PORTUGAL
CHICO, SARAMAGO, PESSOA
... Delírios e Utopias!
“Ai, essa terra ainda vai cumprir seu ideal...
Ainda vai-se tornar... Um imenso Portugal!”
Fado Tropical,
Chico Buarque, 1973
A
epígrafe é do Chico, num ataque poético tanto à ditadura salazarista quanto à
militar, no Brasil de 1974. Mas quero começar esta argumentação por José Saramago. E particularmente por seu romance Jangada de Pedra.
Não
posso adivinhar os significados que teria a grande metáfora que envolve esta
obra, para o Prêmio Nobel de 1998, falecido em
2010. No romance, Portugal, qual uma jangada de pedra, se destaca do
restante da Europa e passa a vagar à deriva pelo Atlântico, isolado do mundo,
isolado do seu presente, da sua contemporaneidade. Imune à passagem do tempo.
Certa
vez, isso depois da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, assisti à
palestra de um membro do Consulado Português, explicando Portugal antes e
depois da ditadura Salazarista, que vinha desde 1926, passando pela morte do
tirano Salazar, substituído pelo não menos tirânico Marcelo Caetano. Segundo
esse personagem, cujo nome não vou lembrar, o grande objetivo de Salazar sempre
foi isolar Portugal do restante da Europa, onde movimentos vanguardistas
provocavam mudanças políticas, sociais, econômicas e culturais. Esse consul
afirmou, ainda, que Salazar era um homem
que acreditava – piamente – na volta de D. Sebastião a Portugal.
D.
Sebastião , “O Desejado”, “O Esperado”, o Redentor”, foi um rei português que
lutou nas cruzadas, e “desapareceu” na
batalha de Alcácer e Quibir, em 1578. A decadência de Portugal, após o ciclo
das Grandes Navegações, se inicia mais ou menos junto com essa tragédia
nacional. O retorno de D. Sebastião, que nunca se deu, era tido pelos
portugueses como o milagre que indicaria Portugal como, de fato, uma nação de
escolhidos, destinados a governar um império que se estenderia da América do
Sul, passando pela África, até a Ásia. O “sebastianismo” foi uma seita mística dedicada a esperar pela
volta de D. Sebastião – uma sombra que pesou sobre Portugal durante
séculos, como se ele ainda pudesse retornar,
mesmo depois de tanto tempo – e pela consequente ressureição de Portugal.
O
resgate de Portugal, para se integrar ao
mundo europeu e abrir os olhos para seu atraso, para a necessidade de se libertar
do tal passado de glórias (as Navegações) e pensar em si no presente e no
futuro, iniciou-se de fato, não com a
volta de D. Sebastião, mas com a Revolução dos Cravos.. .. que se deu
inclusive, entre outros fatores, como consequência do apego anacrônico de
Portugal à sua política colonialista – racista - na África, que por sua vez lhe
custou guerras e sacrifícios vãos.
Bom, por
que escrevo tudo isso? Porque é um tema, até aqui, literário... a
Jangada de Pedra, ilhada afastada do fluir do tempo, das mudanças da
integração com o restante do mundo, a letra de Chico...
Mas,
também porque tem tudo a ver com nosso presente bolsonarista. O psicopata
que nos desgoverna nos afasta cada vez mais do mundo, transformando o Brasil em
símbolo e exemplo de atraso, de persistência da homofobia, do racismo, da
opressão social, do aniquilamento das florestas e dos povos indígenas... e, se
os desejos deles se confirmassem, da volta
da ditadura, nos moldes de mais de meio século atrás. Que o tempo não passe.
Que as mudanças que a maioria do povo exige nunca ocorram, que sejam
estigmatizadas como comunistas. Que
nossa integração ao mundo, o qual desperta (a não ser o Trump, seriamente
ameaçado de ser atropelado pelas manifestações antirracistas e perder as eleições, e mais 3 ditaduras : Bielorrrússia,
Turcomenistão, Nicarágua; devo confessar, quanto aos dois primeiros, faço
apenas uma tênue ideia de onde ficam) para uma Humanidade mais tolerante, promotora da justiça social, da
proteção ao nosso habitat planetário, generosa em relação às minorias, aos
refugiados, mesclada ao extremo em relação às múltiplas etnias e crenças que
habitam todos os países. Particularmente nosso
mestiço e sincrético Brasil. Ou
seja, há razões para crermos na fundação de uma comunidade planetária,
fraternal, depois que essa pandemia, e este ano de 2020 nos mostrar que o
problema de um é o problemas de todos; e que a solução de um só é encontrada, reciprocamente, na solução para e com todos.
O
reacionarismo bolsonarista tem inspiração salazarista. Mesmo o olavismo,
achando-se tão moderno. Pode até não saber disso, mas tem. Até no projeto – um homem forte perpetuado no poder (no
caso, com sua família), apoiado pelas forças armadas. Sonha com a volta de um
passado irrecuperável, a ditadura militar. É feroz, em seu endeusamento da
tortura e dos torturadores, da censura, da perseguição implacável e
criminalização dos opositores. Quer nos manter, com fake News e fanatismo,
isolados do que o mundo repensa, de como o mundo gira, atado a esse passado, temendo mudanças. Os de mentes mais conturbadas
o vêem como redentor do seu terror a mudanças, que são inevitáveis, são o
próprio correr do tempo. Assim como temem a integração de fato do país ao mundo
convulso, onde essas mudanças fluem naturalmente. Na verdade, essa naturalização da mudança os
horroriza. Unem-se no passadismo. Queriam que o Brasil fosse uma jangada de
pedra. Esta é a promessa mentirosa dos fascistas brasileiros, é a ilusão vã de
seus seguidores. O Brasil não vai se tornar um imenso Portugal até porque o
modelo desse delírio não existe mais.
Torno a
dizer, D. Sebastião nunca voltou. O
Sebastianismo, denunciado como ainda um traço forte na alma portuguesa, por
Fernando Pessoa, em vários poemas, terminou em cravos vermelhos. Os militares exauriram-se nas guerras
coloniais e retornaram a Portugal para por fim ao regime. Nesse meio tempo,
muitos deles haviam se tornado democratas, comunistas, ou socialistas, sociais-democratas
– tudo, menos salazaristas.
O antirracismo une o mundo hoje.
Outras causas, como a anti-homofobia, a defesa do meio ambiente, também. E no
Brasil, forma-se uma frente ampla contra o fascismo miliciano.
Tanto Chico quanto Saramago eram otimistas, ou
não teriam criado sua obra, que clama,
nas entrelinhas, nos silêncios entre acordes, e mesmo explicitamente, é claro,
por mudanças. Eu sonho que o mundo saia de 2020, não, querendo esquecê-lo , como se este
ano não tivesse existido, mas, como um marco de mudança. Foi o ano em que o
antirracismo assumiu o protagonismo das mudanças sociais. Em que o povo
enfrentou a pandemia e foi às ruas defender a democracia. Em que perdemos uma
infinidade de semelhantes, por quem choraremos para sempre. Porque lembraremos
que, num país mais justo, grande quantidade dessas mortes poderiam ser
evitadas. Porque, quem sabe, até mesmo
em homenagem aos que foram sacrificados, a gente saia deste momento triste mais predisposto a essa fraternidade
planetária, a essa identidade de semelhante
dos povos e indivíduos dos 1001 cantos do mundo?
Pensando no Portugal progressista
e solidamente democrático de hoje – pelo menos até a pandemia – quem sabe a
profecia de Chico não se confirme e nossa terra se torne um imenso Portugal?