MACHADO de ASSIS
O BRUXO METAFÍSICO
(Lamento... mas o mini-ensaio abaixo tem uns trechos bem complicados !
Dessa vez, foi necessário; pelo menos, é curto.
Mais indicado para Leitores-Gourmet de Machado)
Luiz Antonio Aguiar
Eia! chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.
Quincas Borba
Por ocasião das comemorações do centenário de morte de Machado de Assis (1839-1908), certo crítico pediu publicamente que se suspendesse a tradição de se chamar Machado de Bruxo. Tentou fazer galhofa com isso. Achava tolo e já gasto o carinhoso apelido, que fora honrado até mesmo por Carlos Drummond de Andrade (no poema A um bruxo com amor). Mas, havia uma lógica nessa solicitação do referido crítico, estudioso de Machado e organizador de diversas antologias cuidadosamente compiladas de textos do Bruxo. Na visão dele, Machado é essencialmente um autor realista e sua obra tem como tônica retratos/registros históricos de momentos e processos da sociedade brasileira, naquelas décadas decisivas do século XIX e da passagem para o século XX, quando tantas mudanças ocorreram, apesar de não terem caráter de fundo, estrutural, mas institucional, quase rearranjos do poder no país.
De fato, a prática de bruxarias (ainda que literárias) não se adequa a um cronista tradicional; mesmo sendo um observador arguto, irônico, mas ainda assim um observador – um Machado-Historiador. Não é de alquimia e de prestidigitação e/ou ilusionismo que é feita a História, pelo menos ao que conste nos veios convencionais.
A questão é se há um único Machado. Ou uma única leitura possível do Bruxo.
Ou se, obra-prima, genial, repleta de meandros, detalhes, entrelinhas, serpentes que devoram o próprio rabo, invisibilidades, recantos, sutilezas, além de mutações permanentes e caleidoscópicas que a mantém em inesgotável reconstrução ... oferece-se generosamente à leitura, abrigando e incorporando as diferentes visões que a percorrem, tangenciam e transpassam. Acredito que, como na melhor Literatura, Machado é uma obra em que todo leitor cabe, e que cada leitor habita e transforma, relê e recria, de acordo com seu cabalismo íntimo, que se funde ao do Bruxo.
Há muitos machados. Quantos, não saberia dizer, até porque suspeito que sempre andem surgindo mais e mais. E nenhum deles é “O” Machado, o supremo, nem muito menos o único.
Há algum tempo me dei conta de que o Machado que prefiro é aquele que opera uma metafísica irrequieta, perturbadora, que nos deixa sem resposta quanto à maioria das grandes questões cósmicas e existenciais. Que desfaz das certezas e verdades. De objetividades. De perspectivas (recortes) que pretendem ser hegemônicas. De preceitos, dogmas, pontificados. Que nos faz, não, desvendar o mistério, mas compreender sua magnitude profunda, etérea. A fertilidade longeva de sua invulnerabilidade (Capitu traiu ou não traiu Bentinho?) . Uma leitura de Machado que talvez sugira que essa seja a postura – a não-resposta, a permanente disponibilidade de olhar, mente e coração – que mais nos permite conviver com enigmas (e a dor) impostos pelo dia a dia.
Vejam por exemplo o embate/acasalamento (Machado fala em “conúbio”, na mensagem AO LEITOR que abre Memórias Póstumas de Brás Cubas) entre a galhofa e a melancolia. Sua origem, talvez, tenha sido uma sugestão de Cervantes[1], de quem Machado era devoto. Se a questão abre Memórias Póstumas...., está perene e latente em O alienista. Também já conheci quem lesse essa novela somente enxergando nela o humor. Meia-leitura. Leitura parca. Anêmica. Assim como D. Quixote e seu poder empático nos proporcionam vivenciar a estranha combinação de riso e tristeza, o segredo da patética tragédia de Simão Bacamarte[2], cuja integridade o faz isolar-se do convívio humano, entregar-se à solidão absoluta e à morte, pode estar no mesmo enlace que desvenda o definhamento moral de Bento Santiago e a amargura por trás das gracinhas de Brás Cubas, outro solitário, cujo legado, apesar de relatado ironicamente, é nada. Ou menos que nada, o que precede o nada: a esterilidade. Eis então a solidão, a loucura diante da inexplicabilidade dos mistérios humanos, e a impossibilidade de lidar com esse aspecto conturbado da existência sem (aprender a) combinar riso e lágrimas;[3] eis a suma, o legado, o grande final também de Quincas Borba. Que o confronta com a imensidão. A eternidade. Novamente.
desenhado por Gustave Doré
Maldições que pesam sobre a condição humana?
A morte.
Machado expõe nossa mortalidade e principalmente a incapacidade de nos concebermos como habitantes (futuros, em potencial, e, no caso do autor defunto, como presentes habitantes; ou talvez inquilinos) do mundo não descoberto (de Shakespeare, em Hamlet, mas também de Brás Cubas). O protagonista desse drama (a existência humana, a Humanidade) é o verme que Hamlet evoca na sua ontologia do mundo, [4] e por meio do qual fina e sarcasticamente desacata o rei (assassino e irmão do pai de Hamlet, usurpador do trono, que herda a mãe de Hamlet em seu leito, desposa-a, depois de tê-la como cúmplice na morte do rei), propondo que um soberano poderia ser defecado por um pescador mendigo. Tudo por causa de Sua Majestade, o verme,[5] aquele que reina de fato, e não o mandrião que afanou a coroa.
Personagem costumeiramente chamado por Machado a metaforizar a nossa inaceitável mortalidade e a transitoriedade do que chamamos vida, o verme, o cemitério, a devoração das carnes pútridas (privadas da vida sob o sol, do nome, de passado: pasto somente, no mundo abaixo das lápides) e a promiscuidade das ossadas são vicissitudes que, cândida, sonsa e risonhamente, Machado insiste em nos esfregar na cara.
Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.
“Dedicatória” de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Esse Machado metafísico desafia as leituras rasas e de águas límpidas e tranquilas. É sempre mais fácil e mediano procurar na Literatura temas pitorescos, destaques epidérmicos (e o mulato Machado foi muito acusado de racista e de fazer uma Literatura Branca, apesar de tantos momentos que contrariam essa implicância paranóica, recalcada, como O pai contra mãe, O caso da vara e uma infinidade de outros em que nos brindou com uma visão de insider, não-simplista, nem panfletária, nem simplória, de quem conhece e sofreu na pele a discriminação racial e a crueldade contra os negros no Brasil). Machado não é óbvio, jamais, mas nele encontramos o exame ficcional de opções sexuais condenadas pela hipocrisia social (ver o conto Pílades e Orestes¸ sobre amor homossexual); ou, de toda a situação de vil e sofrido rebaixamento forçado da mulher (por que uma personagem como Capitu tem de submeter-se, calada, diante das mofinas acusações de um Bentinho, sendo ela “mais mulher do que eu era homem”? por que o dono da história tinha de ser o homem? Por ser o dono da casa? O chefe da família? Será que isso nunca causou estranheza no público feminino da virada para o século XX?). Trata-se de um tema dileto do Bruxo e expresso em muitos contos, como A missa do galo, Uns braços, Noite de Almirante, Eterno!, e outros, compondo a vívida galeria de personagens femininos de Machado. Ele é o grande vingador das vítimas da licença patriarcal (prerrogativa exclusivamente masculina), no Brasil, para o adultério. Escreve ainda em nome dos animais, sacrificados pelo progresso (ver crônica de 16 de outubro de 1892) e pela crueza dos humanos (ver crônica de 2 de abril de 1878), e entrega o poder e a posse da história ás crianças, no âmbito familiar silenciadas pela rigidez de então, que desconhecia o que fosse infância.[6]
Nada-se a favor da corrente ao se cobrar uma Literatura correta no palavreado, nas formalidades sociais, nas festivas (e superficiais) alusões ao folclore, embora fluida na interioridade (para a submedíocre corrente dominante, esta é falha desculpável, quando não desejável). Só que assim o que se tenta é exconjurar não só a dissecação inclemente dos costumes e das ideias prevalentes, pela Literatura, e os rompantes mais ousados da imaginação, como sua universalidade, a busca obsessiva (de Machado, de Graciliano - em São Bernardo, principalmente - e Guimarães Rosa – sobretudo em A terceira margem do Rio , mas também em outras obras) por esse sentimento íntimo, de todo e qualquer tempo e lugar, essa exploração de manifestações de uma fraternidade humana, existencial e abissal, camuflada por superfícies, pulsando abaixo da pele e das aparências, a exigir sensibilidade, inventividade e compenetração de leitura (e releituras, muitas), a proporcionar amadurecimento do gosto e do paladar de leitura literária, e mais ainda do espírito, ao parecer crescer junto com o leitor, e oferecer mais e mais ao leitor à medida que este se torne maior e maior... É mais fácil requisitar da Literatura o exótico e o evidente, o apelo populista, o proselitismo, o doutrinarismo, o sectarismo e a ostentação deste ou daquele moralismo, provincianismo, regionalismo, nativismo, nacionalismo ou civismo. E assim evadir-se, deixar de se arriscar a encarar-se a si mesmo, ou a descer à forja tectônica onde Machado compõe seus personagens e tramas.
Em contraponto, há uma comunhão de angústias e esperanças, de ilusões e desilusões, que tocam a todos nós, criaturas de olhos arregalados diante do mundo, e que nos tornam seres semelhantes, de uma mesma espécie (espiritual, existencial), mesmo aos que reduziram sua vida ao vazio de um Hades da Mitologia Grega. E talvez seja este um de nossos elos essenciais, o que compartilhamos com os demais viventes racionais-afetivos do planeta, o medo diante dessa agonia subliminar que TODOS carregamos. E, quem sabe, a recusa de enxerga-la como parte de nós seja uma das correntezas mais traiçoeiras e poderosas a nos imobilizar diante das oportunidades da vida (Alas, Betinho, por que você não soube ser feliz com Caputu...?) e nos arrastar para o sumidouro. Para o poço sem fundo.
Ou, de novo, para o Undiscovery Country. [7]
Ei-lo, o país tenebroso. Machado nos leva a vislumbrá-lo evocando imagens que estão inculcadas, incrustradas em nós, que sabemos que, longe de serem produto de qualquer verdade ou clarividência externa, são as nossas assombrações. São fios da tessitura do nosso espírito. Inalienáveis. Inescapáveis. E, se alcançarmos a felicidade (que não é impossível, na visão de Machado e no destino que concedeu a muitos de seus personagens), será carregando essas imagens de terror em nossa busca. Se pudermos ser felizes será incorporando essa faceta ambígua de nossa felicidade. Será com ela. Somos seus hospedeiros perpétuos, numa simbiose que não se esgarça. Acontece, felizmente, que somos capazes de lidar com isso, graças a um dom (entre outros) que possuímos – criar/ler/recriar a dimensão humana no mundo, valendo-se da bruxaria que Machado cultuou apaixonadamente: a Literatura.
Assim como o grande feitiço almejado pelos alquimistas era transformarem a si mesmos, recriarem-se, no trâmite de sua criação mágica, há uma leitura de Machado que abala a gente. Que pode revirar nossas concepções de Vida e de Morte. Que é bem capaz de nos impregnar. De mudar o que há de mais sedimentado em nossa maneira de nos vermos no mundo. Ou seja, de mudar o que conhecemos por mundo. Quem aceita se expor (mesmo que literariamente) a tal perigo?
Assim como o grande feitiço almejado pelos alquimistas era transformarem a si mesmos, recriarem-se, no trâmite de sua criação mágica, há uma leitura de Machado que abala a gente. Que pode revirar nossas concepções de Vida e de Morte. Que é bem capaz de nos impregnar. De mudar o que há de mais sedimentado em nossa maneira de nos vermos no mundo. Ou seja, de mudar o que conhecemos por mundo. Quem aceita se expor (mesmo que literariamente) a tal perigo?
Para mim, este é o mais grandioso Machado.
E que cada qual invoque o seu.
MACHADEANDO
coletânea de Crônicas de Machado
Comentadas, Anotadas, com 1001 facilitações e seduções de leitura
Coleção
DESCOBRINDO OS CLÁSSICOS
Tutoriais de Leitura
Para Iniciar Garotada nas Bruxarias Machadianas
Machado e Juca
- best seller há quase 20 anos -
Machado vira um velhinho sapeca que investiga um crime no ano em que escreveu
D. CASMURRO. Ajudando as investigações: JUCA, um espoerto garoto, sapateiro de rua!!! Mistério e AVENTURA COM SABORES MACHADIANOS. Convidados especiais: Vários personagens de Machado, além de Carolina e outras celebridades.
A aventura de vida e glória de um antoigo dicionário contada por ele mesmo... Atração especial:? as lembranças de seu dono mais querido... Um jovem escritor Machado de quem foi o primeiro dicionário que teve na vida. Adivinhem quem era...? Perigos pelos quais só um dicionário poderia passar. Um sucesso entre a garotada desde o lançamento!
Oficinas e Palestras sobre Machado de Assis, para garotada, professores, pais e público em geral, ver CARDÁPIO em
[1] "procurai também que, lendo a vossa história, o melancólico se mova ao riso, o risonho o acrescente ..." .
[2] Poe e Machado questionaram a inflexibilidade do diagnóstico e a discriminação da loucura mais de um século antes de Michel Foucault, quando isso não era cogitado pela inteligência que lhes foi contemporânea. Ambos exploraram a loucura para questionar... o que se entendia como sanidade. Ver em Poe O sistema do Dr. Tarr e do Dr. Fether, predecessor de O alienista, e em Machado, além dessa que é sua novela mais popular, a crônica de 31 de maio de 1896.
[3] É inviável a meu ver uma leitura unidimensional de Machado. Cada leitura tem de conter em si o germe de sua própria contestação. Ser fiel a Machado é trair Machado! Ser simultaneamente tese e antítese, sem esperanças nem pretensão de uma síntese. Nem branco, nem preto; nem claro, nem escuro; como na penumbra habitada por atormentadas e atormentadoras assombrações de onde Rembrandt extrai as figuras e os cenários de seus quadros. Ali pululam as respostas para os mistérios e incertezas; mas, tentarmos nos agarrar a essas respostas é como confiar no brilho de uma estrela. Quando o vemos, aqui na Terra, a estrela que o emitiu já não está, faz milênios, naquele mesmo lugar do cosmos. O corvo-profeta de POE nos revela essa artimanha do tempo: Nunca mais! Nunca Mais! (Machado foi o primeiro tradutor desse poema para o português.)
[4] Há indícios de uma tradição medieval de pensamento herético na qual a deterioração biológica seria a entidade de gestação da vida. Ver O queijo e os vermes, de Carlo Guinsburg, Companhia das Letras, 1987.
[5] Ver entre outras as crônicas de 9 de junho de 1894 e a de 12 de dezembro de 1884, ambas ao mesmo tempo, paródias e ampliações da conhecida cena (Ato V, cena 1) de Hamlet. Nessa segunda crônica, o narrador-cronista vai ao cemitério indagar sobre um homem que ganhou momentânea celebridade, um tal Castro Malta que, preso, acusado de um assassinato, morreu na cadeia sob torturas para que confessasse o crime. O caso provocou comoção. Mas, o verme interrogado diz somente que , para o mundo abaixo das lápides, ninguém carrega nome nem sobrenome. Importa somente a maciez da sua carne. Mais um pouco e o verme teria repetido, como se fosse o capítulo de encerramento de Memórias Póstumas ... “O resto é silêncio” (Ato V, cena 2), derradeira fala, neste mundo, do Príncipe da Dinamarca.
[6] Ver contos Umas férias e Conto de escola. Crianças mal são mencionadas em poucas ocasiões na Literatura do século XIX. A cultura da época pretendia conter as crianças no papel de “adulto imperfeito” (como escreveu Monteiro Lobato, machadiano de coração), uma criatura em aprendizado/domesticação, que deveria ser “visto e não ouvido”. De fato, infância não existe na sociedade do século XIX, não há mundo infantil, imaginação é igual a mentira, brincadeira é pouco mais do que perda de tempo, maldosamente tida sob a pecha de coisa de criança, coisa a ser superada na obrigatoriedade de a criança ganhar juízo, crescer, virar o quanto antes um adulto (completo).
[7] Hamlet proclama que, desse país, ninguém volta. Machado talvez tenha aceitado o desafio do Príncipe Shakespeareano e nos ofereça vislumbres do Reino Absurdo, e até mesmo nos apresente um de seus súditos, retornado, Brás Cubas, para nos sugerir como é a vida por lá. Brás Cubas revoga a condenação proferida em Hamlet. Machado subverte Shakespeare.
LANÇAMENTOS / 2017