Machado de Assis
que lançou Esaú e Jacó meses antes de perder a sua amada Carolina é a figura
concreta; o Alguém da Advertência é sua sombra. A (nossa) idéia daquele está
implícita neste, tanto que o leitor não indaga quem ele é, nem ele cuida de se
apresentar. Ora, na Advertência, as ações são sonsamente expressas com orações
de sujeitos indeterminados – é um Narrador Indeterminado. Seria plausível que
Machado fosse esse Narrador Indeterminado, se este não sugerisse ter convivido
com o personagem Conselheiro Aires – portanto existem no mesmo plano, o
Narrador Indeterminado também é uma criatura ficcional. Aliás, sua aparição se
restringe a estas duas insidiosas páginas.
Aires
é um narrador excêntrico. O Narrador Indeterminado da Advertência não sabe se a
história é memória ou uma ficção criada pelo Conselheiro. Na primeira cena,
Aires relata um episódio que não presenciou nem do qual lhe falaram a respeito;
e, a seguir, devassa o íntimo de um personagem (o Irmão das Almas), no melhor
desempenho do narrador (ficcional) super-poderoso. Em outro capítulo (Esse
Aires), o narrador (Aires) introduz na história, como se nada tivessem um com o
outro, o personagem Aires, reparando que é “um belo tipo de homem”. As auto-transmutações são muitas, e a mais
notável se dá próximo do final, quando os gêmeos, e apenas eles, estão à beira
do túmulo de Flora, tendo acabado de enterrá-la, e depois de o narrador revelar
o diálogo privado entre os irmãos, no qual selam um acordo de paz (que pouco
irá durar), lamenta a tragédia dizendo: “... não recordo este óbito sem pena, e
ainda trago o enterro à vista...”. Ou seja, Aires escapou para a pele do
narrador-personagem, no que o pesar transbordou o limite da isenção do narrador
super-poderoso que estaria acima das vicissitudes dos personagens, invisível e
acima de tudo ausente.
Curiosas
estripulias temos também na Advertência do Memorial de Aires – o último
romance, par inseparável de Esaú e Jacó. Por um lado, evocam-se os volumes de
memórias de Aires, anunciados pelo Narrador Indeterminado de Esaú e Jacó; por
outro, o perpetrador desta nova Advertência a assina como M.de A. Entretanto,
este M.de A. está para Machado de Assis assim como o Borges que em O Aleph é apresentado
ao objeto sobrenatural o qual dá nome ao conto está para o escritor Jorge Luís
Borges. E note-se que este M.de A. está tão equiparado ao personagem Aires como
o Narrador da Advertência anterior. M. de A. e o Narrador Indeterminado
mostram-se como o mesmo ser, uma mescla insólita do Autor (físico) com o
Narrador Indeterminado, gerando um terceiro, o Narrador-M.de A.
São, no
todo, transgressões quase homicidas contra as convenções de narrar/ler ficção
estabelecidas então (e, em boa parte, até hoje), principalmente no viés
realista/naturalista da ocasião. Se passam despercebidas, ou, relegadas, há 100
anos, isso se deve à sutileza magistral com que foram praticadas. É que,
diferente de parte da prosa atual, Machado não fazia alardes para anunciar seus
vôos; nem os mais altos, nem os mais profundos.
[1]
.Na Bíblia, Esaú vende seus direitos de filho primogênito a seu irmão gêmeo,
Jacó, por um prato de lentilhas. Esta é uma entre as muitas causas das
desavenças entre os dois. No romance de Machado, Pedro e Paulo serão eternos
rivais, adversários, competidores, desafetos, inimigos.
[2]
Machado cria aqui uma nova categoria sintática, o Sujeito Envenenado. Indeterminado que queira parecer, o agente
dessas operações e decisões editoriais, tanto aqui como na Advertência de Memorial de Aires, deveria ser o mesmo,
o autor das Advertências. Mas essa criatura, seja quem for, não assume seus atos, escondendo-se atrás de
um “foram lembrados” aqui, e um
“achou-se” ali.
[3]
Algo como: Epa! Um personagem-narrador
vidente...Ou com outros poderes psíquicos...
[4]
Júlio César (100 a.C. – 44 a.C.), general e político de Roma, fazia o mesmo ao relatar sua participação nas campanhas de guerra.
[5]
Ver artigo em anexo, a seguir: Esaú e
Jacó: há um século guardando segredos.
[6] Caderno Idéias, Jornal do Brasil, 21.08.2004. Baseado em monografia do autor, O poder de narrar, apresentada no
Mestrado de Literatura Brasileira da PUC-RJ em 1989.